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Grupo de Trabalho 7
Geração, a “Diferença” do Feminismo

Alda Britto da Motta[1]

O feminismo, além de feliz construtor da categoria gênero nas Ciências Sociais e na História, tem sido, também, grande responsável por uma análise mais complexa do social, do ponto de vista da articulação das suas relações mais determinantes. Vem fazendo isto segundo condições presentes na sucessão do tempo social, em trajetórias teóricas que derivam da dinâmica da sociedade, e que têm revertido em reflexão e ação sobre a própria trajetória do Movimento, que se veio rendendo às evidências do que o mantém coeso e do que tende a segmentá-lo, e pelo menos as discute.

Primeiro foi a percepção da dinâmica de gênero e classe social, a discussão acesa sobre o diálogo ou o “casamento (im)possível” com o marxismo, e toda a fecunda produção em torno do trabalho das mulheres. Logo desvenda-se a importância do enfoque analítico sobre a reprodução – e não apenas sobre a produção – e a “descoberta” do patriarcado como elemento explicativo nos jogos de poder no interior das famílias. Não dura a alegria da proposta da “sisterhood” – desenvolve-se com grande impacto a inclusão questionadora, de severas conseqüências políticas, da categoria “raça”. E enquanto se continua a discutir a produção das diferenças e de subjetividades conflitantes, na análise e na prática feministas (porque as categorias são tanto teóricas quanto da ação política), sem suficiente reflexão sobre as contradições e ambigüidades que essas categorias podem imprimir e expressar, ainda se deixa de lado o par conceitual idade/geração, sua produção histórica, sua dinâmica atual, a própria condição etária das mulheres – e já estamos na segunda (ou terceira?) geração do movimento feminista.

Esse descompasso, em parte certamente se deve ao fato de não serem, ainda, os grupos ou movimentos de origem ou inspiração etária portadores de suficiente substância política para terem demonstrada a importância da inclusão teórica ou expressão analítica da idade, principalmente quando articulada a outras categorias determinantes como gênero, raça e classe social. Movimentos de jovens, cindiram-se ou concentraram-se em questões que não apontaram diretamente para a identidade geracional, tais como o estudantil e o “hippie” dos anos 60. Adultos plenos, já têm o poder sem maiores lutas. Velhos, são um coletivo recente em participação social. Apesar de bastante promissores nos movimentos de aposentados e na recém-conquistada “liberdade” e alegria das mulheres dos grupos de “terceira idade”. (Estes, ainda objeto de insuficiente percepção pública).

A idade, entretanto, bem reconhece a Antropologia, é um componente bio-sócio-histórico estruturador na organização das sociedade, inclusive com definição simbólica forte, e as gerações são parte da dinâmica coletiva que as impele e lhes imprime continuidade social; ambas as esferas realizadoras ou participantes das relações de poder na sociedade. Impossível, portanto, ignorá-las ou menosprezar sua importância analítica, principalmente na construção de diferenças e de desigualdades sociais.

Ora, na pendência teórica sobre o modo como se constróem e exercitam as desigualdades e as exclusões, quanto ao gênero (sexismo), à raça (racismo) e às posições de classe, está faltando a discussão sobre diferenças e preconceitos construídos nas relações entre as idades e gerações, ainda intraduzível o neologismo “ageism”.

Para o feminismo, que se construiu inicialmente como movimento de mulheres brancas, ocidentais e “burguesas” (ou “liberais”), parece que não ficou bem percebido que elas eram também jovens ou adultas plenas – portanto, de específicas faixas etárias; aquelas mesmas posições geracionais de onde iria sair, posteriormente, a maioria das lideranças femininas da política partidária, dos movimentos sociais urbanos e dos sindicatos. Desde sempre, ao exporem depoimentos pessoais, trabalhos de grupos de conscientização, ao proporem políticas, tudo esteve orientado para – e por – um grupo etário, não mencionado de tão “evidente”... No fundo, mulheres em idade reprodutiva, exatamente como se seleciona nos vários âmbitos de regulação social e de políticas públicas, que o feminismo, por outras razões, critica...

