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Grupo de Trabalho 6
Mulheres Negras e Educação: Trajetórias de Vida, Histórias de Luta
[1]

 Nilma Lino Gomes[2]

 

A trajetória escolar de professoras negras e sua incidência na construção da identidade racial é o foco principal deste artigo. Os resultados da pesquisa aqui apresentada bem como os posteriores estudos que a mesma possibilitou trazem como contribuição para o campo da educação, o relato, as lembranças, a prática e a reflexão de professoras negras, discutindo a forte inter-relação da questão racial, de gênero e de classe na escola.

Esses mesmos resultados apontam o quanto os educadores e as educadoras encontram-se desatentos/as ao fato de que a educação, a raça[3], o gênero e a classe são relações imersas na alteridade. Os sujeitos envolvidos no processo educacional - professores, professoras, alunos, alunas, pais e mães - constróem diferentes identidades ao longo da sua história de vida e profissional. A escola é um dos espaços que interfere e muito nesse complexo processo de construção das identidades. O tempo de escola ocupa um lugar privilegiado na vida de uma grande parcela da sociedade brasileira. Esse tempo registra lembranças, produz experiências e deixa marcas profundas naqueles que conseguem ter acesso à educação escolar. Tais fatores interferem nas relações estabelecidas entre os sujeitos e na maneira como esses vêem a si mesmos e ao outro no cotidiano da escola.

A pesquisa que serve como pano de fundo desse artigo realizou-se em uma escola pública municipal, na cidade de Belo Horizonte - Minas Gerais, nos anos de 1992-1993. Na época, a escola oferecia à comunidade o último ano da educação infantil e as quatro primeiras séries do ensino fundamental. Investiguei, como o contexto escolar vivenciado por mulheres negras contribuiu para a reprodução do preconceito e da discriminação racial e de gênero, e a interferência destes na prática pedagógica dessas mulheres. Busquei saber, também, se as relações estabelecidas em outros espaços sociais como a família, o círculo de amizades, o trabalho e a militância política exerceram influência na constituição do “ser mulher e professora negra”.

A história oral foi o procedimento privilegiado para a realização das entrevistas, possibilitando uma percepção profunda das várias dimensões da experiência de vida e profissional das docentes. O trabalho de tipo etnográfico realizado através das observações em campo, dos registros e da permanência da pesquisadora durante oito meses na escola, permitiu a análise do discurso sobre a questão racial presente no cotidiano escolar e nos depoimentos das professoras.

 Os resultados obtidos através dessa metodologia, revelam que apesar de estarmos no início de um novo milênio, o discurso sobre os negros na escola nos remete às teorias raciais do final do século XIX e a algumas outras teorias do início do século XX. Revela, também, a necessidade de analisar a raça e o gênero como categorias analíticas e dimensões da formação humana.

 

Escola, teorias raciais e imaginário social

 Não existe somente uma ideologia de classe no cotidiano escolar. Há também uma ideologia racial e de gênero. Estas ideologias pode ser observadas nas práticas, nos livros didáticos, na formação dos professores/as, nos discursos e nos valores.

Acredito que, nos últimos anos, o quadro das relações raciais no Brasil vem sofrendo mudanças significativas. Essa mudança é fruto de gestos coletivos tais como: o movimento nacional e internacional de organização dos negros e, mais especificamente, das mulheres negras e a luta pela garantia dos direitos sociais. Porém, ainda não chegamos ao ponto desejado. Falta muito para que a sociedade brasileira assuma que a luta pela superação do racismo e da discriminação racial e de gênero deve ser incorporada pela sociedade como um todo e não somente pelos grupos que se sentem diretamente atingidos pelo racismo e pelo sexismo. Falta muito para que nós, mulheres negras, sejamos consideradas sujeitos de direitos. A escola brasileira, enquanto instituição, direito social e dever do Estado[4] não pode se furtar a esse debate. Nem tampouco os educadores e educadoras podem se omitir e se esquivar diante dessa tarefa, quer sejam eles/elas negros/as ou não.

