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Grupo de Trabalho 5
Alteridades substanciais - apontamentos diversos sobre índios e negros[1].

 Edwin Reesink[2]

 

Ponto de partida

Alteridades e identidades são duas faces resultantes de um processo complexo de definições socioculturais da atribuição de características de semelhanças e diferenças entre as pessoas que constituem, a partir deste dispositivo socialmente relevante, um conjunto de pessoas transformado em um grupo implicativo de algum grau de sentido de coletividade. O jogo complexo de conceber e estabelecer, socialmente, as semelhanças e diferenças culturais, cujas distinções serão validadas nas interrelações sociais, para atingir algum grau de naturalidade ou de premissa de senso comum, é de fundamental interesse para o estudo da realidade social: por meio deste processo de reificação se fincam como existentes, e até naturais, as categorias de si e de outrém socialmente operantes. A construção da pessoa passa e se ancora, ainda nesse mesmo sentido, pelo construção sociocultural do corpo, o ‘locus’ fundamental: primeiro, pelas distinções concebidas que os corpos reais permitem e que criam as noções sociais de homem/mulher, raça e povo/nação; segundo, pela experiência corporal de cada um, transcendendo a divisão cartesiana entre mente e corpo, que, em uma das conseqüências desta união, inscreve as distinções sociais no próprio corpo e no desempenho corporal.

Gênero, aliás, neste sentido, parece estar mais ancorado em diferenças físicas do que raça e etnia -- sem que isso implica em um determinismo biológico fácil --, embora, em toda cultura específica, sempre se concebe as três noções socioculturais como de existência substancializada e essencializada. A investigação das substâncias corporais concebidas e sua relevância para as distinções socioculturais étnicas e raciais merece, nesse contexto, uma atenção maior do que parece ter sido dado. A desvinculação na antropologia das identidades das suas bases substancialistas, enfatizando o caráter socioconstrutiva e relacional, talvez tenha desviado um pouco demasiado o exame das concepções identitárias dessas premissas essencialistas. Dessa maneira, proponho-me aqui a reunir alguns indícios das concepções substancialistas para com índios e negros, enquanto categorias construídas fundamentadas por um componente substantivo importante. Para essa discussão, preliminar, explorador e passando por alguns espaços sociais distantes, tenho que me limitar a algumas noções socioculturais e alguns casos privilegiados. Uma noção chave parece ser a de sangue, e iniciarei este itinerário argumentativo, um tanto quanto fragmentário, por este componente corporal, fortemente relacionado ao parentesco. O sangue como principal vetor constitutivo do corpo fará com que devemos alargar o campo de investigação e reunir indícios sobre sua relevância mais abrangente dentro do qual se inserem os casos das categorias índios e negros.  

   

Sangue e parentesco

 Sangue é uma categoria sociocultural que aparece em muitas culturas e muitas épocas. Pela sua importância corporal, talvez, não haja cultura que não elabora alguma representação a respeito do seu significado que não contenha um componente cultural de alguma especificidade[3]. No caso de uma das fontes da cultura ocidental, a bíblia menciona que “o sangue é a alma” (cit. em Cascudo s.d.: 801). De fato, no livro sagrado da cristandade se encontram várias referências ao sangue, inclusive instruções sobre a evitação do sangue dos animais sacrificados cujo sangue deve ser vertido para Deus, mas cuja carne pode ser consumida uma vez que está sem sangue: porque o sangue é a alma é que não se deva comer a alma junto com a carne (Deuteronômio XII, 23; sob sanção de expulsão do povo, Deus virá sua face contra essa alma, Levítico XVII, 10 e 14). Nestes e os versículos adjacentes se encontra que o sangue é derramado como sacrifício para a reconciliação com Deus (ou, traduzido por expiação), sendo o sangue a alma do animal, é a alma-sangue do sacrifício, que pertence a Deus, no Seu Altar far-se-á a reconciliação da alma do sacrificante[4]. Ou seja, a alma do sacrificado em benefício da alma do sacrificante. No caso, expressa-se também que o sangue é a alma e a vida; afinal, a vida se esvai com o derrame do sangue[5].