Hoje, na busca ou manutenção de uma desejável coerência teórica e política – com a discussão de outras categorias também determinantes, impressentidas no início ou no desenrolar da trajetória do feminismo – falta percepção suficiente para uma outra urgência, – mais além do cotidiano – motivada por propostas, discussões ou adoções de políticas públicas que têm a ver com novas regulamentações em torno das idades, cujo exemplo mais flagrante é – e não apenas no Brasil – a questão da Previdência Social. Realmente, com a ainda vigente orientação ou regulação das sequências da vida dos cidadãos pelo Estado, e como elas são o resultado, nem sempre o mais justo, de múltiplas formas de interferência, é importante a atenção ou o empenho também nesse âmbito.

Enquanto desenvolvo pesquisa sobre um segmento social que é definido basicamente pela idade/geração – embora vá mais além dela – a dos velhos e “envelhecentes”, venho buscando situar teoricamente esse par de categorias, relativamente pouco estudado em seu caráter de dimensão fundante da vida social. Nesse percurso, tenho sentido mais diretamente a falta da reflexão feminista, mais estranho ainda quando as “históricas” já não são jovens... Registro, também, alguns fatos laterais curiosos: as escassas discussões sobre a menopausa a situam mais como fenômeno psico-social, até de remissão à sexualidade, “of course”, mas não, realmente, como uma passagem no percurso de vida, que se mede, em última análise, pela idade e que, enfim, também sinaliza para o processo de envelhecimento. As próprias críticas que o movimento faz às políticas governamentais na área da saúde, são justas, quanto ao mérito, mas incompletas, porque não referem que nem todas as faixas etárias são atendidas. Na última campanha nacional de prevenção contra o câncer do colo do útero, por exemplo, as faixas etárias contempladas não ultrapassavam a meia idade – e não soube de qualquer protesto do Movimento ou de nossas representantes no Parlamento, em torno disso.

Motivada por ausências como essas, perguntava, em oportunidade anterior (1998): Para onde foram as experiências vividas e a antiga sintonia feminista com o tempo social? Excetuando-se o vanguardismo de Simone de Beauvoir (1949 e 1970 originalmente) e da nossa também pioneira Carmem da Silva (1984)[2] só bem mais recentemente as veteraníssimas Germaine Greer (1991) e Betty Friedan (1993) arriscaram falar sobre a maturidade e a velhice – em livros que não alcançaram nem credibilidade científica nem expressão social.

No Brasil, não ultrapassamos com sucesso a breve “idade da loba” (Lemos, 1995) a não ser na realidade paralela da literatura “feminina” (por exemplo, Lígia Fagundes Teles).  Mesmo no recente Da Contracultura à Menopausa (Ciornai, 1999), os desafios coletivos que as mulheres vivenciaram na juventude parecem ter ficado perdidos no percurso da vida, e as reflexões atuais das participantes estudadas escorrem pelo funil das individualidades.

Os hoje numerosos bons estudos realizados sobre categorias de idade, principalmente sobre o envelhecimento e a velhice, situam-se no correto procedimento científico de desvendar uma realidade, mas em grande parte não se propõem a contextualizar a temática do ponto de vista estrutural das relações entre as idades e gerações, inclusive com um intuito mais fundo de transformação social. Em natural descompromisso com o Movimento Feminista, não expõem trajetórias existenciais, sua vida como espelho, e uma experiência autocrítica. Como a própria Simone só iria fazer depois do monumental A Velhice (1990), no devido tempo da narrativa autobiográfica de cada idade.

Ainda naquela referida ocasião (1998) perguntei, deslumbrada com os desvendamentos que o estudo da idade de velho me propiciava:

“... para onde foi o antigo compasso com os grandes temas e movimentos dos idos de 60 e 70, e a resposta da militância? Onde fica, para o feminismo, a grande questão contemporânea da velhice (em expansão demográfica e particularmente feminina) na reprodução social?”