Ir contra a discriminação racial e de gênero que se manifesta explicitamente nas práticas pedagógicas é uma tarefa difícil. Porém, a visibilidade de uma ação discriminatória possibilita uma reação explícita, inclusive, apoiada na lei[5]. Contudo, é no campo do discurso, da fala e dos valores que os preconceitos raciais e de gênero mais afloram. É um campo movediço que possibilita a efetivação de práticas discriminatórias. Talvez as pesquisas educacionais não tenham dado, até hoje, a devida importância ao discurso das professoras quando este se refere ao negro e à mulher. Um discurso que se expressa através da fala e dos gestos. É através da fala das professoras que, muitas vezes, podemos ver a recorrência do pensamento racista e sexista. Uma fala por vezes confusa e contraditória, travestida de democracia racial e que imprime marcas profundas na construção da identidade racial de alunos/as negros/as e brancos/as. Uma fala que termina por confundir os avanços do movimento democrático garantidos na lei.

Podemos notar a força do discurso sobre o negro e sobre a mulher em frases aparentemente inocentes e tão presentes no imaginário e nas práticas educativas da nossa escola, como por exemplo: “Esta aluna é negra, mas é tão inteligente!” “Eu pensava que a professora do meu filho fosse assim... mais clarinha!” “ A professora usa caneta preta porque é preta.” “Também... as meninas de hoje acham que mostrar o corpo é que é bom. Aí, veja só... depois um tarado as encontra e elas querem ser as vítimas.” “A mulher hoje está confundindo o seu lugar com o do homem. Ela quer fazer tudo o que o homem faz”.

Essa mesma ideologia racial e de gênero não é formulada e desenvolvida pelos professores/as e alunos/as somente no dia-a-dia da escola. Ela está presente no desenvolvimento da carreira docente, desde o curso do magistério, passando pelos centros de formação, pelo curso de pedagogia, até a licenciatura. Por que? Porque a escola não é um campo neutro onde, após entrarmos, os conflitos sociais, raciais e de gênero permanecem do lado de fora. A escola é um espaço sociocultural onde convivem os conflitos e as contradições. O racismo, a discriminação racial e de gênero, que fazem parte da cultura e da estrutura da sociedade brasileira, estão presentes nas relações entre educadores/as e educandos/as.

Não podemos negar que o número de educadores e educadoras atentos a essas questões tem aumentado nos últimos anos, porém, a grande maioria ainda prefere discutir a escola somente do ponto de vista das desigualdades sociais. Tal atitude é reducionista, pois a realidade nos mostra que existem outras relações dentro da instituição escolar que interferem no processo de escolarização. Os valores que são transmitidos aos alunos/as dentro do ambiente escolar não são apenas aqueles pertinentes à classe social. São também raciais e de gênero. Reconheço que avançamos ao tomar consciência da resistência presente dentro da escola, mas esta não se reduz somente à luta da classe trabalhadora. É também a luta das mulheres e da comunidade negra.

A luta da comunidade negra brasileira se defronta com inúmeras práticas racistas em seu dia-a-dia. Na pesquisa realizada, trabalhei com o imaginário social, as concepções, os valores e a cultura que legitimam essas práticas. Estas remetem-nos à teorias que recolhem, expressam e legitimam esse imaginário. Essas teorias e concepções raciais ainda estão presentes na atualidade e continuam sua força ideológica não apenas entre a comunidade branca mas entre parcelas significativas da comunidade negra.

As teorias raciais presentes no cotidiano escolar e na sociedade não surgiram espontaneamente, nem são meras transposições de pensamento externo. Elas sofrem um processo de retroalimentação, e terminam por legitimar o racismo presente no imaginário social e na prática social e escolar. Como a força dessas teorias pode ser percebida no cotidiano escolar?

Durante a realização da pesquisa percebi a presença de um discurso sobre a incapacidade intelectual do negro. Semelhante àquele preconizado nas obras do médico Nina Rodrigues (1862-1906)[6], apoiado nas teses européias do racismo científico. A força da teoria da inferioridade biológica e intelectual do negro se faz presente não só no cotidiano da escola mas, também, na vida dos negros e negras brasileiros/as de um modo geral.

A defesa da mestiçagem como uma possível solução para o “problema racial” brasileiro, teoria divulgada na década de 20, também está presente na escola. Idéias como as defendidas pelo advogado e historiador Oliveira Vianna (1883-1951)[7] ainda se encontram difundidas entre nós. Sendo assim, percebe-se na escola a presença da ideologia do branqueamento, que se revela através de uma tentativa em “suavizar” a pertinência racial dos/as alunos/as e professores/as negros/as, apelando para as nuanças de cor como moreninho, chocolate, marronzinho, cor de jambo, ou até mesmo em expressões como “clarear a raça”.

