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Grupo de Trabalho 6
Tecendo o fio, aparando as arestas: o movimento de mulheres negras e a construção do pensamento negro feminista

Eliane Borges da Silva[1]

  

The shadow obscuring the Black women’s intellectual tradition is neither accidental nor bening. Suppressing the knowledge produced by any oppressed group makes it easier for dominant groups to rule because the seeming absence of an independent consciousness in the oppressed can be taken to mean that subordinate groups willingly collaborate in their own victimization (Fanon 1963; Freire 1970; Scott 1985). Maintaining the invisibility of Black women and our ideas is critical in structuring patterned relations of race, gender, and class inequality that pervade the entire social structure. (COLLINS. 1991:5)

 

Introdução

Discorrer sobre o movimento de mulheres negras no interior de um trabalho acadêmico, como é o caso da proposta aqui apresentada, não é uma da tarefa facilmente executável. Trabalhos nesse sentido requerem um olhar diferente daquele normalmente legitimado pelos cânones científicos que preferem tratá-lo como “estudos de mulheres” (AGUIAR, 1997) e isolá-lo em núcleos e grupos temáticos específicos. Lutar contra esse entrincheiramento e colocar os estudos feministas em inter-relação com as diversas áreas de conhecimento, tem sido uma das reivindicações do movimento feminista desde a década de 60.

Numa ampla variedade de culturas e discursos, os homens costuma ser vistos como livres de relações de gênero ou como não determinados por elas. Assim, por exemplo, os intelectuais não estudam explicitamente a psicologia ou a história dos homens. Os intelectuais do sexo masculino não se preocupam sobre como o fato de serem homens possa distorcer sua obra acadêmica, enquanto as mulheres que estudam relações de gênero são consideradas suspeitas (de futilidade, ou mesmo preconceito). Só recentemente os teóricos começaram a considerar a possibilidade de haver três histórias em toda cultura - a “deles”, a “delas” e a “nossa(FLAX. 1993:228-229. Grifo meu)

 O que dizer, então, das mulheres negras, militantes e/ou acadêmicas, cujos resultados obtidos nessa empreitada são muito menos visíveis por uma série de razões.

Primeiro, grande parte das reflexões encontradas acerca do movimento de mulheres negras, quando publicada, além de serem frutos de iniciativas descontínuas, individuais, guetizadas e, por vezes, preconceituosamente ou não, julgada mais pelo caráter de manifesto político do que teórico e escritos dentro de uma linguagem inapropriada aos meios acadêmicos, não alcançam ampla circulação, tornando-se difícil o trabalho d@s pesquisador@s. Nos últimos dois anos, essa situação tem se alterado positivamente à medida que a Internet se socializa entre o grupo e um maior número de documentos vão sendo disponibilizados.

Embora, o fato não diminua em nada a importância dos poucos estudos elaborados nesse sentido, ele serve de justificativa para manter essa discussão fora dos meios universitários que elimina assim a possibilidade de ser maculado por questões ainda não consensuais na Academia. O mito da democracia racial, a participação das mulheres negras no processo de construção do país, o papel desempenhado por elas na manutenção da cultura negra e na transmissão de valores religiosos e, principalmente, a sua contribuição na luta pela emancipação d@s negr@s, refletida em seu envolvimento com os movimentos sociais, são discussões que, embora sejam levantadas em disciplinas com aspectos mais vanguardistas, de um modo geral, têm lugar demarcado, não sendo assimilado pelo corpus teórico que norteia as ações acadêmicas. São teorias novas, assim como tem acontecido com a Teoria Feminista, que pleiteiam reformulações na forma de pensar a ciência, obrigando a revisões de saberes até então tido como inquestionáveis.

O resultado final dessa situação é estimulante e dá a dimensão correta do contra-senso experimentado pelas mulheres negras no que diz respeito a sua invisibilidade e marginalização, pois apesar de sua presença constante nos textos históricos, textos esses reconhecidos pela própria Academia, essas marcas não conseguem ser capitalizadas para a construção de auto-estima positiva para esse grupo. Em outras palavras, grande parte do material teórico produzido na década de 30, por antropólogos e cientistas sociais de competência reconhecida, que procuravam dar conta do processo de organização social, política e econômico do Brasil, chamavam a atenção, cada qual a sua maneira, para a importância das mulheres negras na constituição desse processo.

 

 Mulheres negras, feminismo e cidadania

Apesar de muito controversas no interior do movimento feminista, a participação das mulheres negras na causa feminista é sinalizada em diversos documentos. A declaração “The Combahee River Collective Statement: Black Feminist Organizing in The Seventies and Eighties[2], 1977, escrita por um grupo de militantes que tinha por objetivo chamar a atenção para as três categorias de opressão (classe, gênero e raça) que vitimavam as mulheres negras, coloca o pouco reconhecimento dado ao Coletivo que, segundo elas, influenciou bastante o discurso feminista:

I am personally aware that women of color all over the U.S. and in other countries as well have been inspired to thought and action by the Collective’s words. Nevertheless, when most white women discuss significant contribuitions to feminists theory, the Statement is rarely cited. Ninety-nine percent of what white women include in the pantheon of theory is written by white women. Perhaps the writing of women of color is not seen as sufficiently theoretical, because it is usually accessible to the reader as opposed to incomprehensible and because it also deals in the unconfortable, violent, and non-abstract realities of race and class oppression.(SMITH. 1977:04)

Como vimos, a contribuição das mulheres negras na afirmação dos principais postulados feministas nunca foi amplamente reconhecida pelo status feminista. Fato que por si só já se constituiu um segundo problema para a integração das mulheres negras ao movimento feminista, pois, além de mostrar uma relação marginal e discriminatória, refletia também a dificuldade das mulheres feministas brancas se relacionarem com as não-brancas no mesmo patamar de igualdade. Mais uma vez tocava-se em questões mal resolvidas para a grande maioria dos brasileiros que é “(in)formada” para desconhecer a desigualdade racial, acreditando ou iludindo-se com o mito da democracia racial.