  Continuo perguntando: Para onde foi o grande afã de criação teórica do feminismo (que beleza, o teórico para alimentar e impulsionar o político, e ser, por sua vez, informado e (trans)formado por ele!), que não vê porque se ocupar da dimensão de idade e geração, categorias relacionais e da experiência, como gênero, raça e classe, e determinantes de diferenças e de desigualdades como estas!

Todas elas produziriam polaridades ou contradições, enquanto geração seria apenas hierárquico, também se argumenta. Mas, onde se põe o primevo conflito de gerações, e as formas de desigualdade e exercício do poder geradas por esses embates, que, historicamente, sempre puseram cada um “em seu lugar”? (Bourdieu, 1983, p.112).

Sim, porque todas essas categorizações e posições fundam diversidades, diferenças e oposições entre indivíduos e entre coletivos, portanto, também separam as mulheres, como gênero; e quando feministas, dificultam a sororidade e a clareza da luta pela equidade.

Com essas preocupações desde trabalhoS anteriores (1994, 1996), venho discutindo idade/geração exatamente nesse marco das relações de poder, e como categorias de grande complexidade analítica, porque se realizam num entrelace mútuo que se faz e desfaz, ao mesmo tempo em que se articulam com outras categorias relacionais, em imagens caleidoscópicas (1997) ou como dimensões co-extensivas, isto é, que “recobrem-se parcialmente uma à outra” (Hirata, Kergoat, 1993).

Essa complexidade analítica do par conceitual idade/geração estende-se, pelo fato de que, além de se referir a uma dimensão fundante da vida social (como é também o sexo/gênero), e guardar essa relação inestrincável com categorias de semelhante magnitude teórica,  projeta-se mais diretamente que aquelas, em uma especial dimensão ou abrangência temporal, ao mesmo tempo “natural” e social, através da qual faz e refaz seus significados. E estudando a velhice, a categoria tempo torna-se crucial.

A noção de tempo é também inerente ao conceito de “habitus”, em Bourdieu (1990, p.30-32) – um tempo social, uma construção de práticas “imediatamente ajustadas ao presente”.  Esse conceito multívoco (“hábitus” de classe, talvez também segundo o gênero), pode remeter ainda a uma formação segundo as idades, e contribuir para a compreensão da categoria velhice e sua produção social.

“O ‘habitus’, que é o princípio gerador de respostas mais ou menos adaptadas às exigências de um campo, é produto de toda a história individual, bem como, através das experiências formadoras da primeira infância, de toda a história coletiva da família e da classe...”

“...basta que os agentes se deixem levar por sua ‘natureza’, isto é, pelo que a história fez deles, para estarem (...) ajustados ao mundo histórico com o qual se defrontam, para fazerem o que é preciso (...) O contra-exemplo é o de Dom Quixote, que coloca em ação num espaço econômico e social transformado, um ‘habitus’ que é produto de um estado anterior (...) Mas bastaria pensar no envelhecimento.”

Bourdieu em outro momento (1983, p.118) discute a alternância ou sucessão de gerações em termos de leis específicas de envelhecimento para cada campo, e chega às diferenças que geram conflitos, também conseqüências de diversidades de localização no tempo social:

“...as aspirações das sucessivas gerações, de pais e filhos, são constituídas em relação a estados diferentes da estrutura de distribuição de bens, e de oportunidades de acesso aos diferentes bens (...) E muitos conflitos de gerações são conflitos entre sistemas de aspirações constituídos em épocas diferentes.”

  A idéia de tempo social concentra outras articulações e formas de análise possíveis: entre o tempo histórico e o tempo biográfico; ou como expressa Zárraga Moreno (1991:1-2): o tempo da mudança social e o tempo dos indivíduos enquanto agentes sociais. Ou um tempo social etário e um tempo social geracional. Muitas categorias e enfoques para expressar as clássicas dimensões da relação indivíduo/coletivos/contexto social. Impossível a análise sem articulá-las, ainda que em intensidades diferenciadas de abordagem.