A suposta primitividade da cultura negra[8] também pode ser encontrada no cotidiano e nas práticas escolares. Ainda assistimos às festas escolares, principalmente na comemoração do dia do folclore, números em que os/as alunos/as representam a contribuição das “três raças formadoras”, enfatizando a cultura européia como a matriz e a índia e a negra como meros adendos, ou seja, algumas “contribuições” nos costumes, no vestuário, nas crenças.

Outra teoria que também se apresenta com muita intensidade na escola é a democracia racial, em termos bastante semelhantes àquela defendida pelo sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) [9]. Essa corrente ideológica, divulgada a partir da década de 30, traz um certo “alívio” à consciência da sociedade brasileira. Ela afirma que as diferentes raças/etnias formadoras da nossa sociedade convivem historicamente de forma harmoniosa e sem conflitos. É a apologia à harmonia racial.

Embora rebatidas hoje por cientistas e intelectuais, do ponto de vista teórico, essas teorias estão ainda introjetadas no nosso imaginário e na nossa prática social. Estudos na área da Sociologia e Antropologia demonstram a influência dessas teorias no pensamento brasileiro. Sendo assim, é importante que os educadores e as educadoras reflitam, discutam e atentem para a influência dessas teorias no pensamento educacional. Essa presença ainda é tão forte que foi possível percebê-la nos depoimentos das professoras entrevistadas e no discurso da escola.

Não podemos deixar de pontuar que os anos 60 trouxeram um novo quadro no estudo das relações raciais no Brasil. Os cientistas sociais, apesar das suas divergências sobre a interferência da raça na mobilidade social, concluíram que quanto mais próximo da raça negra, mais provável seria encontrar o brasileiro nas camadas pobres e miseráveis da população. Iniciou-se a discussão sobre o fato de que as desigualdades sociais mostram, também, desigualdades raciais, questionando-se, assim, o mito da democracia racial.

Autores como Florestan Fernandes e Otávio Ianni trouxeram contribuições interessantes ao mostrar as desigualdades entre os segmentos brancos e negros da população. Realizaram uma análise das desigualdades raciais após o advento da escravidão, porém as interpretaram enquanto herança do regime escravista, que se tornava cada vez mais incompatível com a sociedade competitiva e dividida em classes.

Todavia, apesar da sua importância ao ressaltar a existência das desigualdades raciais, ajudando a desmitificar a democracia racial, a corrente da qual fazem parte esses sociólogos apresenta uma visão muito otimista quanto ao futuro das relações raciais na sociedade capitalista. Sob esse ponto de vista, a tendência da discriminação racial seria o seu desaparecimento com a industrialização.

Os estudos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva[10] vão mais além ao analisar as questões estruturais, a mobilidade social e a raça. Esses autores dialogam com as tendências que reduzem a condição da população negra no Brasil à mera questão de classe. Não negam a interferência da classe social para se discutir a questão racial na sociedade brasileira. Porém, seus estudos revelam que os negros, se comparados com o segmento racial branco pertencente à mesma classe social, sofrem uma desqualificação específica e, ainda, enfrentam desigualdades competitivas que se relacionam à sua pertinência racial.

Os autores apontam para o fato de que existe uma intencionalidade em reduzir a questão racial a uma problema de classe ou estratificação social, tornando o preconceito contra o negro esvaziado de suas implicações raciais, atribuído, pois, à posição sócio-econômica inferior que ocupa. Eles ainda concluem que tais argumentos não têm conseguido dar conta de todas as implicações existentes nas relações raciais e sociais no Brasil, uma vez que se apoiam em uma análise funcional e determinista da estrutura de classes e das relações de poder na sociedade.

É interessante notar que, ao analisar a situação do negro, a escola, hoje, quando consegue realizar um discurso menos estereotipado sobre a questão racial, consegue chegar somente até os estudos de Florestan Fernandes e Otávio Ianni. Já os argumentos apontados por Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva e demais produções que dão centralidade à raça, são do conhecimento de um número limitado de educadores e educadoras. Esses estudos são mais conhecidos pelos militantes negros e/ou pelas pessoas que possuem um interesse pessoal no estudo das relações raciais. Nesse caso é interessante destacar que mesmo quando a escola tenta abandonar as supostas justificativas científicas das teorias raciais do final do século XIX e início do século XX, ela ainda enrijece a discussão sobre relações raciais em uma determinada leitura de classe. Se essa tendência é forte no que se refere à raça quando inserimos a discussão do gênero torna-se ainda mais complexa e difícil a tarefa de estabelecer um diálogo mais profícuo que articule gênero, raça e classe.