A argumentação colocada nas reflexões das mulheres negras passa pelo fato de que a democratização das relações entre homens e mulheres vai mais além das considerações de respeito e solidariedade que os diferentes sexos devem desenvolver entre si. A luta contra diversas formas de opressão deve vir acompanha de um projeto de desconstrução de identidades que encerra mulheres e homens, brancas(os) ou não, em um sistema rigoroso de representações cujo resultado final é a opressão de todos, tendo em vista a multiplicidade de papéis que um único indivíduo pode desempenhar no transcurso de sua interação com o mundo. Conforme argumenta Chantal Mouffe (1996:6):

...defenderei que, para as feministas empenhadas numa política democrática radical, a desconstrução de identidades essenciais deve ser vista como condição necessária para uma compreensão adequada da diversidade de relações sociais a que os princípios da liberdade e da igualdade devem aplicar-se. Só quando afastarmos a concepção do sujeito como um agente simultaneamente racional e transparente para si próprio e também a suposta unidade e homogeneidade do conjunto das suas posições estaremos em posição de teorizarmos a multiplicidade de relações de subordinação. Um indivíduo pode ser portador desta multiplicidade e ser dominante numa relação ao mesmo tempo que é subordinado noutra. Assim, podemos conceber o agente social como sendo constituído por um conjunto de “posições de sujeito”, que nunca podem ser totalmente fixas num sistema fechado de diferenças, composto por uma diversidade de discursos, entre os quais não existe uma relação necessária, mas antes um constante movimento de sobre determinação e deslocamento.(Grifo meu)

Neste sentido, a luta feminista vai além da obtenção dos mesmos direitos delegados aos homens. Trata-se de algo mais amplo, passando pela própria interpretação do modelo dominante de cidadania definido em função de uma identidade universal e para usufruir desse direito o indivíduo tem de se aproximar ao máximo daquele idealizada. Como esse modelo é altamente seletista, têm-se ai as brechas para a implantação de relações opressoras para aqueles que não conseguem alcançar esse modelo estabelecido. Ainda recorrendo a Mouffe:

A “identidade” de um sujeito tão múltiplo e contraditório é, portanto, sempre contingente e precária, temporariamente fixa na intersecção dessas posições de sujeito e dependente de formas específicas de identificação. Por isso é impossível falarmos de agente social como se estivéssemos a lidar com uma entidade unificada e homogênea. Em vez disso, teremos de abordá-lo como uma pluralidade, dependente das várias posições de sujeito através dos quais se constitui em várias formações discursivas, e de reconhecer que não existe qualquer relação prévia e necessária entre os discursos que constituem as suas diferentes posições de sujeito... (1993:105)

As citações destacadas são importantes para dar novos direcionamentos não só à luta feminista em geral, mas as reflexões do movimento de mulheres negras e demais lutas contemporâneas. São essas diferenças, por vezes, conflituosas e antagônicas, que precisam ser conduzidas em forma de mobilização política e atingir o objetivo final: a construção de uma democracia radical. A pluralidade deve ser entendida como um mecanismo necessário a essa construção, pois somente com o respeito a diferença é que podemos construir um projeto de cidadania capaz de aglutinar, sem oprimir, a multiplicidade de relações sociais.

As discussões aqui colocadas se intercruzam com a experiência das informantes dessa pesquisa, que têm desenvolvido uma práxis traduzida na luta contra as discriminações racial, de gênero e de raça. As proposições de Mouffe, transcritas acima, sobre cidadania, pluralidade, democracia radical, tocam em cheio naquilo que percebo ser de fundamental importância para os movimentos sociais em geral e, mais especificamente, para o Movimento de Mulheres Negras (MMN).

Até o momento, foram dadas informações suficientes para melhor introduzir ao movimento de mulheres negras que começo a discorrer a seguir. Tanto o movimento feminista quanto o movimento negro têm passado por diversas reflexões ao longo de sua existência. Hoje, o ponto em comum entre eles é a luta pela afirmação de suas diferenças para que deixem de ser justificativas legitimadoras de desigualdades sociais que enfrentam em seu cotidiano. São iniciativas revolucionárias tendo em vista que inauguram novas formas de intervenção seguindo uma dinâmica totalmente modernizadora. Instauram a desordem, quebram paradigmas seculares, enfim, “pregam” o caos com o objetivo de fazer emergir daí relações pautadas no respeito à singularidade, ao humano, ao ser mais.

As feministas embora engajadas na luta contra a opressão de gênero, a qual as mulheres negras se identificaram plenamente, não tiveram formação diferente da que teve o povo brasileiro em geral. Levantavam bandeiras que refletiam uma ótica universal, única e, conseqüentemente, que não consideravam a diversidade de papéis sociais que as mulheres brancas e não-brancas vêm representado historicamente.

Portanto, ao analisar a realidade das mulheres não se pode partir de um só ângulo. No caso das mulheres negras, suas experiências de vida são pautadas por relações de poder que assumem diversificadas configurações que, conscientemente ou não, as mantêm sob o jugo machista e branco. Enfrentam diferentes formas de opressão que não se resumem a de gênero ou a forma desigual com que são estabelecidos os papéis sociais e distribuído o poder que cada qual assume na relação com o outro. As formas de opressão confundem-se em relações mais complexas, históricas e variadas que se inter-cruzam e refletem, principalmente, as relações de poder de um grupo sobre o outro.

A mulher negra, assim como a mulher branca, é oprimida pelo homem branco porque ele, inserido numa ideologia patriarcal e eurocêntrica, acredita que tem maiores qualidades físicas, biológicas, intelectuais, de liderança para gerir a sua vida e a de outrem. É oprimida também pelo homem negro, que muito embora partilhe com ela uma experiência histórico cultural comum, não deixou de ser influenciado pela mesma ideologia patriarcal que sedimenta o inconsciente coletivo. É, ainda, oprimida pela mulher branca que, dada as circunstâncias históricas, estabelecem(ram) relações de dominação, de diferentes formas, desempenhando papéis que “legitimam(vam)” sua superioridade na hierarquia social em relação às mulheres negras. Essas duas formas de opressão, a de gênero e a de raça, atravessadas pela de classe, têm impedido, ou melhor, relegado às mulheres negras um papel social de muito menor prestígio na esfera social. Concorre ainda o aspecto ideológico que alimenta o imaginário social e atrela à mulher negra a imagem de subserviente, menos capaz, “mãezona”, “boazinha” e resignada à sorte.

Patricia Collins (1991), ao sistematizar o pensamento feminista negro nos EUA, a opressão da mulher negra é estruturada dentro de três dimensões que se inter-relacionam: primeiro, a dimensão econômica que é traduzida através da exploração do trabalho dessas mulheres; segundo, a dimensão política que nega às mulheres negras os direitos e privilégios rotineiramente delegados aos cidadãos brancos e, terceira, a dimensão ideológica que insiste em qualificar as mulheres negras dentro de determinados papéis e que muito contribuem para justificar o sistema de opressão a que estão inseridas. Collins afirma a manutenção desses estereótipos negativos automaticamente relacionados às mulheres negras têm sido fundamental para a sustentação de um sistema opressivo.

Taken together, the seamless web of economy, polity, and ideology function as a highly effective system of social control designed to keep system of oppression works to suppress the ideas of Black women intelectuals and to protect elite white male interests and worlviews. Denying African-American women the credentials to become literate certainly excluded most African-American women fro positions as scholars, teachers, authors, poets, and critics. (COLLINS. 1991:07)

Voltando ao nosso umbigo, no Brasil, as mulheres negras não estão em situação diferente daquelas do hemisfério norte. Conquistas sem dúvida houveram mas, no imaginário social, ainda estão atreladas a imagens e papéis sociais que as aprisionam e limitam seu crescimento enquanto pessoa humana, sujeita a direito e deveres, a uma cidadania. Levando para o mundo contemporâneo o aprendizado que tiveram através de sua própria história, as mulheres negras partem para a redefinição de seus papéis. São novas configurações que têm seu cerne na tradição. Rompem com esta mas, na verdade, carregam seus ensinamentos e a mesma disposição para mudar a realidade que se apresenta.