Com estes precedentes, o sacrifício do sangue de Cristo se insere na mesma lógica de salvação das almas: o sangue do filho de Deus em benefício da salvação das almas, de toda humanidade e para toda a eternidade, universalizando e eternizando o resultado do sacrifício. Uma transformação das instruções bíblicas sobre o bode expiatório, cujo sangue purifica os pecados e imundices do povo judeu, o Cristo redime toda a humanidade da queda original, inaugurando um novo tempo, período que finalizará, no fim dos tempos, com o retorno de Jesus e o reino milenarista. A divisão carne e sangue recebe a elaboração na missa no milagre da transsubstanciação do corpo e sangue de Cristo. O crente, aliás, partilha literalmente do corpo e sangue de Cristo, ingerindo a totalidade do sacrificado (carne mais sangue), estabelecendo uma relação corporal total próprio com o seu salvador (que inclui, naturalmente, a alma). Talvez, podemos concluir que, deste modo, haja tentativa de conformar uma total identidade entre o corpo-alma do salvador com o corpo-alma do crente salvo. Uma identidade consubstancial, portanto. A morte é o fim de uma vida, em contrapartida, a alma se preserva e o corpo, enterrado para servir novamente, se destina à ressurreição. De certa forma, embora não seja claro no texto, a expectativa seria que Deus restituiria o corpo com sua alma pela reposição de sangue (renovando, inclusive, o corpo apodrecido). Sangue é o que há de mais relevante, um símbolo corporal-vital focal, na concepção cristã de alma, para a vida terrena e a vida da alma eterna.

De suas origens indo-européias derivam noções que relacionam o sangue com o parentesco, em particular com a transmissão de certas qualidades hereditárias que marcam a passagem, em família, de características consideradas típicas. Na antropologia, a própria noção de “consangüinidade”, introduzido por Morgan, é tributária deste complexo simbólico. Aqui há uma linha de continuidade de longa duração, de vulto bem maior do que passível de ser tratado nesse momento. Mesmo assim, vale observar, por exemplo, um cantar sobre os acontecimentos ocorridos na batalha de Bouvines, 1214, entre o Rei da França e o Imperador Oto. No canto surge uma tentativa de estabelecer a superioridade intrínseca do valor dos franceses sobre os teutônicos, a caminho de construir uma coletividade que consiste dos franceses como uma etnia e uma nação para dirigir o mundo. Contra a raça degenerada do Rei da Inglaterra e a violência selvagem dos teutônicos, os francos, transformados em franceses, se destacam por suas qualidades positivas. Qualidade que se nota até em um cavalheiro traidor, bom lutador em razão de ser nascido de pais franceses: “Sangue bom não pode mentir” (Duby 1993: 214; v. 207-215). Duby se arrisca a ver neste momento um flagrante da passagem feudal para um início da constituição do ideário nacional. A raça e os antepassados do Rei e dos cavaleiros ultrapassariam os limites estreitos de sua genealogia pessoal para uni-los em uma só nação. Raça vitoriosa, que evoca uma comunidade de sangue. Desta maneira, há muito tempo existem relações intrínsecas e imbricadas entre etnia, raça e sangue. No limite, prefigurava-se o que o Estado-Nação assumirá com toda força e de que o exemplo mais extremista terminou sendo o lebensraum e o blut und boden manipulado pelos nazistas alemães (espaço vital; sangue e terra). Não é por acaso, tampouco, que o jus solis e o jus sanguinis são os dois princípios adotados pelo Estado-Nação para definir seus membros, um ou outro ou em alguma combinação (às vezes em certa contradição; Reesink 1999).

   

Sangue na história brasileira

 Neste artigo pretendo demonstrar a existência e importância deste conjunto de noções e valores, percorrendo um itinerário de indícios um tanto quanto esparsos e diversos (em vários níveis), com o intuito de subsidiar o início de uma discussão a ser desdobrada em termos monográficos e teóricos[6]. As relações entre as representações de sangue, família, etnia e raça se configuram de modalidades diferentes mas muito presentes na história brasileira e suas categorias sociais relevantes. Uma separação social que marcava limites de categorias sociais importantes na colônia se relaciona com este conjunto de representações e valores, imprimindo aos índios o lugar simbólico de raça inferior, selvagem e, por isso mesmo, próximo da natureza. Deculturar e aculturar forçosamente, equivalia a civilizar os ‘brutos’ e ensinar-lhes a sair do seu estágio inferior de cultura e sociedade. Todo projeto colonial se montou para alcançar a integração dos índios, em uma modalidade bem definida, dentro da sociedade, visando sua assimilação final como súditos leais, cristãos, de categoria inferior, mas indistintos em termos de etnicidade. Tais objetivos falharam no caso de uma série de povos indígenas no Nordeste, para o qual a estigmatização contínua e a atribuição geracional de identidades substancializadas contribuíram decisivamente. Não obstante, esta constelação, como já observado, não foi objeto de maior investigação.