 

As mulheres negras que encontrei na escola

 Até que ponto as nossas análises girarão em torno de aspectos macros quando pensamos em raça, gênero e classe? Onde a subjetividade da mulher negra e professora encontra lugar? É sobre esse aspecto que iremos discutir a seguir.

Os sujeitos desta pesquisa[11] foram dezessete (17) professoras negras e brancas. Por ocasião do estudo aqui apresentado essas mulheres encontravam-se dentro da faixa etária dos 30 aos 50 anos de idade. Do total, somente três (03) eram solteiras.

Através dos depoimentos percebi como tem sido construída a identidade racial e profissional das professoras negras, sua relação com o trabalho e com a questão racial. Dentro desse processo intricado observei a presença de um discurso que, em alguns momentos, apresenta-se pautado na teoria racista e reproduz os estereótipos do papel da mulher negra em nossa sociedade. Esta complexidade vem confirmar a importância que a questão racial e de gênero assume na vida pessoal e profissional dessas mulheres e o quanto se faz necessário discuti-las na escola. Também revela o quanto o campo da educação necessita compreender melhor o processo de construção da identidade racial. Se entendemos a educação como um processo de desenvolvimento pleno do indivíduo, que se desenvolve dentro e fora da escola, não há como negar a necessidade de uma competência política e profissional dos/as educadores/as para entender as múltiplas dimensões da formação humana. A identidade racial é uma delas.

A identidade racial é um processo complexo que, assim como outros processos identitários, se constrói gradativamente, envolvendo desde as primeiras relações estabelecidas no grupo social mais íntimo, até a socialização nos outros tempos/espaços sociais. Dentro do vasto campo da construção das identidades, pensar a peculiaridade da identidade racial é refletir sobre um processo que não é inato e se constrói em determinado contexto histórico, social e cultural.

O processo de construção da identidade racial do/a negro/a brasileiro/a se inicia na família e vai criando ramificações e desdobramentos a partir das outras relações que o sujeito estabelece. Na pesquisa realizada, a importância da família se apresentou como um tema recorrente em todas as entrevistas. As lembranças do ambiente familiar e da presença ou não de situações de discriminação e de preconceito racial na infância, na adolescência e na vida adulta fazem parte da história de vida das professoras. Ao fazerem essa retrospectiva, todas as mulheres entrevistadas abandonaram a auto-classificação baseada nas nuanças de cor (morena, mulata, chocolate, etc.) para se identificarem como mulheres negras. O que causou tal mudança? O fato de que o ato de relembrar nos coloca como sujeitos da nossa história. E isso aconteceu com cada mulher entrevistada. Desta vez, as professoras negras falaram da sua própria experiência, marcada por uma trajetória em que o racismo, a discriminação racial e o preconceito sempre estiveram presentes.

As relações estabelecidas com os amigos e os contatos com a vizinhança têm grande interferência na formação do sujeito. Este foi o segundo tema levantado durante a entrevista. Neste espaço aparecem os primeiros apelidos dados pelo grupo de colegas, as brigas, os pareceres dos pais, dos amigos e dos conhecidos. É nesse contato, também, que aparecem as experiências sexuais. As relações estabelecidas fora do círculo familiar mais íntimo eram lembradas como momentos de escolhas e recusas sexuais. Muitas vezes, essas situações eram atravessadas por fatores raciais e de gênero.

O momento da entrada para a escola foi um outro tema discutido. As expectativas em torno deste acontecimento são compartilhadas por todos, familiares, amigos e pela própria criança negra. Contudo, desde o início da trajetória escolar, a criança se depara com um determinado tipo de ausência que a acompanhará até o curso superior (isto é, para aquelas que conseguirem chegar até a universidade): a quase total inexistência de professoras e professores negros. A criança negra se depara com uma cultura baseada em padrões brancos. Ela não se vê inserida no contexto dos livros, nos cartazes espalhados pela escola ou ainda na escolha dos temas e alunos para encenar números nas festinhas. Onde quer que seja, a referência da criança e da família feliz é branca. Os estereótipos com os quais ela teve contato no seu círculo de amizade e na vizinhança são mais acentuados na escola, e são muito mais cruéis. A falta de um posicionamento claro e coerente do professor e da professora é um ponto marcante.