O tempo dos indivíduos é expresso mais perceptivelmente pela idade, mas é também socialmente construído, e institucionaliza-se, isto é, adquire significado mais diretamente social, como categorias ou grupos de idade – jovens, adultos, velhos – ou como legitimidades para realizar, ou não, tal ou qual ação social.

O tempo das gerações tem um sentido eminentemente social e histórico. Apesar da remissão conceitual também forte à família. Conta com uma tradição de análise filosófica  (Ortega, Gasset, 1923; Julian Marías, 1949), mas apenas recomeça a ter um estatuto teórico construído nas Ciências Sociais, bastante  esquecidas de Mannheim (1952). Na discussão mais recente sobre categorias relacionais e construções culturais, quando se vai até as idades, tem-se sugerido a equivalência do par de conceitos idade/geração com outros pares já mais trabalhados teoricamente: geração estaria para idade como gênero está para sexo e etnia para raça. Isto é, ter-se-ia uma elaboração de ordem cultural ou simbólica sobre o seu correspondente par biológico. Reluto, diante desse dualismo tão simples. O “biológico” idade, referente ao tempo “natural”, não é também de inscrição tão subjetiva nos indivíduos e nos grupos, no seu desconstruir-se/(re) construir-se anual, ao sabor das representações culturais de cada grupo?

A inseparabilidade e intercambialidade analítica das duas categorias de experiência – ou de situação – podem ser exemplificadas na asserção de Zárraga Moreno (1992, p.28): “Toda geração é determinada pela sucessão de conjunturas históricas em que vive, ainda que o efeito... de cada conjuntura seja distinto de acordo com a categoria de idade em que se encontra cada geração.” 

Assim como a inseparabilidade analítica entre idade/geração e outras categorias relacionais: “A determinação geracional não é, em cada conjuntura, nem única nem unívoca (...) É distinta em cada classe social, em cada categoria de sexo, etc. É específica para cada uma delas.” (ibid.)

Como geração, os indivíduos se reconhecem, mas, inescapavelmente, como projeção coletiva. E vários grupos se identificam como construtores de cultura ou de mudança política, em determinados momentos históricos.

Mannheim produz a primeira conceituação sociológica da questão, definindo gerações em analogia com as classes, como “localizações” ou posições na estrutura social e na história, terminando por esclarecer que enquanto a posição de classe “baseia-se na existência de uma estrutura econômica de poder”, a posição da geração “baseia-se na verificação do ritmo biológico na existência humana” e na “ligação a uma posição comum na dimensão histórica do processo social.” (Mannheim, [s.d.])

É ainda Zárraga Moreno (1992, p.26)  que mais explicitamente enuncia essa diferença: “A classe social é (...) a determinação da estrutura do sistema de produção” e “a geração é a determinação do modo de reprodução da sociedade”. E que também define as idades: “ Como conceitos sociológicos, as categorias de idade (...) são condições sociais e processos sociais nos ciclos da reprodução dos agentes: cada categoria de idade é uma determinada condição de agente social e um determinado processo no ciclo da reprodução...

As gerações figuram, então, uma categoria mais abrangente que as idades (em relação à sucessão no tempo e, sobretudo, a esse sentimento coletivo  que encerra), mas não em todos os sentidos de realização. Discutindo categorias de análise propostas por Fortes, Debert (1994, p.18) expõe outro ângulo:

“Enquanto as gerações têm como referência a família (...) [ou uma determinada sucessão no tempo, lembraria,] as idades são institucionalizadas, política e juridicamente. A organização geracional subsume a ostensiva descontinuidade geral. A idade, em contraste, opera atomisticamente, com o indivíduo formalmente isolado... e deixa a questão da continuidade... para a ordem institucional não-familiar.”

Isto é, para o Estado. As ações estatais, através do aparato jurídico e das políticas sociais, exatamente definem e regulam grande parte das formas de inclusão e exclusão social dos indivíduos e grupos, segundo sua condição etária. Veja-se, então, o que figura mais definidamente individual e particular pode projetar-se como o mais público  e formal. Por isso, aconselha Zárraga-Moreno (op cit.), melhor que falar em “pertinência” a uma geração ou a uma classe, seria falar de “participação” geracional ou de classe, dizer que os atores sociais concretos participam da (determinação de) geração ou de classe em tal ou qual forma concreta.

