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Grupo de Trabalho 7
Identidades nômades: desafio para o feminismo.

Tania Navarro Swain[1]

No quadro epistemológico da atualidade, questionar, ampliar os horizontes de um mundo cercado por “certezas” revela-se mais importante que buscar respostas; inverter as evidências, como propunha Foucault, (Foucault, 1971, 53) sacudir as verdades que nos definem e nos limitam mostra-se um caminho para o desvelamento de realidades múltiplas.

A própria vida , as práticas sociais com seus contornos plurais , construídos a cada instante nos interpelam e instauram a problemática que aqui nos interessa; nesta ótica, os paradigmas, os estereótipos chocam-se constantemente ao dinamismo e à nuances de um quotidiano feito em cores e matizes diversos. As questões levantadas por esta realidade multifacetada e o tema deste encontro exigem um olhar voltado para o novo, o criativo, o contraditório, o paradoxal , ali mesmo onde o caminho parecia traçado.

Neste sentido, a categoria identidade concentra parte do debate acadêmico feminista de forma transdisciplinar, ligado aos problemas de ordem política, étnica e sexual. Onde estão as “certezas” de antigamente, que definiam o verdadeiro e o falso, o real e o ilusório, que designavam as raças e os sexos, “sem sombra de dúvida”? Onde se encontra a evidência da identidade sexual, do sexo biológico demarcador do feminino e do masculino como divisão maior do social?

Num passado não muito longínquo, as mulheres eram representadas como menores de idade  e a frase “Os adultos, as mulheres e as crianças”, tantas vezes repetida, exprime uma realidade construída, mas instituída nas práticas sociais: a inferiorização das mulheres na sociedade. Homem, mulher, criança, divisões bem estabelecidas, hierarquia descendente, representações sociais que criam o verdadeiro e o “natural” na ordem do discurso, onde a família é o eixo em torno do qual giram as pesadas engrenagens das relações sociais. Classificação tão “evidente” do humano, tão ancorada no senso comum, que é difícil visualizar sua construção, sua historicidade.

Como sublinha Denise Jodelet,

“Estas representações formam sistema e dão lugar à ‘teorias’ espontâneas, versões da realidade incarnadas por imagens ou condensadas por palavras, umas e outras carregadas de significação[...] definições partilhadas pelos membros de um mesmo grupo constróem uma visão consensual da realidade para este grupo.” ." (Jodelet, 1994, 35)

Assim, nesta perspectiva, o desafio hoje é auscultar as zonas obscuras que acompanham os nódulos “naturais” de inteligibilidade do humano, onde aparecem, com força e visibilidade, grupos e indivíduos que reivindicam uma identidade específica fora do esquema binário. Quem são eles/elas, que vem quebrar meu Eu, o Nós, esta identidade tão laboriosamente estabelecida, defendida, cujo custo não ousamos avaliar ? Quem são elas/eles, que pronome devo utilizar para nomeá-los, para ancorá-los no meu universo do familiar e do quotidiano??

A difusão de imagens andróginas na mídia, publicidade, cinema é extremamente comum. Seres imaginários ou vizinhos do andar de cima aparecem para perturbar os esquemas delimitados e tradicionais das identidades sexuais. Mulheres ou Homens? Boa pergunta. Quantas vezes não a fizemos olhando jovens e menos jovens que andam de mãos dadas ou abraçados? Meu olhar seria condescendente, acusador, cúmplice ?

Seriam eles os Queers? Que relação teriam e que problemas colocariam ao feminismo? Que identidade é esta que não se encaixa nos lugares já demarcados ao nascer : é uma menina, é um menino Pode-se hoje afirmar uma identidade nuclear ou essencial? Gostaria de trabalhar esta questão sob dois ângulos: o epistemológico e o político, separados unicamente por uma preocupação de clareza, pois todos estamos conscientes da imbricação destas duas dimensões.

Já anunciei algumas categorias como realidade, representações sociais, identidade. Outras farão parte de meu discurso, tais como imaginário, gênero, sexualidade, homossexualidade, heterossexualidade.

Mas inicialmente, alguns marcos teóricos: entendemos aqui o imaginário tal como proposto por Castoriadis (Castoriadis, 1982) ou Baczko (1984), como uma função instituinte da sociedade. Ou seja, o imaginário que cria os sentidos circulantes enquanto verdades, normas, valores, regras de comportamento, que instaura paradigmas e modelos, que decide o que é a realidade, que define a ordem e a desordem, o natural e a aberração, o normal e o patológico, a significação e o non-sens.