A escolha do magistério também foi um momento marcante da pesquisa realizada. Como se coloca para a mulher negra a escolha do magistério? Em que horizontes ela aparece? Lembro-me de um depoimento marcante de uma professora negra ao narrar sobre a sua trajetória. Ela repetiu várias vezes uma frase ouvida na infância:

E quando eu ia ajudar ela na escola, ela sempre falava assim comigo: “Você nunca vai ser servente. Você há de ser professora. Se você tiver que escolher, não vai ser por servente, não.”(M.M.S., 49 anos, professora negra)

 Questiono, então, o grau de liberdade da opção pelo magistério das professoras negras. Será que a escolha pelo magistério é mesmo uma opção? O que representa para a família negra e pobre ter uma filha ou irmã ou tia que se torna professora?

Não posso afirmar que as professoras entrevistadas expressaram, de uma maneira explícita, uma reflexão histórico-política sobre o significado do ser professora na história da mulher negra. Entretanto, ao analisar os motivos da escolha do magistério que os depoimentos trazem, infiro que essa escolha representa um processo de rompimento com uma história de exclusão impostamente estabelecida. Exclusão de classe, de raça e de gênero. A chegada ao magistério para a jovem negra é a culminação de múltiplas rupturas e afirmações: a luta pela continuidade dos estudos – um fato que até hoje se coloca como um complicador na história das mulheres-; a busca de uma profissão que lhe garanta um espaço no mercado de trabalho; a mudança de status no meio social em que vive a maioria das mulheres negras.

Captar essas dimensões dependerá e muito do olhar que o/a pesquisador/a irá lançar sobre esses dados. Se considerarmos que o processo histórico dos negros tem como ponto principal somente o aspecto sócio-econômico, concluiremos que os motivos acima citados não possuem nenhuma diferença se comparados com os que são apresentados pelas mulheres brancas da classe trabalhadora que optam pelo magistério. Todavia, não estamos falando apenas de classe social mas também e prioritariamente de raça e de gênero.

Um fator que contribuiu no processo de rompimento histórico-social das mulheres negras no campo educacional é a democratização da educação. Esse processo é fruto de múltiplas lutas dos movimentos sociais e da classe trabalhadora por uma justa inserção na sociedade e, mais especificamente, na escola. As mulheres negras sempre estiveram inseridas nos movimentos e lutas sociais e constituem uma parcela significativa da classe trabalhadora. Sabemos que a expansão da escola pública é pois um movimento que afeta toda a classe trabalhadora. Contudo, é necessário refletir como esse movimento afetou e ainda afeta o universo das mulheres e, sobretudo, das mulheres negras. A luta pela escola e por melhores condições de vida, nessa perspectiva, sempre foi e será a luta das mulheres e da comunidade negra.

Mas a entrada da mulher negra no magistério, profissão antes ocupada pelo homem branco, depois pelas mulheres brancas de camadas médias, não representou apenas a democratização do campo da educação e da escola para os setores populares e, especificamente, para a mulher negra. Quando esta entra nesse campo ele já não é o mesmo de outrora. A situação de desvalorização do magistério enquanto campo profissional e a sua baixa remuneração deve ser considerada. Embora algumas professoras considerem o magistério como promotor de status social, elas sabem que o status dessa profissão não é o mesmo de décadas passadas.

A análise sobre a desvalorização do magistério, a localização dos/as professores/as enquanto pertencentes à classe trabalhadora, culminando no final dos anos 70 com a organização dos sindicatos dos “trabalhadores” em educação são temas muito destacados nos estudos sobre a condição do/a professor/a . A ênfase recai sobre a condição social dessas mulheres professoras. Parece, então, que a questão de classe social é, ainda, a mais aceita quando se olha e se analisa a vida dos/as professores/as.

O gênero e a raça ainda são considerados aspectos menos relevantes na luta da categoria dos educadores/as. Prova disso são os confrontos enfrentados pelas mulheres sensíveis à questão da raça e do gênero dentro das organizações de esquerda e dos sindicatos. A maneira como o sindicato vê a si mesmo e até mesmo a forma como nos referirmos ao magistério possui um forte traço masculino. Não é comum nos referirmos à categoria do magistério (um corpo majoritariamente feminino) como docentes, educadores, trabalhadores em educação ou profissional da educação? O emprego do gênero não só nas análises como, também, na própria grafia das palavras que se referem às professoras é ainda masculino. Quando se destaca o gênero como mais uma dimensão que integra e forma a categoria dos “educadores” corremos o risco de sermos chamadas de “politicamente corretas”. No caso da raça somos advertidas de que, ao priorizar tal especificidade, corremos o risco de “dividir” a luta e a organização da classe trabalhadora.