Na Europa medieval, posterior ao que Duby se arriscou a ver como um indício do começo da construção da nação “francesa”, havia uma distinção dual de grande saliência social baseado na noção de sangue. O sangue azul legitimava a nobreza em contraposição ao sangue plebeu, tendo sido um vetor hereditário que perpetuava uma diferença substancial intrínseca, responsável por características diferenciadas e superiores. Ao contrário de Portugal, bem mais estamental conforme a divisão básica e suas gradações internas, a reprodução deste modelo da sociedade seiscentista na colônia da Terra de Santa Cruz encontrava os obstáculos de uma modalidade de colonização com poucos recursos humanos e a longa distância. Mandava-se, por exemplo, degredados, na verdade “degradados”, pessoas baixadas de grau (Vainfas 1997: 31). Poucas mulheres chegavam para o casamento e muitos homens tomavam uma amante negra, termo que, inicialmente se aplicava tanto aos índios que aos africanos, e, ainda, especialmente aos primeiros[7]. Marcando sua posição semelhante no esquema hierárquico básico, como as duas categorias sujeitos à escravidão dentro da ordem escravocrata em gestação, sua diferenciação inicial somente se dava em sua autoctonidade, um sendo da terra e outro, por exemplo, da Guiné (cf. ib.: 30)[8]. As duas categorias, de fato, já sendo produto do processo de colonização: não havia, é claro, nem negros da terra, mas povos autóctones diferentes sem qualquer designação coletiva, nem negros da Guiné, indivíduos arrancadas de povos autóctones diferentes, também com auto-identificações étnicas próprias, lá na África. Com a dominação étnica, racial e estamental, que poderíamos dizer, se sobrepunham, inicialmente, as condições sociais da colonização conquistadora de imediato se complexificaram, dando origem a novas categorias e, desta maneira, a criação de novas classificações que adquiriram significado e peso nas interações sociais.

O exemplo tirado figura no texto das Confissões da Bahia, resultado das atividades do visitador do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa que desembarcou, em 1591, na cidade. A força da necessidade da limpeza de sangue se observa pelo fato que este homem, de foro nobre, passou por dezesseis investigações antes que habilitado para o cargo. O representante da Santa Instituição haveria de estar, com toda certeza, livre de “qualquer nódoa de sangue infecto”, ou seja, de judeu, mouro negro, índio etc. (ib.: 17). Isto implica que a pessoa se contaminava por qualquer sangue estigmatizante e que a pureza se mantinha exclusivamente pela descendência (legalizada de preferência) de dois pais puramente cristãos-velhos. Configura-se um modelo de pureza estamental em que o polo dominante tinha o dever de se manter não contaminada e em que os não-puros pudessem ser classificadas em graus de distância do centro. Não é de estranhar que o mameluco, o mameluco normalmente descendente de português com índia, é dado como palavra de origem árabe que significava “escravo”, “criado” ou “pajem” (ib.: 152)[9]. Uma descendência mista ‘desclassificava’ o sujeito, claramente expresso na posição subalterno do significado original. Repare-se, aliás, que o mameluco em questão nessa confissão foi duramente castigado, porém, serviu de atenuante ser de menor na época do delito pecaminoso e o fato de “ser mameluco”. Ou seja, tudo indica que equivalia a ‘ser inferior’ e implicava em ‘ser menos capaz’, curiosa antecipação da tutela da “capacidade relativa” na Lei do Índio ainda em vigor, embora, provavelmente, em bases biológicas e não culturais.

O visitador se preocupava com toda espécie de pecado, especialmente no plano sexual e as heresias, mas dedicava uma atenção especial às praticas judaizantes presumivelmente executadas pelos cristãos-novos. Aos judeus pertenciam um sangue particularmente ‘infecto’ e a Inquisição mostrava uma sensibilidade grande em detectar essas práticas e enquadrar os novos cristãos. Por hipótese, é possível que seja em razão de sua ancestralidade, como um vetor até biológica, que se esperava uma predisposição a tais práticas pecaminosas. Percebe-se, aliás, que é possível que tenha havido transmissão cultural de práticas bastante inocentes mas que eram tomadas como indícios de graves distorções. Assim, em uma época em que a sociabilidade entre cristãos-velhos e novos não figurava tão estanques e rígidos, a visita da Inquisição causou sofrimentos e maior rigidez em uma formação social em situação de fronteira, o que tendia a atenuar os limites e forjar novas formas e categorias sociais (em particular misturas sociais e biológicos)(cf. ib.: 28-29)[10]. Em contrapartida, o valor da nobreza, “sua fidalguia e foro nobre”, protegeu o senhor de engenho Fernão Cabral, entre outros potentados locais. No caso, este outro Cabral deu guarida a uma nova religião, a Santidade, uma heresia indígena com forte participação de mamelucos. Tratava-se de uma reinterpretação criativa do religioso indígena à luz do sistema cristão, antecessor paradigmático do ritual do Toré dos índios nordestinos contemporâneas (Reesink 1995). A sua condição o livrou de uma pena mais pesado do que esperado em função do seu amplo apoio dado por este senhor nobre aos considerados heréticos (Vainfas 1997: 30). O sangue infecto dos cristãos-novos o atingia, potencialmente, mesmo sendo supostamente cristão, bem mais pesadamente enquanto que o sangue nobre e limpo aliviava grandemente a punição por delitos bem mais graves. Com efeito, por hipótese, a capacidade da pessoa, sua construção social passa pela construção do seu corpo e, este, pelo seu sangue. O descendente do judeu, mesmo cristão, permaneceu intrinsecamente suspeito e a ser disciplinado, o misturado mameluco foi menos capaz e, em conseqüência, menos imputável, mas o nobre que pecou mais -- e que pudesse ter sido considerado o mais capaz e responsável em termos de sua ‘pessoa’ --, foi preservado, relativamente, por seu estatuto superior[11].