 

Movimento de Mulheres Negras - trajetória

Ao questionarem os papéis/representações que lhes são impostas, as mulheres negras pleiteiavam mudanças no plano político, social, simbólico e ideológico. Alternaram sua atuação entre os movimentos negro e feminista, embora, sua presença seja mais sensível no primeiro.

(...) Desnecessário dizer que o Movimento Negro não deixava (e nem deixou ainda) de reproduzir certas práticas originárias da ideologia dominante, sobretudo no que diz respeito ao sexismo, como já dissemos. Todavia, como nós, mulheres e homens negros, nos conhecemos muito bem, nossas relações, apesar de todos os “pegas”, desenvolvem-se num plano mais igualitário cujas raízes, como dissemos acima, provêm de um mesmo solo: a experiência histórico cultural comum. (GONZALES.1991:179-180)

Nessa trajetória, num primeiro momento, as mulheres negras se identificam mais com o movimento negro. Entretanto, “pegas” que têm com seus companheiros militantes e não militantes levaram-nas a se interessar pelas questões de gênero, ou melhor, por militar dentro do movimento feminista. Tanto dentro das associações sindicais, como nos partidos políticos ou nas próprias entidades do movimento negro, as mulheres negras começam a buscar respostas mais completas à compreensão da situação de opressão que vivem. Primeiro passo para desencadear um processo de conscientização e mudança. Curiosas e ansiosas por respostas mais precisas aos “pegas”, interessam-se pelos ideais feministas.

Procurando “algo mais”, as mulheres negras, que já tinham consciência de que outros mecanismos contribuem para sua situação de opressão, se interessam pelos grupos feministas. Vozes femininas negras ampliavam o volume e denunciavam, em alto e bom som, que vivenciavam formas de discriminações intra e extramuros de suas próprias entidades. Denunciaram o sexismo no interior do movimento negro, cobram de seus companheiros uma participação igualitária na tomada de decisões e na ocupação de postos de liderança, até então, implicitamente, vetados a elas. Começam a reivindicar a inclusão nas pautas de discussões de temas que atingem diretamente a condição de ser mulher negra. Os companheiros negros, utilizando-se dos mesmos argumentos da esquerda tradicional, que prioriza a luta de classe em detrimento das questões raciais e de gênero, alegam que a introdução dessas discussões enfraquecem a reivindicação maior: o combate ao racismo, pois sabem que ao levar essas discussões para o cerne do movimento, passaria pelo questionamento de seus próprios comportamentos em relação às mulheres negras, militantes ou não. E nesse ponto, eles, engajados na luta contra o racismo, acabam por reproduzir uma face do mesmo sistema de opressão contra o qual lutam e que são também vítimas.

Nesse mesmo processo, sofremos uma discriminação violenta dos militantes homens que, em sua maioria, não aprofundam a questão da mulher. Apenas constatam e desenvolvem um sutil boicote à militância feminina dentro do movimento negro (...)

Assim começamos a identificar uma distância entre o discurso, que geralmente é de exaltação à mulher negra, e a prática desses homens, que é de confinamento da mulher militante ao tarefismo, à ausência de representatividade nas instâncias de direção do movimento negro. Nesse ponto se instala uma disputa surda, onde o homem vê a militante como alguém que concorre com ele, dentro de um espaço que ele julgava a salvo de obstáculos.(BAIRROS,1988:02)

A dificuldade de falar de suas especificidades no campo onde exercem sua militância política não as inibem. Ao contrário, mostra a necessidade da discussão ser levada a termo para que possam se integrar à luta contra a opressão de gênero, raça e classe de forma participante e com plataforma política bem estruturada. É deste ponto que começam a se interessar pelo Movimento Feminista e, como não se sentem contempladas também aí, fazem brotar as primeiras iniciativas de organização do que chamamos Movimento de Mulheres Negras (MMN) no Brasil.

Num breve relato histórico, passo a destacar os principais momento de mobilização que marcaram o processo de organização das mulheres negras. As informações que trago foram frutos de relatos feitos e documentos cedidos por militantes entrevistadas, que participaram desses encontros.

A organização do MMN no Brasil tem seu pontapé inicial em Bertioga, São Paulo, 1985, por ocasião da realização do III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe (EFLAC). O Encontro contava com a participação de 850 mulheres, formalmente inscritas, sendo que 116 mulheres declaram-se negras e mestiças. A temática central era: Feminismo e Racismo.

Uma desentendimento sobre o direito ou não de um grupo de mulheres participarem do seminário sem terem feito inscrições provocou uma discussão acirrada entre os vários grupos que estavam assistindo ao Encontro. Esse fato vai contribuir ainda mais para a necessidade de se pensar melhor sobre a organização de um movimento onde as especificidades das mulheres negras tivessem tratamento prioritário.

Apesar do contratempo, dois saldos positivos podem ser creditados: primeiro, ao fato de mulheres negras mostrarem-se interessadas nas questões de gênero e brigar, literalmente, para ter o direito de participar do III Encontro, mostrando com essa atitude terem amadurecido sobre a importância do feminismo para sua práxis cotidiana e de sua presença nesses eventos; segundo, ao reconhecimento, demonstrado na própria agenda do evento (Feminismo e Racismo), da interrelação dessas questões.

(...) Race cannot be added to other aspects of social institutions as an additional variable, for black feminists argue that race, class and gender are interlocking systems of opression not additive systems. (HUMM. 1992:122. Grifo da autora)

Na prática do Movimento Feminista, contudo, esse novo tratamento não transcorre tão tranqüilamente. A partir do momento que grupos diferentes começam a fazer suas colocações e trazer para o bojo do debates sua linguagem, códigos, comportamentos, formas de ver, pensar e agir no mundo, partindo de suas experiências quotidianas, se dá o choque.