Idades e gerações são, então, importantes fatores de organização social. Isto é tão universal, “tão evidente” ... que não se costuma notar ou referir. (vide feminismo...) Entretanto, a condição etária e, especialmente, o envelhecimento, ainda são, como assinala Debert (1994, p.22), “mecanismos fundamentais de classificação e separação de seres humanos.”

Numa perspectiva de idade/geração, ser jovem, ou ser velho, é uma situação, vivida em parte homogeneamente e em parte diferencialmente segundo o gênero, a raça/etnia e a classe social dos indivíduos de cada grupo etário. Na perspectiva de gênero, a trajetória de vida de homens e mulheres vem determinando diferentes situações, atitudes, sentimentos e representações em relação às idades e, principalmente, à condição de velho(a).

Proposta uma análise da condição social atual de velhice, não há como fazê-la sem uma reflexão sobre as alternativas – solidariedades e entrechoques – da situação geracional, como também sem o conhecimento sobre os diferenciais de gênero e de classe social que a constituiriam internamente e lhe determinam específicos sentidos.

Por outro lado, proposto um estudo sobre a condição de gênero, não há como realizar uma análise plena sem incluir também as diferenças de idade, suas infugíveis classificações e prescrições sociais e o conhecimento da maneira como a sucessão da vida bio/social as transforma ou transformou.

Nas pesquisas que realizo, trajetórias sociais de gênero vêm demonstrando ser determinantes na situação real e nos sentimentos de pessoas idosas – ultrapassando, não raro, a diversidade de situação de classe. Homens e mulheres vêm-se colocando diferencialmente quanto a possibilidades e sentimentos de bem estar, liberdade e auto-realização na velhice (B. da Motta, 1994, 1995; Debert, 1994).

No entanto, a condição de idade, principalmente de mais idade, afeta diferencialmente homens e mulheres, tanto quanto a experiência de indivíduos das várias classes sociais. Há uma especificidade de gênero na situação de velhice, tanto quanto de idade e estágio geracional na condição de gênero. Há experiências comuns aos dois (ou todos...) (os) sexos na velhice, que vêm de vivências culturais e sociais de ordem geracional, inclusive pelo preconceito e desassistência sociais, mas há também “pontos de chegada”, atualmente bem diferenciados, que se explicam por essa diversidade de trajetórias de vida segundo o gênero, e pelo que a vida social está propiciando de novo, em termos de autonomia e bem estar, e que em grande parte é conseqüência das idéias e lutas feministas.

Na modernidade ocidental ser velha é, sobretudo, ter perdido uma importante e não-falada condição social de reprodutora. É, também, colher um pouco dos frutos desta nos filhos – uma compensação afetiva, um apoio ou uma carga, a depender do caso. Mas é, também, ir conseguindo (ou ter conseguido) a libertação de certos controles societários que se referiam justamente à reprodução e a tolheram durante toda a juventude. Essa libertação vem, surpreendentemente, entusiasmando as mulheres idosas, a ponto de, por vezes, obscurecer-lhes a percepção de toda uma gama de preconceitos sociais ainda vigentes em relação aos velhos e às mulheres.

Este é, certamente, o ponto nodal da diferença entre práticas e representações de velhas e de velhos. Estes como que ficam mais “realistas” ou mais dominados pela “ideologia da velhice”, enquanto elas se deixam levar pelo entusiasmo de uma “liberdade” recém-conquistada (Britto da Motta, 1994) e se tornam mais ativas, meio triunfalistas.