O visitador continuou seu trabalho em Pernambuco, confirmando a distinção de tratamento correcional para membros das famílias principais da terra. Em Pernambuco o “tempo dos holandeses” teve por efeito uma importante diferenciação para com outras capitanias e se criou um sentimento de especificidade do ‘ser pernambucano’, cujo ‘nativismo’ tomou várias formas durante os séculos posteriores. Um desses efeitos foi a criação de uma “nobreza da terra”, uma verdadeira engenharia social que enobreceu as famílias “principais” quando em sua maioria a colonização consistiu de membros da terceira ordem, o “povo”, e havia poucos nobres de origem. Antes da guerra com os holandeses, a colônia não era tão rígido em suas separações entre as categorias sociais, enquanto que em Portugal nos seiscentos se enrijecia as divisões. Assim, havia alianças matrimoniais que mesclavam cristãos velhos e novos, dado uma menor importância social dessas origens, que convém, até, a uma sociedade de fronteira cheio de movimentos e, vale relembrar, em pleno processo de conquista de territórios indígenas (para o desgosto do visitador). A pretensão nobílica pós-guerra elevava não somente a origem social das famílias principais como também necessitava de limpeza de sangue destas possíveis impurezas. Tal situação, as famílias da elite por definição deviam ser nobres e limpas, incentivou, nas pesquisas necessárias para certas honrarias, fraudes genealógicas, para adequar o passado ao estatuto ‘de facto’ criado na segunda parte do século XVII e até boa parte do século seguinte (Mello 1986; 1989)[12]. 

A genealogia, a ascendência, classificava a pessoa de um modo mais generalizada e dependendo, portanto, do seu parentesco, conferindo-lhe um valor derivado da família que lhe antecedia. Para uma honraria como pertencer a Ordem de Cristo, uma investigação desclassificava o pretendente se fosse achado qualquer antepassado de sangue converso, o que causava um defeito de sangue e uma falta de limpeza de sangue[13]. A nobreza natural transmitia-se pelo sangue o seu estatuto diferenciada e qualquer traço de outra sangue rebaixava esta pretensão. Na formula da época, todos os ascendentes haviam de ser “(...) cristãos-velhos limpos, sem raça alguma de judeus, mouros, mulatos, nem de outra alguma nação infecta” (Mello 1989: 89). Ou seja, a pessoa era como o somatório dos antepassados, englobado e constituído por estes mediante sua constituição física, raça sendo uma qualidade física aparentemente sinônimo ao sangue, porém, menos mencionado do que este vetor de transmissão substancial de qualidade da pessoa; a família prevalecia em primeiro lugar, e para que Cabral de Mello usa as expressões, tomadas emprestadas da antropologia, de linhagem e clã, indicando seu caráter extensional e não limitado a uma noção de família nuclear, o que acorda com o fato de se tratar de categorias sociais amplas de distinção coletiva, estamental. O sangue judeu funcionava de modo binário, como, observa-se como curiosidade pela situação atual do gradualismo racial brasileiro, no caso do racismo americano: qualquer presença desqualificava a família e a pessoa, com sérias conseqüências sociais. Em contrapartida, quando em oposição aos reinois comerciantes, a clivagem socialmente muito proeminente com os mascates (desde a ‘restauração’ até a ‘independência’), a nobreza tornava a marca infamante de um grau remoto com uma índia como um sinal invertido, dando um toque de natividade brasileira legitimador contra os vindos de fora. Por outro lado, às vezes para desespero da “nobreza”, o defeito mecânico (o trabalho manual) valia menos do que defeito de sangue.