O feminismo traz uma contribuição importantíssima, do ponto de vista de uma visão de mundo. Mas as feministas também são formadas para desconhecer as desigualdades raciais. Formadas para pensar o Brasil como uma democracia racial. E aí, contraditoriamente, ainda que o movimento feminista consiga perceber em que nível a diferença de sexo é utilizada na reprodução das desigualdades, não consegue perceber como as diferenças raciais são trabalhadas na perspectiva da recriação constante dos mecanismos de discriminação racial, dos quais as feministas também têm sido instrumentos. (BAIRROS. 1988:04)

Em 1987, realiza-se em Garanhuns, Pernambuco, o IX Encontro Nacional Feminista. Mais uma vez, as mulheres negras presentes não se vêem contempladas. Denunciam a ausência de discussões atreladas à questão racial. Documento informa a presença de 450 participantes, contemplando 17 Estados. As mulheres negras se fecham na posição de que o Movimento Feminista é orientado por uma definição elitista, exclusivista, opressora e autoritária de mulher. Ao tentar universalizar essa definição para todas as mulheres brasileiras, deixa de levar em consideração as especificidades que constituem cada grupo. Daí a impossibilidade de trabalhar conjuntamente as questões de gênero. O diálogo se torna inviável e as mulheres negras deixam o local já articuladas para realizar o I Encontro Nacional de Mulheres Negras. É o divisor de águas.

Nossas experiências com o Movimento de Mulheres caracterizam-se como bastante contraditórias: em nossas participações em seus encontros ou congressos, muitas vezes éramos consideradas “agressivas ou não-femininas” porque sempre insistimos que o racismo e suas práticas devem ser levados em conta nas lutas feministas, exatamente porque, como o sexismo, constituem formas estruturais de opressão e exploração em sociedades como a nossa. (GONZALES. 1991:79)

Já em 1985, Sueli Carneiro e Thereza Santos publicavam o artigo Mulher Negra[3], com dados sobre a situação da mulher negra no Brasil. Nos falavam de forma próxima, tendo em vista o forte imbricamento na militância que as duas testemunhavam no período em que fazem essa análise, contando inclusive com dados estatísticos. O texto que transcrevo abaixo reflete bem o que se constituiu a problemática da mulher negra no esforço de se organizar enquanto movimento independente:

Ao situar-se na intersecção do Movimento Negro e do Movimento Feminista, exprime a identidade como a problemática decorrente do racismo e discriminação racial e ainda, com as questões gerais colocadas pelo sexismo.

Porém, tais identidades não se mostram suficientes, tanto para erradicação do machismo na população negra como para supressão do racismo enquanto ideologia introjetada na população branca em geral, e feminina em particular.

Disto tem resultado o surgimento de departamentos femininos nas diversas entidades negras, ou a emergência de entidades femininas negras em diversos Estados do país em função da dificuldade, tanto do Movimento Negro quanto do Movimento Feminista, em absorver, de maneira efetiva, a problemática específica da mulher negra. (CARNEIRO & SANTOS. 1985:30)

Numa comparação com o discurso das feministas afro-americanas, ver-se que enfrentavam a mesma a dificuldade no diálogo entre brancas e negras. Joseph e Lewis (1986:40), analistas e ativistas do movimento negro e feminista norte-americano, respectivamente, tecem considerações sobre as diferenças comuns entre as perspectivas feministas negra e branca, retomando a necessidade das mulheres, negras e brancas, conhecerem a experiência histórica uma das outras para que possa ser pensado um engajamento mais amistoso e com resultados positivos para ambos os grupos e para a sociedade de forma geral. Além disso, rejeitam a posição assumida pelo movimento feminista tradicional de pensar em uma mística feminina, capaz de transcender as questões de raça e defendem, a partir dessa assunção, a aliança natural de mulheres negras e brancas. Joseph e Lewis julgam essa postura como míope e superficial. Transcrevo a íntegra de suas afirmações:

(...) It is incumbent upon both Black and White women to become familiar with each other’s history and the ways in which their sexual oppression has been felt and has influenced their present concerns and priorities. It is incumbent upon White women to understand that this is both a sexist and racist society and that, as social beings, they too participate in inhumane social conditions.(...) Some of them tend to accept the mystical belief that the category “women” is the most natural and basic of all human groupings and can therefore transcend race division. It is further argued that this common root should lead directly to Black/White coalition. This type of thinking is shallow and myopic, in that they are also White. These women must begin to understand the nature of their own oppression within the context of the oppression of Blacks. Black women must use the shortcomings of the women’s movement as part of the process of analysis which wil lead to overcoming those shortcoming. The possibilities of a Black/White alliance can only be found within such an understanding.(JOSEPH & LEWIS. 1996:40-41)

Apesar de estar aqui tratando de experiência fora do Brasil, os fatos relatados podem ser generalizados para o estado de arte de nossos movimentos. É comum encontrarmos reflexões de mulheres negras militantes muito próximas das questões levantadas pelas duas estudiosas norte-americanas. Esse tem sido o nó entre feministas negras e brancas.

Em 1988, em Valença-RJ, contando com a presença de 450 participantes, “representando” 17 Estados, realiza-se o I Encontro Nacional de Mulheres Negras (I ENMN), consolidando, assim, o Movimento de Mulheres Negras. Nesse encontro “já se evidenciava a necessidade de uma definição de um projeto político de atuação e da identificação das várias concepções e formas de trabalho com mulheres negras ou por estas realizadas, existentes no âmbito dos movimentos sociais, especificamente o movimento negro e o movimento de mulheres”.[4] Os objetivos gerais, segundo relatos[5] eram:

denunciar as desigualdades sexuais, sociais e raciais existentes; fazer emergir as diversas formas locais de luta e autodeterminação face às formas de discriminação existentes; elaborar um documento para uma política alternativa de desenvolvimento; encaminhar uma perspectiva unitária de luta dentro da diversidade social, cultural e política das mulheres presentes ao Encontro; estabelecer grupos de trabalho para registro e posterior retorno às participantes; realizar um diagnóstico da mulher negra; discutir as formas de organização das mulheres negras; elaborar propostas políticas que façam avançar a organização das mulheres negras, colocando pra o mundo a existência do Movimento de Mulheres Negras no Brasil, de forma unitárias e diferentes vertentes políticas.

A falta de registros oficiais desse Encontro, inviabiliza verificar em que medida os objetivos foram alcançados, isto é, como foram os encaminhamentos e as discussões que giraram em torno de cada um dos itens compilados acima. Nota-se que, embora conceitos como o de multiplicidade, democracia radical, ainda fossem teorizações incipientes para esse grupo naquele momento, as mulheres negras, olhando para seu próprio umbigo, mesmo que desarticuladamente, já intuem de que elas próprias constituem um grupo plural, embora não saibamos precisar até que ponto elas conseguem transferir esses ideais para sua práxis. A única certeza é que setores majoritários do MMN já assumem que suas estratégias devem vir pensadas dentro de um sistema de opressão onde interagem classe, gênero e raça.

O II Encontro Nacional de Mulheres Negras ocorre em Salvador-BA, em 1991, com um público de 430 participantes, envolvendo 17 Estados. Segundo o Relatório Final do Encontro, a concepção política que marca o evento é o reconhecimento de que:

A nossa sociedade é plural, racista e machista. Todas nós somos frutos desta estrutura social e educacional que nos conduz a práticas e ações às vezes determinadas pela nossa formação.