Mas será que apontar os mecanismos explícitos e sutis de discriminação racial da sociedade capitalista é dividir a luta da classe trabalhadora? É devido ao movimento e às denúncias do movimento negro que, hoje, a categoria dos/as educadores/as reage contra formas de discriminação racial embutidas, inclusive, no sistema particular de ensino. Ora, todas nós sabemos que as mulheres negras estão representadas de maneira mais significativa na rede pública do que na particular. A análise dessa realidade fatalmente nos leva a considerar que existe um mecanismo de discriminação racial na forma de admissão de professoras da rede privada. Os testes de seleção aplicados pelas escolas particulares, muitas vezes, encobrem escolhas raciais dos donos e donas de escolas. Na rede pública, a entrada via concurso público torna-se um mecanismo mais democrático de admissão, possibilitando uma competição mais igualitária entre os/as candidatos/as. Porém, sabemos que um concurso público, da forma como está organizado em nossa sociedade, ainda impõe barreiras sociais. Se concordamos que raça, classe e gênero estão relacionadas, devemos ampliar a nossa análise e refletir sobre quem são os principais sujeitos sociais atingidos por essas barreiras.

Enquanto professora, a mulher negra se vê reproduzindo discursos que ouviu quando criança na própria escola, no curso de magistério e também no de pedagogia. Em todos estes espaços a discussão sobre a diversidade étnico-cultural e as diferenças de gênero é ainda incipiente.

Através da pesquisa aqui discutida notamos que o silêncio e o discurso da igualdade são os recursos mais usados pelas professoras negras e pela instituição escolar. Um novo círculo vicioso se perpetua. A então criança negra, agora, professora, se vê diante de uma grande maioria de alunos negros com uma história muito próxima da sua. Porém, se na infância desta mulher a não existência de professoras negras poderia justificar a ausência da discussão da questão racial na prática escolar, nos dias atuais, apesar do número de profissionais negras na área educacional ter aumentado, isso ainda não tem revertido na inclusão da questão racial como uma discussão importante e necessária na escola. E nem tampouco o maior número de mulheres no magistério garante a inclusão da discussão sobre o gênero na prática escolar.

Iniciativas vindas do Ministério da Educação como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’S) foram criadas. A pluralidade cultural e a orientação sexual são alguns dos temas transversais apresentados pelos PCN’S. Não cabe aqui a discussão polêmica sobre os parâmetros e os temas transversais. Todavia, é importante registrar que mesmo incluídas em uma política educacional mais ampla, essas discussões ainda são incipientes no cotidiano e na prática das escolas.

Por tudo isso, posso afirmar que a mulher negra que vi durante a realização da pesquisa não foi a mesma que pensava encontrar. A realidade dessas mulheres é muito mais complexa e acidentada. Não posso afirmar que no decorrer dos depoimentos, as professoras entrevistadas negaram abertamente a sua origem racial. Porém, percebi dois grupos distintos: um menor, composto pelas mulheres que se auto-identificavam como negras e outro maior que se auto-identificava através de nuanças de cor, como por exemplo: morena-escura, moreninha, mulata, entre outras.

Essas mulheres negras, ao se tornarem professoras, “saíram do seu lugar”, isto é, do lugar predestinado por um pensamento machista e racista e pelas condições sócio-econômicas da maioria da população negra brasileira - o lugar da doméstica, da lavadeira, da passadeira, daquela que realiza serviços gerais[12] -, para ocuparem uma posição que, por mais questionada que seja, ainda é vista como possuidora de status social e está relacionada a um importante instrumento: o saber.

A história de vida das professoras negras os mostra que é preciso reconhecer e respeitar as diferenças dentro e fora da instituição escolar. O reconhecimento da diferença é a consciência da alteridade. Sendo assim, ao discutirmos sobre as relações raciais e de gênero presentes na vida de professores/professoras, alunos/alunas negros/as e brancos/as estamos rompendo com o discurso homogeneizante que paira sobre a escola e reconhecendo o outro na sua diferença.