Os sistemas de interpretação constituem de fato as redes de construção do mundo, pois as coisas tornam-se TAIS coisas em quadros precisos de interpretação. Assim, é a instituição da sociedade, de suas relações, de suas significações em limites precisos de interpretação que determina o que é real e ilusório, o que é natural ou contra a natureza, o que é dotado de sentido ou se encontra em um lugar de não-significação. Castoriadis afirma que:

“[...] toda sociedade é uma construção, uma constituição, uma criação de um mundo, de seu próprio mundo. Sua própria identidade não é nada mais que este ‘sistema de interpretação’, este mundo que ela cria. [...] percebe como um perigo mortal todo ataque contra este sistema de interpretação; percebe-o como um ataque contra sua identidade, contra ela mesma.”( Castoriadis ,1986, 226-227)

 Em uma formação social, assim, nada seria dotado do sêlo da verdade, do legítimo, do universal, nada seria um dado natural e inquestionável e a ciência, crítica de seus próprios instrumentos conceituais, o afirma hoje em todos os domínios.

A heteronomia das sociedades está diante de nossos olhos, mas que olhar pode enxergar? Os fantasmas do déjà là, da razão que imprime em sua lógica seus próprios limites , estão a nos assombrar e mesmo na crítica radical feminista que aponta para a construção social dos gêneros, encontramos a presença poderosos de quadros de interpretação, já cristalizados em formatos definidos.

Estou falando da interpretação binária do mundo, não somente em relação aos sexos, homem/mulher ( na ordem) mas igualmente quanto à visão dualista do que compõe a inteligibilidade da vida: o bem e o mal, o bom e o mau, o real e o imaginário, o puro e o impuro, o claro e o obscuro, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o espírito e a matéria, a vida e a morte. As filigranas, as nuances que fazem o maravilhoso no desabrochar da vida são assim reduzidas ao silêncio e à monotonia de mais uma conexão binária: eu e o outro.

Os quadros de interpretação constitutivos das condições de produção de nosso discurso se escondem a nossos olhos, as significações arbitrárias que alimentam nossos valores e tecem nossos caminhos desaparecem diante do perfil imutável da Verdade, do | “natural”. A auto-constituição da sociedade se aninha no seio da evidência, do inquestionável.

Gostaria, entretanto, de por em questão estas evidências e colocar como problema a heterossexualidade, a família, a homossexualidade, a identidade e porque não, a própria sexualidade. Fazendo isto, não tenho a pretensão de um discurso inaugural, pois estas categorias foram e são ainda analisadas e discutidas por muitas autoras, desde a denúncia da heterossexualidade compulsória, até a Queer Theory: ao contrário, quero invocar seus argumentos para dar apoio a meu discurso.

Comecemos pelo fim: identidade e sexualidade.

Não é preciso mais provar, atualmente, as diversas manifestações da sexualidade no espaço e no tempo, isto é, que o conceito e a prática da sexualidade manifesta-se diferentemente, seja ela centrada sobre o ato sexual, a procriação, o prazer, a sensualidade, o erotismo, o sado-masoquismo, etc. A sexualidade exercitada igualmente como um dos atos do humano ou O ato humano , que faz parte do ser ou É o próprio ser, de acordo com o sistema de representações que ordena a configuração social analisada.

No Ocidente, há muitos séculos a sexualidade foi apanágio do masculino enquanto ato e do feminino enquanto locus: a mulher era o sexo- substantivo- sobre o qual se estendia a sexualidade masculina – o verbo, a ação. Mas estamos em pleno domínio do binário. E as práticas sexuais que não pertencem à ordem da sexualidade dual? Desvio, perversão, desregramento: estas práticas vão ser categorizadas para serem assim melhor excluídas da norma, do “normal”. A sexualidade vai constituir, aos poucos, o pivô de domesticação e de controle social, eixo igualmente de fixação do afeto e da emoção, cadinho de todas as significações, chave de uma ordem que se alega divina, racional, biológica.