A organização de mulheres negras não está isenta destas interferências. Por isso, não constituímos um grupo unitário tanto no nível de concepção política, quanto de metodologias de trabalho. (Grifo meu)

Os objetivos estão bastante próximos daqueles buscados no I Encontro, o que aponta para a necessidade de uma militância mais ativa. Incluem as discussões sobre esterilização em massa e rechaçam o controle familiar associado, imaginariamente atrelado ao uso que a mulher negra faz de sua sexualidade. Apontam também aspectos positivos, como a troca de experiências entre as “mulheres negras de todo o país que estão na luta por uma inserção sócio-política e cultural na sociedade brasileira...”, classificando-a de “fundamental importância”. Mas, surpreendentemente, citam como aspecto negativo a “heterogeneidade das participantes, o que levou a uma indefinição de conceitos acerca de vários aspectos referentes a organização de mulheres negras no nível nacional”.

Mais uma vez, nota-se o calcanhar de Aquiles do Movimento de Mulheres Negras e provocara, talvez, seu arrefecimento ao longo dos anos. A dificuldade do MMN em definir conceitos acerca da organização de mulheres negras no nível nacional (estabelecer diretrizes) foi justamente por não ter conseguido trabalhar com essas diferenças, o que terminava por impor um modelo que acreditava caber em todos os “sujeitos” que julgava representar. Visualizaram a questão de forma essencialista, sem se dar conta de que ali estavam os fundamentos para se viver uma cidadania plena, um movimento democrático. Tal qual fizeram os demais movimentos tratados aqui, universalizaram um tipo de mulher negra, sufocando aquelas que não se adequavam a ele.

(...) Um processo democrático saudável exige um choque vibrante de posições políticas e um conflito aberto de interesses. Quando isto falta, poderá ser demasiado facilmente substituído por uma confrontação entre valores morais não negociáveis e identidades essencialistas. (MOUFFE. 1993:17)

O II Encontro foi realizado em condições bastante desfavoráveis, reflexo da crise da qual passava o Movimento de Mulheres Negras: a desproporcionalidade das participantes em relação aos Estados, os lutas internas, a falta de diretrizes estabelecidas dentro de uma prática democrática mais definida, a escassez de recursos mínimos para as entidades, enfim, uma série de fatores, apontavam para a necessidade de reavaliar o próprio movimento no sentido de garantir maior mobilização e participação das mulheres negras de todo o país. Decidiram que o III Encontro só seria viabilizado quando essas arestas fossem aparadas

O movimento passa então por um estágio de reflexão. As militantes negras começam a perceber que posições antagônicas são formas democráticas de se buscar um ideal de relações baseadas na liberdade e igualdade, portanto, necessárias à existência social, na sua dimensão política.

O mais importante dessas discussões é a constatação de que o estado de opressão da mulher negra não pode ser tratado por um único viés, mas articulado às questões de gênero, raça e classe. De fato, afinam-se com o discurso das companheiras afroamericanas que há muito reivindicavam esse intercruzamento. Sobre III Encontro, o MMN avaliou que era preciso re-orientar suas bases e diretrizes antes de realizá-lo. Começa-se uma série de encontros e reuniões com objetivos mais específicos de conseguir, paulatinamente, mobilizar um maior número de entidades e mulheres negras a engajarem-se no Movimento, reformular a própria práxis do movimento.

Em abril de 1993, foi realizada a Reunião de Brasília, convocada com o objetivo de “encaminhar minimamente a principal resolução do II ENMN: a realização do III ENMN.” Segundo documento produzido pelo Fórum de Mulheres Negras de Belo Horizonte (1998), a avaliação final da Reunião apontou para a importância dos I e II ENMN, que, devido a visibilidade alcançada, estimularam outras formas de organização das mulheres negras. Além disso, colocaram em uma esfera mais ampla, pública, a problemática da mulher negra. Ao deixar a reunião, as participantes carregavam o sentimento de que “apesar destes estímulos, disseminados por todo o país, nos mais diferentes setores da sociedade, não conseguíamos aglutinar esta força emergente e crescente em articulações políticas estáveis, tanto nos Estados quando em âmbito nacional..”

O Seminário Nacional de Políticas Públicas e Direitos Reprodutivos das Mulheres Negras, acontece também em 1993, em Itapecerica da Serra-SP, de 20 a 22 de agosto, com um total de 55 participantes, 14 Estados. O evento tinha por objetivo: a) discutir questões relacionadas a políticas públicas de saúde principalmente aqueles relacionadas à maternidade, à sexualidade e ao controle de natalidade e avaliar em que medidas traduziam os interesses das mulheres negras; b) sensibilizar, através das mobilizações de todas as organizações do movimento negro, ONGs, movimento feminista, a sociedade em relação ao turismo sexual, estupro que atinge em particular as mulheres negras; c) estimular a participação das mulheres negras no processo que antecedia a Conferência Internacional do Cairo, isto é, traçar estratégias no sentido de se fazerem representar em evento de tanta magnitude.

É interessante que na Declaração de Itapecerica da Serra das Mulheres Negras Brasileiras (1993), além de outras colocações em relação à saúde física e mental da mulher negra, traz avaliações sobre o papel do próprio Movimento de Mulheres Negras e sugere alguns caminhos. Primeiro, reconhece, mais uma vez, a pluralidade e a necessidade de definição de estratégias:

Os movimentos configuram-se como um ator da maior relevância para liderar processos sociais e políticos que ponham fim às políticas de controle populacional e de esterilização das mulheres negras. Eles também desempenham papel fundamental na definição de estratégias de ação política transformadora e na montagem de uma agenda unitária que incorpore outros setores organizados da sociedade civil e que estabeleça os parâmetros de parceria com o Estados. (Grifo meu)

Segundo, recomenda que o MMN procure formas de integração com as universidades e institutos de pesquisa, como forma de fazer valer seus pontos de vista em relação a produção de conhecimento dentro desses espaços. Além disso, sugeria o estreitamento nas relações com pesquisadores negros bem como o estímulo à apropriação, por parte das mulheres negras, de metodologias capazes de “produzir conhecimento científico a respeito de nós mesmas.”

Ainda em 1993, no período de 12 a 15 de novembro, realiza-se o I Seminário Nacional de Mulheres Negras, Atibaia-SP. Contou com a participação de 48 mulheres, advindas de 09 Estados. O Seminário visava então “a construção de um espaço coletivo, democrático, amplo e unitário, de avaliação e reflexão”. Os relatos demonstraram a necessidade de uma “auto-avaliação”. Mais uma vez, a unidade é conclamada para que se possa pensar no III Encontro Nacional de Mulheres Negras.

Com o objetivo de avançar na organização nacional das mulheres negras para conseguir vencer essas adversidades, além de discutir a Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), realiza-se o II Seminário Nacional de Mulher Negra em Salvador-BA, no período de 09 a 11 de setembro de 1994. Conta-se com a participação de 67 mulheres.