 

Professoras negras: trajetória escolar e identidade

 Segundo os depoimentos das professoras, nem sempre a presença do/a professor/a negro/a foi uma referência positiva para a criança negra da escola pública. Muitas vezes, a expectativa da então aluna negra era de que houvesse uma certa cumplicidade na sua relação com a professora negra ou de que esta se posicionasse positivamente quando se referisse à questão racial. Lamentavelmente, nem sempre a realidade correspondeu a esta expectativa.

Também foi pouco relatada a presença de colegas de sala negros/as. Para algumas, a presença de negros/as só se fez marcante ao relembrarem a sua prática como professoras, trabalhando em escolas públicas de periferia. Vemos, nesse caso, mais um cruzamento entre raça e classe.

A atuação na carreira do magistério, uma outra etapa do processo de socialização, acarreta para a professora negra mais uma carga de conflitos. Na sala de aula, a professora em geral é sempre uma referência para seus alunos brancos e negros. Como reagir diante de situações em que os alunos discriminam uns aos outros por causa da pertinência racial? Como reagir no momento em que a própria professora é o alvo do preconceito racial, através de comentários dos pais e colegas, da direção da escola e ainda da rejeição de um/a aluno/a? Como reagir diante de atitudes sexistas dos alunos? E, ainda, como reagir quando a própria professora se vê como reprodutora de valores racistas e sexistas?

O trabalho com a questão racial em sala de aula representa uma forma de se relacionar com os alunos pertencentes aos diferentes segmentos raciais, valorizando e respeitando suas particularidades culturais e compreendendo suas histórias de vida. Reconheço a dificuldade que representa essa forma de atuação e o quanto é necessário à professora se permitir viver o difícil processo de reconstrução da identidade racial, visto que nós, negras e negros, somos educadas/os pela sociedade, desde a infância, para nos anularmos a fim de sermos aceitos pelo “outro”. Mas travestir-se nesse outro não é fácil e suas conseqüências são nefastas à constituição da identidade racial.

O trabalho com a questão racial na escola progredirá à medida em que negros/as e brancos/as aceitem o desafio de romper com a ideologia racista, passem em revista a história do Brasil e redescubram os valores da cultura negra. Este não é um processo fácil. Nem todos conseguem vivê-lo e superá-lo, porém é imperativo que se realize um trabalho efetivo com a questão racial na escola. Os efeitos do racismo e do sexismo recaem sobre todos nós, homens e mulheres, negros e brancos. Pois como nos adverte FANON (1983) [13], o branco não percebe que está aprisionado na sua brancura. Parafraseando o autor, posso dizer que os homens ( e muitas mulheres) também não percebem que estão aprisionados no seu machismo.

A habilidade e compreensão no trato das diferenças de personalidade, identidade, idade, gênero, raça, e cultura é um componente do ser educador/a, profissional da formação humana. O trato não segregador e educativo da identidade e da cultura negra é uma competência político-pedagógica a ser exigida de todo educador e, sem dúvida, de toda instituição educativa.

As dificuldades na abordagem da questão racial em nossas escolas revelam o peso do imaginário e dos valores racistas em nossa sociedade. Revelam ainda lacunas lamentáveis em nossa formação profissional: o despreparo profissional para lidar, como educadores/as, com sujeitos socioculturais diversos. O racismo presente em nossas práticas escolares revela-nos o quanto temos ainda de avançar como profissionais-educadores/as. É um problema político-profissional e como tal precisa ser encarado em nossa qualificação.

 

Concluindo

 Falar em relações raciais, de gênero e de classe, discutir as lutas da comunidade e das mulheres negras e dar visibilidade aos sujeitos sociais não implica em um trabalho a ser realizado esporadicamente. Implica em uma nova postura profissional, numa nova visão das relações que permeiam o cotidiano escolar e a carreira docente, e ainda, no respeito e no reconhecimento da diversidade étnico-cultural. Representa a inclusão nos currículos e nas análises sobre a escola desses processos constituintes da dinâmica social, da nossa escola e da prática social. Significa, também, a ampliação das análises sobre gênero, raça e classe que extrapole essa divisão rígida entre as mesmas. Na realidade social essas três categorias estão intimamente ligadas. Porém, elas não dão conta por si só de explicar a totalidade da vida social. É preciso discuti-las juntamente com outras dimensões presentes no processo de formação humana como a idade, a religião, a cultura, entre outros. É sempre bom lembrar que as categorias analíticas são instrumentos de análise da realidade social. Elas podem ser úteis do ponto de vista metodológico e analítico, mas se as tomarmos como as únicas lentes para olharmos a realidade social e cultural, corremos o risco de nos transformar em míopes culturais. A vida social é muito mais dinâmica do que pensamos.