A psicanálise reafirma esta ordem, na medida em que a sexualidade torna-se a verdade do ser, dita, explicada, narrada, analisada, entre mãe devoradora e pai desejado; falar do sexo, finalmente, é falar de Ego, de super-Ego, de Id, de Mim, e quem sabe, de Nós? Quem sou eu, que falo de um sexo, a partir de um sexo, de que sexualidade somos o produto? E que sexualidade produzimos, em nossas respostas às interpelações do social?

Foucault denomina “dispositivo da sexualidade” este conjunto de investimentos sociais que a constróem como centro do discurso contemporâneo, centro de nossas vidas e de nossos pensamentos, imagens que nos penetram em cada filme , em cada publicidade, em cada novela ou seriado.

Segundo este autor, “o dispositivo da sexualidade” é “[...]um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo." (Foucault, 1988, 244)

Mesmo negando-a, coloco-me face à sexualidade, onipresente, deusa à qual todas as oferendas são devidas, eixo de exercício do poder, lugar de produção de verdade sobre os corpos e sobre as identidades. .(Foucault, 1988, p.236) Mas de que direito a sexualidade erige-se em rainha, centro do ser, fonte de todas as inquietações, de todas as preocupações, senão devido à importância que lhe é dada? Senão pela produção da verdade sobre o corpo e sobre o exercício correto da sexualidade?

Theresa de Lauretis ( de Lauretis, 1987, 12) retoma esta idéia e aponta  as “tecnologias”, os procedimentos e técnicas sociais que produzem a sexualidade tal como a vivemos, em um mundo de representações urdido pelos discursos, imagens, saberes, críticas, práticas cotidianas, senso comum, artes, medicina, legislação .

Como esquecer os investimentos econômicos e midiáticos em torno do sexo, neste mundo de imagens no qual estamos mergulhados, das mensagens explícitas e implícitas que ativam todo um campo conotativo em torno da sexualidade, da juventude, beleza, prazer e emoção? O indivíduo assim interpelado aceita e incorpora a imagem que lhe é oferecida e as opções que lhe são reservadas como sua própria representação; torna-se assim a incarnação da representação social, auto-representação de uma identidade que lhe é conferida. Baczko observa que a produção dessas imagens e representações no quadro de um imaginário específico à uma certa coletividade “[...] designa sua identidade elaborando uma representação de si; marca a distribuição dos papéis e posições sociais; exprime e impõe certas crenças comuns implantando principalmente modelos formadores [...]”(Baczko,1984, 32)

Nomeação, designação: quando se designa, cria-se uma identidade material em torno da sexualidade e em seguida ela é nomeada: heterossexual, gay, lesbiana, travesti, transexual, etc. Mas a norma, o paradigma de referência é sempre a heterossexualidade. E cada tipo de sexualidade, assim narrada e analisada tornar-se-á um todo identitário, dotado de uma coesão intrínseca, essencial, porque não “natural”, de uma natureza boa ou má, segundo o caso. Teresa de Lauretis , neste sentido, indica a representação como sendo o local da construção do gênero sexuado:

“O gênero é a representação da qual não se pode negar as implicações reais e concretas no social e o subjetivo compondo a vida material dos indivíduos. Ao contrário. A representação de gênero é sua construção e em um certo sentido pode-se dizer que a cultura e a arte no Ocidente são a marca da história desta construção.” ( de Lauretis, 1987,3)

Um nome, um perfil, uma classificação, uma tipologia nos é dada? Dizem os homossexuais. Nós as adotamos e deste lugar de fala iremos reivindicar a existência social. Em que medida, entretanto, esta adoção não irá reproduzir o esquema binário do casal, da monossexualidade, da moral corrente, das relações de poder e de dominação?

Porque deveríamos aceitar que nossa identidade seja aquela ligada à sexualidade? Em que medida o “sexual” é pertinente para classificar as relações entre as pessoas? No assujeitamento à sexualidade podemos identificar o “dispositivo” agindo, ao qual se refere Foucault:

“Muito mais que um mecanismo negativo de exclusão e rejeição, trata-se de criar uma rede sutil de discursos, de saberes, de prazeres, de poderes; [...] de processos que disseminam ( o sexo) na superfície das coisas e dos corpos, que o excitam, manifestam e fazem-no falar, implantando-o no real e conjurando-o a dizer a verdade.” ( Foucault, 1976, 97)

 As evidências ligadas à sexualidade abrigam uma pluralidade de sentidos, cuja cooptação pelo “sex-gender-system” (de Lauretis, 1987,5) tende a reduzir a polissemia. Apelando à intensificação da atividade sexual , chega-se à proliferação de formas de sexualidade em seguida trazidas à ordem de um imaginário normativo, que reduz sua força de transformação de um sexual binário.