De Beijing, 1995, as mulheres retornam da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, animadas com a visibilidade que conseguiram emprestar à questão racial negra, envolvendo, inclusive, outros grupos, como as feministas brancas.

Na IV Conferência Mundial sobre a Mulher a intervenção das mulheres negras possibilitou ampliar a discussão sobre a questão racial em nível mundial. Explicitou-se que o racismo manifesta-se com mais ou menos intensidade em todas as sociedades, hierarquizando a relação entre as raças, privilegiando a raça branca em detrimento das demais. Considerou-se que o racismo não está circunscrito uma região ou cultura; é fator determinante da exclusão social.

Embora muitas tensões nesses debates, a questão racial negra teve grande visibilidade, envolvendo feministas brancas e negras, no convencimento da necessidade de inclusão de propostas na Declaração Oficial, visando o desmascaramento do racismo e a definição de uma plataforma de ação que tenha por base a conquista de plena cidadania a todos os povos. (RIBEIRO. 1995:456)

Paralelamente a esses eventos, outras encontros internacionais são realizados. Justamente pela falta de uma organização nacional, capaz de aglutinar todas as informações obtidas nesses eventos, tem-se dificuldade em avaliar qual tem sido as contribuições das mulheres negras nesses eventos e, por outro lado, o que esses evento contribuem para a organização de uma pauta feminista negra.

Em 1997, no período de 19 a 20 de abril, acontece a I Reunião Nacional de Mulheres Negras. Campinas é a cidade que sedia a reunião e comparecem 58 mulheres de 13 Estados. O objetivo era “avaliar o II Encontro da Rede de Mulheres Afro-caribenhas e Afro-latino-americanas, bem como definir a representação brasileira.”. Elegem-se como representantes 03 mulheres ( Distrito Federal, Bahia, Rio de Janeiro), ficando a escolha das outras três para a próxima reunião.

Em setembro do mesmo ano, é convocada a II Reunião Nacional de Mulheres Negras, Belo Horizonte-MG. Comparecem 69 mulheres, provenientes de 10 Estados e Distrito Federal. A reunião tem o objetivo de dar continuidade ao temas abordados na anterior. Elege-se mais três representantes (Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Norte). Essa representação passa a ser denominada “Comitê Nacional Sub-regional Brasil da Rede Afrolatino-americana e Afro-caribenha de Mulheres.”

As discussões que agitam MMN atualmente é a preparação do III Encontro Nacional, cujo eixo será “Mulheres negras brasileiras, suas perspectivas de gênero e definições para a luta anti-racista no 3º milênio”. Os debates tem sido em torno da escolha do melhor local para realização do evento, a concepção política e organizativa que orientará as discussões, os objetivos a serem traçados etc.. A proposta aprovada sugere, dentre outros pontos, que a concepção deve ser “plural, democrática e horizontalizada” e que o encontro tenha “caráter feminista e anti-racista; de socialização de informações; trocas de experiências, definição de uma agenda de atuação; e de confraternização. Quanto a data prevista, há sugestões para março de 2000, encerrando as atividades no dia 08 de março. O objetivo é aproveitar o fim do milênio e a data de celebração do Dia Internacional da Mulher para chamar atenção da situação da mulheres negras no Brasil, além de contribuir com a Rede de Mulheres Afro-caribenhas e Afro-americanas (RMAA) que propõe o ano 2000 como o “Ano Internacional pelos Direitos Humanos das Mulheres Negras do Mundo”.

 

Novas perspectivas

 Em 1998, ao finalizar a pesquisa empreendida, os itens abaixo foram apresentados como empecilhos para imprimir maior velocidade e resultados ao processo de emanciapação das mulheres negras:

  • desconhecimento histórico do papel da mulher negra na construção do país;
  • impregnação no imaginário social da idéia de imutabilidade nas tradicionais representações e papéis das mulheres e homens negr@s, estereótipos que terminam por dificultar o próprio processo de emancipação da comunidade negra;
  • falta de entrosamento entre pesquisadoras negras e ativistas do movimento negro;
  • carência na socialização do conhecimento produzido pela comunidade negra que está na academia entre si;
  • dificuldade de acesso ao material de reflexão produzidas no interior do movimento, principalmente nos encontros, fóruns, reuniões promovidos pelo grupo. Esse material, uma vez organizado e analisado, poderá vir a ser um valioso instrumento para o que poderíamos chamar de pensamento negro feminista;
    • não apropriação de canais eficazes de comunicação;
    • inabilidade de ativistas e entidades em lidar com os meios de comunicação e as novas tecnologias de informação.

 Era preciso então vencer a principal barreira, ou seja, o processo de comunicação, desde a produção e o armazenamento até a circulação da informação, que traduziria o estado de arte do movimento, possibilitando maior mobilização de pessoas para a causa. A idéia das comunidades virtuais nos dá a exata dimensão dos avanços ocorridos nas últimos anos, principalmente no que se refere as grandes redes de comunicação, como é o caso da Internet. Novas formas de pensamento e estratégias de ação são introduzidas a todo instante. A informação e os fatos circulam em velocidades instantâneas. A própria maneira de exercer a militância tem se alterado para determinados setores do movimento social. O MMN não está fora desses novos agenciamentos.

Nesse sentido, vimos crescer assustadoramente a quantidade de sites disponibilizados na Internet, fazendo parece que uma nova dinâmica impregna-se no interior do movimento de mulheres negras, principalmente, das entidades que orientam seu trabalho numa perspectiva de gênero, raça e classe. Projetos são elaborados exclusivamente para esse fim, como é o caso da RECOM (Rede Eletrônica de Mulheres Negras), que tem promovido ações no sentido de capacitar e treinar grupos historicamente excluídos nas novas tecnologias de informação e nas novas profissões que o ambiente virtual demanda.

O MMN, no mundo virtual, cresce numa dinâmica nunca vista. A todo instante, mais entidades hospedam-se no espaço virtual, abrigando e transmitindo informações, fazendo convocações, distribuindo conhecimento, preservando a memória da entidade e, por conseguinte, a memória do próprio movimento. Redes são consolidadas e a comunicação entrelaçada de forma assíncrona e desespacializada. Não há pesquisas feitas nesse sentido, mas posso afirmar que um grande número dessas entidades estão com sites na Internet ou estarão muito em breve. Saber, em que medida, a ocupação dos espaços virtuais pode ser vista como garantia de melhor tratamento no processo de emancipação das mulheres e do enfrentamento das questões de gênero, raça e classe é uma análise que merecerá uma pesquisa futura. . A Internet e a gama de possibilidades que oferece os avanços tecnológicos têm se convertidos em agentes poderosos de produção e renovação constante da constituição imaginária.