O resultado deste trabalho e a análise sobre a realidade racial do Brasil nos mostram o quanto é contraditório que os cursos de formação de professores/as continuem lançando no mercado de trabalho homens e mulheres pertencentes aos diversos segmentos étnico-raciais, que não discutem e nem refletem sobre a diversidade étnico-cultural presente no processo escolar. É necessário que as pesquisas educacionais incorporem a centralidade da raça e do gênero nos estudos sobre a realidade social brasileira.

Os movimentos sociais, a luta da comunidade negra e das mulheres exigem da escola o posicionamento e a adoção de práticas pedagógicas que contribuam na superação do racismo e da discriminação racial e de gênero. É preciso que se dê visibilidade às inúmeras práticas que o Movimento Negro e de Mulheres já têm desenvolvido na educação. É necessário que os educadores/as compreendam que a luta pelo direito à igualdade social não elimina as diferenças étnico-raciais e de gênero. E que o racismo, a discriminação racial e de gênero, não conseguiram apagar a dignidade das mulheres negras que continuam lutando pela construção, reconstrução e recriação da sua identidade.

 

[1] Esse artigo é largamente baseado em um outro texto, de minha autoria, publicado na revista Cadernos Pagu, Unicamp, 1996, n.6 e 7. Parte do mesmo foi apresentada no V Encontro de História Oral, Belo Horizonte, FAFICH, 1999.

[2] Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da UFMG.

Doutoranda em Antropologia Social/USP.

[3] Neste artigo, raça não é usado com um sentido reduzido e tradicional. Abandono o determinismo biológico que o termo encerra e o redimensiono em uma perspectiva política. Entendo raça como um conceito relacional, construído, reconstruído e ressignificado em um determinado contexto histórico e social, a partir de relações concretas entre grupos sociais de diferentes sociedades. Esse conceito redimensionado pode ser aplicado à sociedade brasileira já que nosso imaginário e prática social, ao referir-se aos negros, não dispensa as características fenotípicas como um fator importante para se analisar a pertinência racial e étnica de determinados grupos sociais. Ao inserir o conceito redimensionado de raça, incluo ainda três dimensões importantes para a análise da questão racial no Brasil: a geográfica, a histórica e a política.

[4] Essa afirmação está garantida em lei. Ver: Artigos 1o , 2o , 4o e 5o da Lei 9394 ( Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)

[5] Ver:, Artigo 3o, inciso IV, Artigo 5o, inciso I e XLII da Constituição Federal de 1988 e Lei 7.716/89 do deputado Carlos Alberto de Oliveira – Cao, que atende a uma reivindicação antiga do Movimento Negro.

[6] RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo:Cia Editora Nacional,1935.

[7] VIANNA, Oliveira. Evolução do Povo Brasileiro. São Paulo:Cia Editora Nacional,1933 e do mesmo autor Raça e Assimilação. São Paulo: Cia Editora Nacional,1932.

[8] O que pode, por exemplo, ser encontrado na obra de Arthur Ramos. Neste trabalho analisamos as seguintes obras deste autor: O Folclore Negro do Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,1954 e O Negro na Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,1956.

[9] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro:Record,1989.

[10] HASENBALG, Carlos e SILVA, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.

[11]A presente pesquisa resultou na dissertação de mestrado apresentada pela autora, em 1994, na FAE/UFMG, sob a orientação da Prof.a. Dra. Eliane Marta Teixeira Lopes. O mesmo trabalho foi publicado no ano de 1995, pela Mazza Edições, sob o título: “A Mulher Negra que Vi de Perto - o processo de construção da identidade racial de professoras negras”.

[12] Ao fazer essa afirmação não quero menosprezar esse tipo de atividade profissional. Reconheço o seu valor e importância. Desejo problematizar um determinado tipo de análise, ainda presente no nosso imaginário, que tende a relacionar a presença da mulher negra nesses setores como algo “natural” e não como resultado de um processo histórico de exclusão social e racial, que coloca sérios obstáculos à ascensão social e profissional dessas mulheres.

[13] FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Rio de Janeiro: Fator,1983.