Neste sentido, as relações homossexuais perdem seu poder de inserir o novo, de quebrar as normas das relações estabelecidas no quadro do gênero binário, quando se instalam no “casal” partilhando os valores morais dominantes, assim como suas ambiguidades. A evidência da noção de “casal” se estilhaça logo que começamos a interrogar com maior acuidade sua constituição: com efeito, o que é um casal? Duas pessoas que se amam? Que vivem juntas? Que dormem na mesma cama? Sua formação está baseada em uma relação sexual? Ou quando há uma emoção partilhada? Que gênero de emoção? Física? Todas as opções? Uma só dentre elas? Quantas duplas heterossexuais ou homossexuais não dormem mais juntos, não “fazem mais amor” e são vistos/as sempre enquanto um casal? E todas estas questões não se colocam no vórtice de um imaginário social que se constrói no momento de sua enunciação? A evidência da noção de “casal” se esconde no esforço mesmo de sua definição.

E os Quaeers? Queer, em um primeiro momento foi o nome dado aos homossexuais, os “bizarros”; em seguida, um novo fenômeno se introduz no discurso e a prática correspondente se revela, tomando para si esta denominação : o bissexualismo.[2]

Este seria um movimento para ultrapassar os limites, quebrar as barreiras impostas pela domesticação de sexualidades diversas, seria finalmente, em sua ambiguidade, a resposta à emoção marcada incontornavelmente pelo binário?

Mas qual o desafio, em relação ao feminismo? De fato, o quadro conceitual vai além de uma certa prática sexual ambígua: a heterossexualidade compulsória, “natural” é posta em questão em uma nova política da sexualidade, onde o binário obrigatório vê-se contestado. A heterossexualidade compulsória já vinha sido denunciada pelas feministas desde os anos 70, entre as quais Gayle Rubin( 1975) Adrienne Rich (1981) et Wittig (1980), entre outras; mas, na prática, o homossexualismo reproduzia em parte o binarismo social.

Chrys Ingraham enfatiza a importância da imaginação heterossexual particularmente presente na estruturação da noção de gênero, binária, que bloqueia assim toda análise crítica da heterossexualidade enquanto instituição organizada e culturalmente construída. (Ingraham, 1996, 169)

Desta forma, os estudos sobre o gênero durante longo tempo viram a heterossexualidade como uma realidade dada, natural, sem questionamento, ligada ao sexo biológico, enquanto que o gênero, o papel social era concebido como construto social e organização primária das relações humanas. Seria preciso entretanto , levar o raciocínio às suas últimas consequências, à seus últimos bastiões, ou seja, pensar igualmente o sexo biológico como fazendo parte de uma representação social. Para isto, Ingraham propõe a noção de heterogênero.

Assim , e se tentássemos aprofundar o que de fato dá à heterossexualidade o selo da normalidade? O sexo biológico determina verdadeiramente uma “relação natural”?

Elisabeth Daumer ( Daumer, 1992, 96) tenta responder esta questão com uma outra interrogação: a heterossexualidade é uma relação de penetração? E eu acrescento: que tipo de penetração? Se não há penetração vaginal, mesmo entre homem e mulher, sua relação é ainda uma relação heterossexual?

A heterossexualidade tem por fim a procriação, é centrada na perspectiva reprodutiva? Se não, porque o heterossexual seria “normal”? Caso afirmativo, um casal que não pode ter filhos seria heterossexual?

Com efeito, o “natural” do sexo biológico reside sobretudo na possibilidade de procriação e esta perspectiva está na ordem de valores, da moral, logo, construída social e historicamente, em uma rede de sentidos que faz circular as normas datadas como sendo verdades universais, “naturais”. Instinto, diriam alguns? O instinto evocado em matéria de procriação não é senão um fator de exclusão para os que não o percebem assim: por exemplo, a mulher que não é mãe, nem quer sê-lo, não é uma “verdadeira” mulher. É uma forma de se fundamentar em uma pretensa “natureza” dos seres, que os estudos sobre o gênero vem desconstruindo.