 

Avaliação

O Movimento de Mulheres Negras, apesar de todas as fragilidades organizativas, tem desempenhado importante papel ao processo de emancipação das mulheres negras. Vimos crescer a percepção da necessidade de participar de fóruns de discussão, seminários, partidos políticos, definições de políticas públicas, orientações de pesquisa para a saúde da mulher negra etc.

O mal estar que incomoda as mulheres negras de um modo geral ainda não foi resolvido. Em parte, devido a inabilidade que os movimentos de esquerda têm em lidar com as singularidades que vão surgindo no seu interior, insistem em focalizar apenas o sistema econômico capitalista, que por dividir a sociedade em classes, gera e reproduz desigualdades, mantendo as relações de poder estáveis.

Não há como deixar de reconhecer e “tirar o chapéu” para o Movimento de Mulheres Negras que inovou ao trazer suas interpretações, a interlocução entre gênero, raça e classe, tanto para o Movimento Negro quanto para o Feminista. Foram pioneiras em quebrar conceitos fundamentados em pressupostos universalistas, instauraram novos paradigmas, reivindicaram o respeito as suas singularidades...

A conscientização de que as mulheres, de um modo geral, estão em uma posição inferior ao dos homens brancos nos estamentos sociais não é mais ponto de discussão.. Também não há o que argumentar a posição das mulheres negras em relação às brancas. Mais instigante fica esse quadro se segmentado por cor/raça[6]. No caso das mulheres negras, constatar-se-á que, estatisticamente, estão nas últimas instâncias dos dados pesquisados: menores anos de escolaridade, menores salários, menor renda, maior número na posição de chefes-de-família. Essa última qualificação, muitas vezes equivocada e ideologicamente tratada como símbolo de auto-suficiência das mulheres negras, revelam, na verdade, a situação de desamparo, abandono, preconceito e a responsabilidade solitária que têm elas no sustento de sua prole, que se constitui em um pesado fardo imposto a elas desde muito cedo e através dos tempos. Por mais avanços que tenham logrado em relação às principais questões nas duas últimas décadas, as estatísticas continuam colocando-as na base da pirâmide. (LOVELL. 1994)

Nascer mulher negra no Brasil já traduz uma história de enfrentamentos, que pode ser agravada, com intensidades diferentes, se pertencer a classe trabalhadora, não comparáveis nem com as dificuldades dos homens negros, também vitimados pela discriminação em nossa sociedade. Uma automática comparação com a posição dos homens negros, que, em termos relativos, apresentam resultados mais positivos.

(...) o homem negro, a despeito do racismo e da discriminação racial, ao ser comparado à mulher negra apresenta vantagens relativas que só podem ser atribuídas à sua condição sexual, isto é, a partir da análise de alguns indicadores sociais, evidencia-se que nascer homem negro, em termos de oportunidades sociais, é menos desastroso do que nascer mulher negra.(CARNEIRO & SANTOS. 1985:30-31)

Desmontam-se assim as interpretações que atrelam exclusivamente a luta de classe como solução do racismo e do sexismo. Se assim o fosse as mulheres com mesmo nível de escolaridade que os homens, não receberiam menores salários; ou as mulheres negras que conseguiram ascender socialmente não teriam tão prontamente relatos de discriminação sofridas no cotidiano[7].

Embora, tanto o movimento Negro quanto o Feminista, busquem a valorização da pessoa humana independente da raça, sexo, condição social ou quaisquer outros constructos sociais, a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo, o processo de constituição da cidadania já se iniciava de forma desigual para as mulheres negras.

A interpretação de dados estatísitcos mostra a mulher negra na base da pirâmide social: trabalham mais, recebem menos, ocupam posições mais subalternas. Isso é fato! Por outro lado, também mostra que, apesar da tripla opressão que faz parte das experiências de vidas do conjunto de mulheres negras, um número significativo delas, tendo em vista todas as dificuldades que teve que enfrentar em busca de seus objetivos, conseguiu “levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”. São médicas, advogadas, professoras, delegadas, cientistas sociais, promotoras de justiça, empresárias... É muito pouco ainda!

Com certeza, para muita delas, esse “sucesso” está atrelado a uma história de muito sangue, suor e lágrimas. Tem também uma minoria, talvez, as mais jovens, que já não teve que suar tanto, por já encontrarem um ambiente mais favorável (alguém lá atrás lhes facilitou o caminho: o pai, a mãe, um(a) irmão(ã) mais velho etc.!). Todas devem ter experimentado e experimentam ainda alguma forma de discriminação racial. Umas lembram com mais prontidão, outras precisam de um “esforcinho”. Defendem posições diferentes acerca da maternidade, do aborto, da família, sexualidade, do homossexualismo, da relação com homens negros e brancos. Apreendem de forma própria a dura realidade que enfrentam. Respondem da maneira que sabem ou convém. Têm posições diferentes sobre os rumos a serem dados ao MMN. Isso é um direito!

Dentro dessa multiplicidade de “sujeitas”, o MMN precisa retomar seus pressupostos, encarar essa nova realidade, trabalhar com sua própria diferença para que se possa construir um projeto que vá atender a todas as mulheres negras, independente de classe social, visão de mundo, experiência de vida, padrão estético. Assumir que também as mulheres negras têm experiências de vida diferentes e as apreensões/leituras que farão dessas lhes direcionarão para diversos caminhos.

There has never been a uniformity of experience among African-American women, and there is less uniformity today. What remains as a challenge to Black feminsts scholars is to rearticulate these new and emerging patterns of institutional opression that differentially affect middle-class and working-class Black women.. Is this does not occur, each group manu in fact become instrumental in fostering the other’s oppression. (SMITH. 1991:66)[8]

O MMN tem enfrentado sérias dificuldades em seu processo de mobilização não somente em função da pauperização da população negra, que a obriga a lutar, primeiro, por sua sobrevivência, com se o político não tivesse atravessando essa situação, mas, principalmente, porque não tem conseguido definir, sem autoritarismo e superficialidade, quem são seus verdadeiras inimigas. Apresentam críticas pertinentes aos Movimentos Negro e Feministas. De fato, esses movimentos tinham uma visão essencialista de sujeitos, partindo assim de ponto de vistas diferentes e que oneravam as mulheres negras. Alguns setores ainda têm.

É preciso entender que as mulheres negras têm umbigos diferentes também e que seus cordões foram cortados em contextos diferentes. Desta forma, o posicionamento que vão assumir em suas relações na esfera social é múltiplo. Neste aspecto, o MMN também adotou uma práxis essencialista e, portanto, autoritária, para pensar a mulher negra.