Pesquisas recentes vêm revelando que grande número de mulheres, independente da classe social, considera a sua etapa atual de vida, como idosas, o momento mais tranqüilo, feliz e livre que já tiveram (Ferreira e Rodrigues, 1992; Andrade, 1992; Britto da Motta, 1994, 1996; Debert, 1994). O fato de que a maioria das velhas atuais não alcançou vida profissional ativa e, ao mesmo tempo, teve vida social muito mais limitada que os homens da sua geração, está conduzindo-as a um sentimento de maior satisfação e plenitude. Na velhice, um tempo de consolidação de experiências, de libertação das obrigações e controles reprodutivos, tendo encontrado um tempo social propício à mudança, inclusive fermentado no caldo de cultura do feminismo, podem experienciar modos de vida novos. Essas mulheres falam, então, em liberdade, como se uma “liberdade de gênero” se sobrepusesse à condição (menos favorável) geracional ou de classe (Britto da Motta, 1994).

Conta D.C. de um Centro Assistencial, 73 anos: “Estou feliz. Agora que eu estou velha, ele (o marido) não se incomoda que eu saia, não. Eu me considero uma pessoa jovem, porque quando eu estava jovem eu nunca tive direito de ir a lugar algum.”

Também C., 77 anos: “Não tive uma vida boa. Hoje estou com mais liberdade.”

E D. R. de associação de bairro: “Tudo bem... aqui tranqüila.” (no grupo) “Ninguém me manda mais, chego em casa na hora que eu quero, não tem ninguém pra perguntar a hora que eu chego.”

 

Algumas dessas mulheres não deixam de referir problemas de saúde que julgam “da idade”, mas ao mesmo tempo podem se afirmar como “jovens”, porque essas experiências e prazeres referenciados à juventude elas só estão conhecendo na velhice. Principalmente a liberdade.

É uma estranha liberdade, a de todas elas. Estranha, pela dupla valência: como liberdade de gênero, assinala-se positivamente – mulheres que podem circular, viver conforme sua vontade; mas como liberdade geracional, e sobretudo existencial, tem também o sentido do marginalismo: podem sair, porque já não importam tanto; já não são bonitas (velho = gasto, feio), não irão atrair os homens, nem os de sua idade; já não reproduzem, não há muito o que preservar.

Os homens também falam em liberdade, mas com outros significados – e falam muito menos que as mulheres. Para os de classe média, liberdade se refere a “independência” ou “tranqüilidade econômica” (Debert, 1988). Para os mais pobres, essa “liberdade geracional” guarda também um forte conteúdo de classe: falam como ex-trabalhadores que atingiram uma época de descanso, em que, desobrigados do trabalho, têm mais tempo para o lazer (Souza et al., 1994).

Sr. M., 73 anos, de grupo de idosos em associação de bairro, declara, taxativo: “Eu me aposentei para me sentar.”

E sobre esse grupo, majoritariamente de mulheres: “Venho aqui pra dar risada e passar o tempo.”

Sobre as idosas de classe média, o segmento que acompanha mais diretamente a revolução de idéia do feminismo, assinala Debert (1988, p.68): “As mulheres percebem que vivem (...) uma experiência inédita na história. Suas mães e avós tornaram-se, com a idade, cada vez mais infelizes. Elas se vêem vivendo uma experiência de independência nunca antes experimentada.”

Como irão se sentir as atuais jovens profissionais, muito mais livres do que suas mães, no tempo da velhice? Mais próximas do modelo masculino atual de “independência”?

É o que já parece apontar, em 1981, a pesquisa de Lins de Barros sobre mulheres de classe média, profissionais, predominantemente solteiras ou viúvas. Sem família para “cuidar”, isto é, sem o tradicional ônus das obrigações domésticas, e sem o conhecido controle marital, se expressam simplesmente como profissionais e, não raro, encontram a liberdade também como viúvas.

Tudo isso sugere uma possível menor diversidade de experiências de gênero, na velhice, num futuro próximo e uma maior homogeneidade da vivência geracional, tornada, simultaneamente, mais e mais determinante.

Que postura assumirá o feminismo?

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[1] Professora Adjunto IV do Departamento de Sociologia  da Pós-Graduação em Ciências Sociais e Pesquisadora do NEIM/UFBa.

[2] Agradeço à companheira do NEIM/UFBa. Cecília Sardenberg a leitura do texto e a relembrança da saudosa Carmem.