Prefigurando o ‘mito das três raças’ da conformação do povo brasileiro, não somente é relevante a pureza de sangue nobre que, afinal, entra em declínio posterior, mas a noção de sangue em si perdura e se vinculava a uma concepção pernambucana de sua origem. Veja-se a tetrarquia do panteão dos ‘libertadores’ de Pernambuco. Foram quatro os escolhidos, excluindo, por exemplo, os beligerantes da primeira fase da guerra, a fase das derrotas iniciais. Quando mencionados, vinha encabeçando a lista os dois brancos, um reinol (mas há muito radicado em Pernambuco) e outro (nativo do Brasil), enquanto seguiam o negro e o índio, às vezes de ordem invertida, mas sempre atrás dos outros. Como observa Cabral de Mello (Mello 1986), isso denotava a imagem de uma cooperação supraracial em torno do mesmo objetivo e o mesmo inimigo. A primeira posição, naturalmente, coincidia com a hegemonia da nobreza da terra sobre os outros componentes e sua divisão em duas partes obedecia a separação social na elite, já mencionada. Digno de nota é que os negros e índios, unificados etnicamente, ao contrario da diferença presente na descendência branca, foram concebidos como puros, simplificando tanto as origens étnicas (e raciais), diversas de cada categoria, quanto cristalizando uma imagem estanque da realidade racial[14]. O mito fundador ainda não reconhece a mescla étnico-racial, a realidade da mestiçagem, como se o bloco do sangues inferiores se dividia em dois compartimentos fixos do mesmo modo que, em linhas gerais, o bloco do sangue superior português, ressalvando a gota de sangue da índia (esta em si prefigura a imagem da incorporação, pelos dominantes das mulheres dos dominados, os homens reduzidos a força de trabalho puro[15]).

A realidade colonial não comportava, dessa maneira, um lugar conceptual para os misturados de sangue, mantendo o ideário de uma sociedade estamental. Em Portugal, no entanto, o Marquês de Pombal, na metade do século XVIII, aboliu os estatutos de pureza de sangue, desfazendo as fronteiras rígidas, estimulando casamentos mistos na nobreza portuguesa com descendentes de cristãos-novos e, no Brasil, proibiu a discriminação dos casamentos interétnicos como na interdição do termo “caboclo” para o resultado de tal união. Ganhou força a concessão de foro nobre pelo príncipe, mais por outras vias de ascensão do que por mérito intrínseco herdado. Depois de 1800 torna-se inviável a manutenção da pretensão nobílica hereditária e a nobreza do Império já se constituía pela nomeação. Mesmo com renovações na elite, o regime escravocrata, no entanto, destinava “(...) uma sorte avara (...) ao lumpenproletariat de mamelucos e mulatos livres (...)(Mello 1986: 400). Na verdade, a sua existência embaralhava os cômodos fundamentos de uma ordem clara e fixa em que cada categoria étnica e racial, ainda sinônimos por sua coincidência real suposta, não se mistura mas se mantém alheio, contida em si mesmo.

Conforme visto, desde a colonização as fronteiras não se dissolvem mas criou-se os interstícios que não foram previstos no modelo social da permanência das purezas. Essa mescla gerou uma nova terminologia, na tentativa de criar novas posições dentro da hierarquia social nominal e acomodar as impurezas, mas, por assim dizer, como sinalizada pela não inclusão na tetrarquia, de certa má vontade para essas pessoas fora de lugar (impuros, à la Mary Douglas, em dois sentidos). O sangue, não obstante a mudança na nobreza, perdura como noção básica para pensar a natureza de parentelas e da nação brasileira. As massas misturadas viram motivo de preocupação no Império, presente sem ser mencionado muito, pela ameaça de absorver a elite branca. Cabral de Mello cita uma obra de cerca de 1850 que pleiteava a transfusão de sangue branco, mais “ativo” e “generoso” (ib.: 374). Ou, ainda, um autor, quase neste século, que, ao contrário de alguns contemporâneos, não lamenta a expulsão dos holandeses, porque, assim, se preservou ‘a religião, a língua e o sangue de Portugal’ (id.). O sangue continuava há portar propriedades sociais.

 

Sangue contemporâneo

 Como emerge esse complexo de noções de uma fundamentação substantiva de identidades transmitidas em uma sociedade brasileira que se complexificou, pelo tempo percorrido e no maior espaço ocupado, aumentando a quantidade de categorias socioculturais distintos[16]. Para iniciar um percurso indiciário na contemporaneidade, uma leitura do jornal diário, somente dos últimos dois meses do ano de 1998, pode-nos mostrar como a categoria de sangue não se extinguiu do discurso, nem mesmo dos jornalistas do jornal, dos colaboradores intelectuais eventuais e de leitores de outras origens sociais que enviaram alguma correspondência citada no jornal (novembro a dezembro de 1998 da Folha de São Paulo, jornal paulista mas veículo de maior circulação nacional). Aparecerem deste modo:

-- “um socialista puro sangue”; índice substantivo de sua adesão total ao socialismo, atribui, ainda, uma conotação de substantividade a um sistema de pensamento que circula no corpo todo, ou seja, ocupa a totalidade do seu ser por uma modalidade de fluido que atinge e alimenta o todo (jornalista paulista, colunista do primeiro time);

-- “vou ter que respeitar os antepassados; É uma coisa de sangue, sabe como é”; o sangue de um ancestral bem distante, de algum lugar incerto da Espanha, sendo invocado para torcer para um time de futebol espanhol -- quando, na verdade, é a rivalidade carioca local determinante da escolha de torcer contra o time brasileiro que não é o seu --, razão de transmissão substantiva de identificação para aderir a uma identidade que não é brasileira (colaborador eventual para futebol);

-- “a estratégia do governo se resume a seduzir os credores em fuga com o cheiro de sangue dos nativos (...) o combalido organismo nacional precisa mesmo é de mais transfusão do precioso sangue verde”; nessa crítica da política econômica do governo federal, a primeira metáfora é eloqüente em indexar o sacrifício dos nativos em prol dos estrangeiros credores (e substituir “nos” por “nativos” não implica somente invocar autoctonia mas também o desprezo ou a indiferença dos de fora) e a segunda metáfora é radcliffebrowniana em comparar a circulação do fluido da vida no corpo com a circulação do meio pagante na economia nacional (economista da Unicamp);

-- “Essa gente que tem fé ilimitada na razão acaba derramando sangue”; a crítica altamente angustiada de uma pessoa que se define como “dona de casa brasileira, anônima” sobre a política econômica contém essa acusação da completa insensibilidade social e econômica de inspiração totalmente tecnocrática dos chamados “economistas do governo” que, novamente, causará a perda de um liquido mais precioso e essencial para a manutenção do corpo, na verdade, uma substância vital cuja perda implica em perda de vida(s) inocentes e sem defesa (enquanto que a carta apela para ser porta-voz destes anônimos atingidos pela política mas sem representação alguma para serem participantes nas decisões que lhes afetam e até determinam a vida);

-- “O povo de Abaetuba não agüenta mais. Ninguém aqui é camarão, tudo mundo tem sangue nas veias”; no interior do Pará a ação da Polícia Militar contra o contrabando é sentido como uma repressão contra pessoas desconsideradas enquanto seres humanos, que se distinguem de um animal como o camarão por ter sangue nas veias, ou seja, o predicado da humanidade se representa por sinédoque pelo sangue (reportagem sobre o assassinato de um jovem considerado injusto e que provocou uma revolta violenta na população contra instâncias oficiais e seus representantes, o que leva a pensar que a reação demostra que sangue de gente não é sangue de camarão em uma equivalência que em outros lugares se chama “sangue de barata”; comentários do pai da vítima);

-- “atentam contra a alma do justo e condenam o sangue inocente”; essa frase dos Salmos da bíblia serviu de mote para defender de insinuações um padre cantor, que está fazendo muito sucesso junto ao público feminino, considerando seu sangue inocente quando estima que o padre não comete nenhum pecado com seu corpo, mais uma vez o sangue sendo metáfora do corpo e do seu comportamento, uma inocência intrínseca vinculado a sua boa substância (a referência ao livro sagrado que confirme a presença de uma “cultura bíblica” (O.Velho) que emerge regularmente, aqui a citação bíblico, no limite, remete ao derrame do sangue inocente de Cristo ou ao bode expiatório)(uma “leitora”, sem dúvida católica).

Depreende deste curto levantamento como a metáfora do sangue está vivo na sociedade brasileira, sem levar em conta ainda o realismo, com sua lógica simbólica própria, do sangue que respinga das páginas policiais. Tanto é assim que a constatação de que diferentes setores da população crêem na transmissão física de qualidades negativas ou positivas, já foi feita por antropólogos (Laraia 1988: 45). Laraia menciona a asserção de que a física “esta no sangue”, a partir de um ancestral, ou a herança de talento musical derivado de um avô (id.). Em um exemplo em classe média de Recife contemporânea, a avó, de origem interiorana, uma das poucas pessoas que se declara abertamente racista, nega a presença de ancestrais indígenas ou negros, apelando para uma descendência de um ancestral alemão, representado pelo seu nome. A diminuição do racismo em certas categorias sociais mais abertas para idéias modernas de igualdade e os atuais imagens de ‘bom selvagem’ do “índio”, fez a sua neta avaliar diferente e positivamente a probabilidade de aporte de sangue indígena. Ao comentar uma tendência ‘nomâdica’ no seu irmão, ela disse: “Está vendo, é o sangue de índio dele”. Mesmo em tom de certa ironia, a noção básico de transmissão de certas características comportamentais pelo sangue subjaz à possibilidade da afirmação, e sua não contestação neste nível, mas na negação empírica da ascendência unicamente europeu. Mesmo nas camadas médias da zona sul carioca, o princípio do sangue vigora para fundamentar o parentesco pelo via do natural, vinculado, inclusive a construção da noção de família, ao lado da categoria historicamente mais recente de amor. Ainda aqui o sangue é visto como “(...) veículo de transmissão de caracteres morais, até por isso biologizados” (Dauster s.d.: 100). Assim o sangue relaciona e inclui uma criança na família e no parentesco mais amplo, como determinação inescapável, sendo incorporado nas parentelas mais amplas pelos nomes de família (ib.: 101)[17].