Assim, para que as relações de gênero sejam úteis como categoria de análise social, devemos ser tão autocríticos e socialmente engajados quanto possível sobre tais relações e os modos como as pensamos. Senão, corremos o risco de reproduzir as próprias relações sociais que estamos tentando entender. Devemos se capazes de investigar barreiras tanto sociais quanto filosóficas para a compreensão das relações de gênero. (FLAX. 1992:236)

Por outro lado, apesar das contradições vivenciadas no interior do MMN, que provoca sensível distanciamento de um bom número de militantes, pois via ali reproduzidas as mesmas relações de poder que vivenciam em outros espaços, é a partir dele que uma outra história começa a ser contada sobre as mulheres negras. Resgata-se a história cultural, política, religiosa. Luta-se para construir uma identidade negra feminina positiva e democrática. Brigam, até hoje, para libertar a mulher negra da imagem de fracasso, invisibilidade, alienação no imaginário social. Devolve-lhe a criatividade, o poder de orientar seus próprios rumos. Reivindicam o assentamento da mulher negra no panteão que lhe fora negado.

A matrifocalidade, elemento chave para entender a posição da mulher negra na sociedade brasileira, principalmente na Bahia, persiste amparada em novas conformações e precisa ser repensada dentro desse novo aspecto. Compreender até que ponto o matrifocalismo contribui, imageticamente, para a submissão e opressão da mulher negra é um dos caminhos a ser percorridos. A mulher negra é exaltada, lembrada, considerada o elo chave para a história da cultura negra e de resgate a cidadania, mas desde que permaneça no lugar que lhe fora atribuído historicamente, mãe incondicional de companheiros, filhos, naturais ou não, companheira submissa, chefe de família sem garantias e opções, exposta a todos os tipos de violência física, psicológica e simbólica.

Contradições sérias vão se acumulando na trajetória de vida das mulheres negras que optam por incorporar em seu cotidiano uma práxis feminista, isto é, levam para sua práxis questionamentos e proposições de mudança em relação a maneira como querem se ver e ser vistas e (re)tradas, ter o direito de optar, decidir, participar. Isso implica, necessariamente, a romper com algumas questões que fazem parte de sua trajetória histórica, solidamente sustentadas em sua memória. É nesse momento, que começam a verificar que um longo caminho ainda têm pela frente.

Cabe ao Movimento recriar uma auto-imagem positiva, que vá em direção a uma práxis mais altruísta, fazer com que a experiência das ancestrais lhes dêem a mesma força para que possam viver em condições mais igualitárias as suas diferenças, sem entrincheirá-las em modelos tradicionais. Reconstituir o imaginário social. Resgatar e re-atualizar modelos espalhados nos mais diferentes espaços sociais: no Candomblé, nas irmandades, nos sindicatos, nas associações de bairro, nas escolas, nas Universidades, no mundo do trabalho etc.

Referências Biográficas:

AGUIAR, Neuma. Gênero e ciências humanas – desafio às ciências humanas desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro:Rosa dos Tempos, 1997.

BAIRROS, Luiza. Mulher negra e feminismo. Boletim do Centro de Informação da Mulher, n. 11, São Paulo, 1988.

CARNEIRO, Sueli. Organização nacional de mulheres negras: desafios e perspectivas. In: Cadernos Geledés. n.4. São Paulo: Geledés, 1993.

CARNEIRO, Sueli.Carneiro, Sueli, Santos, Thereza & Costa, Albertina Gordo de Oliveira. Mulher Negra; Política Governamental e a mulher. São Paulo: Nobel:Conselho Estadual da Condição Feminina, 1985.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

COLLINS, Patricia Hills. Black, feminists thought. Knowledge, consciousness and politics of empowerment. New York: Routledge/Perspectives on Gender, 1991, v. 2.

COSTA, Albertina de Oliveira & BRUSCHINI, Cristina (orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo:Fundação Carlos Chagas, 1992.

FLAX, Jane. Pós-modernismos e as relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pós modernismo e Política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

FRANCHETTO, Bruna et alii. Antropologia e Feminismo. In: FRANCHETTO, Bruna, CAVALCANTI, M.L. e HEILBORN, M.L. Perpectivas Antropológicas da Mulher 1, Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

GONZALEZ, Lélia. Mulher Negra. In: Carta 1: falas, reflexões, memórias. n. 4. Brasília:Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, 1994.

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LANDES, Ruth. Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa, Gradiva: Trajectos 32, 1996.

SMITH, Barbara (org.). The combahee river collective statement: black feminist organizing in the seventies and eighties. New York: Kitchen Press, 1977.

SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Iyámi, Iyá Agbás. Dinâmica da espiritualidade feminina em templos afro-baianos. In: Revista de Estudos Feministas. n. 2. Rio de Janeiro:IFCS/UFRJ-

 

[1] Mestre em Comunicação, trabalha na área de Educação a Distância da Universidade Federal do Rio de Janeiro, webmaster do site http://www.cfch.ufjr.br/mnegra , desenvolve pesquisa sobre feminismo negro e redes virtuais. Integra a Rede Eletrônica de Comunicação de Mulheres Negras/RECOM – http://www.recom.com.br

[2] Combahee River Collective foi um grupo de feministas negras de Boston que tiraram esse nome de uma ação de guerrilha idealizada e liderada por Harriet Tubman em 2/06/1862, na região de Port Royal da Carolina do Sul. Esta ação libertou mais de 750 escravos e é a única campanha militar na história da América planejada e lideradas por uma mulher. Foi esse o espírito que influenciou essas feministas negras a organizarem-se e a lutar contra todos os tipos de opressões que recaiam sobre a mulher negra.

[3] Esse artigo foi publicado pela Nobel e Conselho Estadual da Condição Feminina, juntamente com um outro artigo “Política Governamental e a mulher”, de Albertina G. de O. Costa. Vide referências bibliográficas.

[4] Mulher Negra, organização, estratégias e perspectivas. Relatório final do II Encontro Nacional de Mulheres. Salvador, BA. 1991, p. 03.

[5] III Encontro Nacional de Mulheres Negras. Fórum de Mulheres Negras de Belo Horizonte.jun/1998. (documento não publicado e recebido via e-mail)

[6] Para a Antropologia, raça, cor, etnia são categorias diferentes, e, portanto, remetem a interpretações diferenciadas, entretanto, aqui tenho utilizado esses termos indistintamente.

[7] Vale a leitura de bibliografias já publicadas sobre essas personagens: ALAMADA, Sandra. Damas Negras: sucesso, lutas, discriminação. Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de Souza, Zezé Mota. Rio de Janeiro: Mauad, 1995; Mendonça, Maisa & Benjamim, Medea. Benedita. Rio de Janeiro: Mauad, 1997.

[8] Nunca houve uma uniformidade de experiências entre as mulheres afro-americanas, e hoje há menos uniformidade ainda. O que permanece como um desafio às intelectuais feministas negras é rearticular tais padrões novos e emergentes de opressão institucional que afetam diferentemente as mulheres negras de classe média e da classe trabalhadora. Se isto não for ocorrer, cada grupo pode, de fato, tornar-se instrumento na promoção da opressão do outro.