O estado civil naturalmente simplifica as coisas no que se refere à noção de casal, mas como classificá-los quando, como no Canadá, muitos direitos são concedidos aos casais do mesmo sexo?

A noção de heterogênero adotada por Ingraham leva-nos à equação : heterossexualidade/ natural e gênero/ cultural, ou seja, a prática da sexualidade ligada ao sexo biológico remete à construção social, da mesma forma que os papéis sociais do feminino e do masculino. O “natural” é recolocado na ordem do imaginário instituinte das práticas sociais. (Ingraham, 1996,169) Se a sexualidade foi trabalhada nos estudos sobre o gênero, tendo em vista a divisão binária do humano a partir das construções baseadas sobre o sexo a prática heterossexual subtende-se entretanto, nestas análises em torno dos grandes esquemas de poder social: casamento, família, maternidade, contracepção, violência, abuso, prostituição, etc. Assim, para Ingraham, a noção de heterogênero é mais central que a de gênero apenas, pois esta lhe é subordinada.

O que a autora insiste em sublinhar é o fato que, apesar de sua extrema importância na análise das relações sociais, a categoria gênero elide a instituição da heterossexualidade e contribui, assim à manutenção da ordem que critica. Segundo esta autora, “[,,,] esta participação ao imaginário heterossexual não faz senão reproduzir as condições sociais que elas querem interromper. “( Ingraham, 1996,179)

Isto significa que a ordem hegemônica dos valores se rearticula na afirmação da atração “natural” entre dois opostos, à parte de toda produção social. Para de Lauretis, o sex gender system apresenta uma oposição conceitual rígida e estrutural dos dois sexos biológicos; sublinha, entretanto, seu caráter de construto sociocultural, aparelho semiótico e sistema de representação que dão uma significação – identidade, valores, prestígio, status, etc. . Assim, para esta autora, “[...] a construção do gênero é ao mesmo tempo o produto e o processo de sua representação”. " ( Lauteirs, 1987,5)

Com efeito, a apreensão do sexo biológico não é necessariamente realizada da mesma maneira , na imensa pluralidade das formações sociais: assim, os hermafroditas, por exemplo, poderiam ser considerados como os seres existentes mais perfeitos. No imaginário social, o Um, neste caso, seria muito mais importante que o Dois, da relação binária entre os sexos.

Neste sentido, analisar o gênero na representação binária não é suficiente pois o processo não está interrompido; se a diferença é colocada entre mulher e homem no cultural E no biológico, o referente será inevitavelmente o masculino e a cadeia de representações continuará a se desenvolver. O feminismo se esfalfa assim em um imaginário social que muda as posições das cartas, mas mantém seu valor intrínseco.

No quadro teórico proposto , de um imaginário instituindo as relações sociais a partir de representações generizadas chega-se à mesma conclusão que Monique Wittig: a heterossexualidade se funda na ordem do político, na fundamentação do poder. ( Wittig, 1992, XIII)

No sistema classificatório que marca as práticas e as identidades sexuais, existe uma imensa confusão entre zonas erógenas, órgãos de reprodução e determinação sexual, articulando sexo e sexualidade como se houvesse uma determinação recíproca e incontornável. Se o binário não é senão uma construção social erigida em saber inquestionável, em fato biológico, é preciso saber qual é a significação atribuída ao conceito de “natural” aplicado ao sexo. Quais os efeitos de poder que fundamentam a naturalização do sexo biológico? Que força poderosa é tirada da domesticação do múltiplo, da repetição do Mesmo identitário?

À crítica feminista a tarefa de aprofundar estas questões. Neste sentido, a noção de heterogênero aparece como importante instrumental teórico já que propõe na ordem epistemológica e política um questionamento tão radical das relações sociais quanto o da teoria da construção dos gêneros, em sua época.

Nesta perspectiva, para de Lauretis, o sujeito do feminismo torna-se um construto teórico que se encontra no interior e no exterior da ideologia do gênero, “[...] consciente que assim é, consciente deste duplo impressão, desta dupla visão, desta di-visão. “ ( de Lauretis, 1987, 10).

Isto nos leva a uma outra dimensão, da identidade fluida nas práticas sociais , que é a afirmação da bissexualidade enquanto ambiguidade assumida. A mídia se apodera do tema, o V Congresso de Bissexuais ocorreu em Boston entre os dias 3 e 5 de abril de 1998, na Internet os “chats” bissexuais se multiplicam, o mundo do espetáculo se descobre e se revela enquanto tal. Mas seria uma identidade, dizer-se bissexual?