Consangüinidade permanece sendo ‘com sangue’, a compartilha de um mesmo sangue pelos membros de uma família, o que parece válido para a sociedade brasileira em todo sua heterogeneidade na construção do parentesco[18]. Há diferença com uma noção aristocrática, já discutida, que engloba categorias sociais amplas recortadas em termos de superioridade e inferioridade intrínsecas e hierarquicamente alocam estes setores em posições sociais e econômicas; em contrapartida, as pesquisas mais recentes apontam para um esquema que não é imediatamente abrangente em uma totalidade. Vimos que, conceitualmente, a sociedade colonial ‘post bellum’ pernambucana se constituía em partes estanques, bem definidas em predicados físicos, culturais, sociais e econômicos: a pessoa englobada pela família, a família pelo estamento. Tal abrangência, aliás, lembra o racismo que se desenvolveu mais na segunda parte do século passado, e para que as fronteiras raciais consistiam de bases biológicas para definir limites de alta densidade. O estamento, como distinção categorial ampla hierarquizante, de sangue azul versus plebeu, deriva, com efeito, da mesma lógica substancializada e é, na verdade, lhe anterior. O que se modificou na sociedade nacional é esta caráter totalizador em poucas divisões sociais, fracionando-se em partes que a história criou pelos interstícios novos e as divisões internas da grandes categorias. Por exemplo, a criação de novos grupos étnicos entre os negros, baseados, de certo modo, mas não iguais às existentes entre os escravos, quando chegando da África, e, logicamente posterior conquista, a nominação diferenciada entre africanos e crioulos, nascidos no Brasil, e entre escravos e libertos[19]. Explorava-se, escusado dizer, estas novas diferenças visando a dividir a categoria mais ampla de “escravo” que indicava sua posição mais básica pretendida pela sociedade escravocrata (Reis e Silveira 1986). Para os “índios” há processos semelhantes, causando, em geral, uma multiplicação de categorias e uma maior heterogeneidade que complexificou a sociedade brasileira, no decurso destas metamorfoses e criações sociais históricas.

Dessa maneira, talvez seja possível pensar que o caráter mais estamental colonial não era factível por processos de complexificação que a própria sociedade escravocrata criou, na tentativa de obter uma manutenção da ordem que não dependesse tanto do recurso da violência. Movimento, talvez, tributária, na época pós-escravista, da crescente aceitação do ideário igualitário da pessoa ocidental moderna, reforçado, após a guerra, pela urbanização e industrialização (cf. Agier 1991: 6). De qualquer modo, se este englobamento deixou de existir, e outros eixos de hierarquização (classe) e novos valores (amor) se introduziram na sociedade, o vetor do sangue, transmitindo uma substância físico-moral hierarquizante, perdurou em complexos simbólicos diferentes em grupos sociais diferentes. Os indícios alinhavados permitem concluir uma permanência em que sangue emerge como operador de identidades sociais, de ser humano ao étnico, passando pela especificidade familiar. Talvez, por hipótese, em um radial que é concêntrico, o centro seja o sangue compartilhado no âmbito familiar (parentela), que garante o predicado humano da pessoa e sua inserção na mesma também, em um circulo interior, o pertencimento étnico; para, em seguida, a sua individuação se dá dentro da família, depois da sua combinação de nomes de família (combinação igual ao dos siblings), pelo prénome diferenciado, resultando uma combinação particular de atributos físicos fenotípicos, com a semelhança do parentesco compartilhado e uma diferença individualizante pessoal. O que varia é o peso que essas segmentos possam ostentar em diferentes categorias sociais. Na classe média carioca há um fator individualizante como o casamento por “amor”, ao contrário dos constrangimentos antigos da preservação do nome da família pelo casamento arranjado pelos pais. Nesse caso não está claro se o nome da família influi, ou seja, se o valor da parentela constitui a base para uma hierarquização das ‘boas famílias’ (com tendência a isogamia). No caso de classes trabalhadoras no Grande Rio, “o nome da família” e uma hierarquização destes não ocorre, enquanto em uma cidade no interior de Minas, os nomes provêem extenso meio de hierarquizar as famílias (parentelas) e, também diferentemente, uma diferenciação entre a herança paterna e materna (Duarte 1986: 202).