Um princípio positivista identitário muito simples pode ser assim enunciado: “O que é , é; o que não é, não é.” Esta fórmula ingênua e totalitária é ao mesmo tempo negada pela multiplicidade do real e reivindicada por todos os movimentos de identificação.

De um lado, como sublinha Jean Carabine ((Carabine, 1996,50) os indivíduos tem identidades múltiplas, não apenas determinadas pela personalidade ou pela sexualidade, mas que se manifestam pelas necessidades ou expressões diversas, segundo os contextos e os momentos.

As performances sociais adequadas , segundo as normas, resultam em uma identidade que nos torna visíveis ou que nos permite ser reconhecidos por aqueles que chamo “os meus”. Os movimentos homossexuais, adotando a diferença que lhes é imposta, constróem igualmente um núcleo identitário – ser lesbiana ou gay no sentido ontológico – e criam assim um novo espaço de exclusão: os bissexuais seriam assim os Queers dos homossexuais, da mesma maneira que estes últimos seriam os Queers dos heterossexuais. A bissexualidade seria esta nova forma que amor que “não ousa dizer seu nome”? (Goldman, 1996, 175) E porque devo dizer “amor” quando falo de sexualidade senão para acentuar os valores culturais ligados ao sexo?

Elisabeth Daumer ( Daumer, 1992, 90-95)criou um personagem bissexual, Cloé, que sonhava com pessoas sem gênero ou sem sexo, ou mesmo andróginas, apenas humanos com os quais ela não seria “mulher” ou “lésbica”; não imaginava uma instabilidade ou uma indecidabilidade, mas uma intimidade não normatizada em quadros ostensivos de identidade sexual que se tornaria assim uma criação contínua. Uma liberação enfim dos limites identitários e da identidade ligada ao sexo. Esta autora considera entretanto os aspectos positivos e negativos desta bissexualidade Queer : existe o risco de uma falsa unidade na qual todos os Queers estariam contidos: uma identidade alternativa, uma terceira opção que apagaria as diferenças e o poder que delas advém. E por outro lado, a denominação – bissexual – pode ainda ser uma identificação no quadro binário de gênero, pois aí permanece a noção que divide a pessoa, homo ou heterossexual, segundo as polaridades do momento. É uma mudança de identidade sem efeito transformador na medida em que os papéis de gênero podem se reproduzir em uma relação homossexual. Enquanto a bissexualidade será colocada como escolha entre dois pólos baseados sobre o sexo biológico e o gênero cultural, seu potencial subversivo , transformador, de uma posição de contra-imaginário, será reduzido. Esta escolha, para os homossexuais, aparece como uma expressão oportunista das vantagens de ambos.

De forma global, a bissexualidade tende a obscurecer a opressão das mulheres demonstrada pela categoria “ gênero” e  torná-las ainda mais invisíveis no mundo gay. Aliás, a apropriação da palavra “gay” para os indicar os homens homossexuais é também um sinal de uma divisão generizada e talvez valorativa. A palavra “gay” desloca os termos pejorativos usados para designar a pederastia, enquanto que “lésbica” distila conotações negativas.

Mas tendo em vista que a ambiguidade e o paradoxo fazem parte integrante do mundo, a bissexualidade Queer por um lado acentua a descontinuidade entre os atos sexuais e as escolhas afetivas mas por outro, reafirma a política de identidade, como sublinha Daumer, no artigo mencionado. Esta mesma ambiguidade, porém,  contribui a aprofundar a percepção das diferenças, culturais, sexuais, generizadas, abrindo o caminho à multiplicidade. (Goldman,1996.176)

A sexualidade enquanto verdade intrínseca do ser fica assim desestabilizada para realçar as escolhas pessoais da experiência no sentido apontado por de Lauretis, isto é, “[...] o conjunto de efeitos de significação, de hábitos, de disposições, de associações e de percepções que resultam da interação semiótica de si e do mundo exterior”. ( Lauretis, 1987,18)

Daumer propõe a bissexualidade não como um movimento de integração do heterossexual e do homossexual, mas como ponto epistemológico e ético a partir do qual pode-se examinar e desconstruir o quadro binário do gênero e da sexualidade. ( Daumer, 1996, 98). Integra assim bissexualidade e queerness, na medida em que sugere a abertura de um novo universo de percepção – sexual, emocional , erótica – contemplado na multiplicidade de suas escolhas tópicas: na dimensão do Queer, todo o mundo não é Queer da mesma maneira. A ética Queer seria assim a articulação das diferenças individuais, colocando em causa toda identidade fixa, imutável ( Daumer , 1992,103. ), desestrututando, de fato, a categorização do mundo em masculino e feminino.

Finalmente, qual a significação dada a esta palavra: Queer? Quais são as representações que a compõem?

Queer, no sentido aqui proposto não é somente uma sexualidade alternativa, mas um caminho para exprimir os diferentes aspectos de uma pessoa, um espaço também, para a criação e a manutenção de uma polimorfia de um discurso que desafia e interroga a heterossexualidade.

A queerness desafia igualmente a noção de identidade, nega o essencialismo generizado ou homossexual, na medida em que se organiza na performance de identidades plurais, que se constróem a cada dia. A identidade seria assim uma construção em permanência, um processo sem margens e sem limites. (Goldman ,1996,173) Neste sentido , a identidade não é o sexo, não é a sexualidade, eu não sou um ser generizado ou desviante da norma, EU SOU EU.

No mundo das representações sociais , como mudar a imagem do corpo, a imagem do outro, referente de minha própria imagem, como quebrar a norma que cristaliza o comportamento? Como iniciar um contra-imaginário que abra os horizontes das relações humanas, além dos papéis preestabelecidos, do poder maciço que investe as polarizações de gênero, como criar o novo nas redes de sentido atravessadas de tradições, de marcas, de escanções que acompanham nossas vidas?

A teoria elabora as questões, mas a prática social já está presente em uma política que atravessa de seu poder o domínio estereotipado do imaginário social. Pouco importa os lados negativos da bissexualidade, pouco importa as atitudes individuais: o paradigma está quebrado, a coragem de assumir suas emoções se propaga. Paradoxalmente, a bissexualidade poderá talvez quebrar os grilhões da prisão da sexualidade generizada, da identidade sexual, armadura invisível que nos entrava os passos, no momento em que nos julgávamos livres.

Uma percepção do corpo como um todo de sensibilidade e de sensualidade, uma desestabilização da sexualidade centrada nos órgãos genitais, uma abertura para a emoção que atravessa os olhares, seria uma nova erótica social? Identidade sem limites e sem definições. A âncora está partida, o apelo do largo nos traz o gosto da descoberta.

O princípio é: no universo Queer, todo o mundo não é Queer da mesma maneira. ( Daumer, 1992,100) Somos sempre o Queer de alguém, a diferença sem fundo, o simulacro apontado por Deleuze. O Universo Queer é a “mise en abîme” da diferença, desafio para os próximos anos do feminismo.

 

Bibliografia

 BACZKO, Bronislaw (1984). Les imaginaires sociaux, mémoires et espoirs collectifs, Paris, Payot, 242 p.

CASTORIADIS, Cornelius (1986). Domaines de l'homme, Paris, Seuil, 454 p.

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DAUMER, Elisabeth (1992). Queer ethics; or the challenge of bisexuality to lesbian ethics, Hypatia, vol.7, n0 7, p.91-105

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FOUCAULT, Michel (1971). L'ordre du discours, Paris, Gallimard, 82 p.

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JODELET,Denise ( 1989). Les representations sociales, un domaine en expansion, dans Denise Jodelet (dir) Représentations sociales, Paris, PUF, 424 p.

RICH, Adrienne (1981) La contrainte à l'hétérosexualité et l'existence lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, Ed. Tierce, mars , n01, p.15-43

WITTIG, Monique (1992).The straight mind and other essays, Boston, Beacon Press,110pgs.

 

 

[1] Doutora pela Université de Paris III, Sorbonne, Pós-Doutorado no IREF ( Institut de Recherches et Études Féministes) Université de Québec à Montréal-Canadá, Prossora convidada na Universidade de Montréal – Departamento de História – Montréal, Canadá e Professora do Departamento de História da Universidade de Brasilia.

[2] Ver, a este respeito, por exemplo, Weise, Elisabeth Reba (ed.) USA. Closer to home, bisexuality and feminism,1992.