O sangue, não obstante, permanece sendo uma categoria chave para entender algo da construção da pessoa. O fato que na classe trabalhadora não existe uma importância dada ao nome de família e nem uma hierarquização social destas famílias, não impede que a transmissão do sangue não seja muito significativo para a construção da pessoa. O sangue tem uma importante papel na construção ‘intrapessoal’ da pessoa e se relaciona com as noções de família, força e cabeça, diferenciando as pessoas em famílias e introduzindo um valor diacrítico entre os gêneros (o homem tem mais sangue e destarte mais força, e a mulher tem uma relação peculiar com sangue em função da menstruação e, por causa disso, será regido por uma relação particular entre sangue e nervos; não deixando de criar, aqui, também uma assimetria). Na construção social do corpo e da pessoa se encontram e se cruzam as constituições de gênero, família e raça, pelo menos nessa classe trabalhadora. Trata-se de uma análise difícil de categorias mais “as idéias dessas idéias” do que facilmente classificatórias em um esquema clara de classificação social, na citação de Mauss feito por Duarte, mas que põem em jogo as identidades substancializadas que nos interessam (ib.: 201). Esclarece a análise que o sangue é objeto de preocupações pelo sua qualidade, quantidade e mobilidade que, além do aspecto mais corporal, sempre trazem consigo uma dimensão moral. Vetor “físico-moral” se revela na qualidade do comportamento das pessoas, assim é que fenômenos como alcoolismo e doenças venéreas (sífilis sendo o paradigma) implicam em sangue ruim (ou fraco) que criam para os filhos dos moralmente desqualificados toda uma “expectativa de estigma”. Ou seja, a herança moral da descendência contém uma série de “predisposições”, expressão de Loyola preferida pelo Duarte para, me parece, evitar um “biodeterminismo” totalizador (cf. nota 14). Talvez, mas, em contrapartida, mesmo não sendo causa absoluta, toda a expectativa tem um efeito muito forte de leitura de sinais e imposição de interpretação confirmativa, em uma circularidade de auto-confirmação social (Duarte 1986; em especial pp. 147-151 e 201-205).

A herança genética sendo fortemente considerado determinante de aspectos morais da pessoa, no devir da criança a adulto, a pessoa está destinado a cumprir, socialmente, e bastante objetivamente ao que parece, essa sua dotação. Como o complexo analisado pelo autor se refere a outra preocupação teórica, ele não discute o vetor geracional nesses termos. Mesmo assim, transparece uma relação com raça e etnia com este vetor físico-moral “(...) e com uma qualidade diferencial dos sujeitos que é às vezes chamada de civilização, e que designa a maior ou menor incorporação a um código de “urbanidade”, justamente oposto ao que é brabo, ao do interior, ao do mato, ao índio “(Duarte 1986: 32). Mesmo nessa classe, distante em tempo e espaço, nota-se uma linha de continuidade histórica (de transformação, vale dizer) das concepções coloniais de sangue diferenciado e inferior dos índios e, é de se supor, dos negros. Uma associação que parece ser de sangue bruto, selvagem, expressando afastamento intrínseco da civilização nos costumes morais que se aproximam daquelas estigmatizadas mais diretamente no grupo social. No caso mineiro, além de um englobamento da pessoa pela família, garantido pelo sangue partilhado, diversos eixos classificatórios hierarquizantes operam para construir uma hierarquia entre famílias e em que a raça configura como uma das dimensões salientes para um gradiente de “civilizada”/”não-civilizada” e “evoluída”/”atrasada”. Além desta semelhança, a pessoa não é inteiramente determinada pelo nome de família, sangue e raça que herdou e deve demonstrar seu valor (moral e comportamental) na luta, na sua trajetória individual. Caberia, portanto, a mesma noção de predisposição, mesmo que a consangüinidade tende a totalizar, enquanto há, também, um modelo mais individualizante entre famílias mais recentes na cidade mas que não anula a operatividade das noções de sangue e tronco (parentela) (Abreu 1981; 1982). 

Os grupos familiares são grupos de sangue que possuem mesmo nome e mesma raça”(Abreu 1981: 148). No caso da camadas médias há uma equivalência entre família e raça, uma espécie de família-raça que constitui uma certa unidade física e, consequentemente, um conjunto de qualidades morais e comportamentais, permitindo a hierarquização que possa se estender a toda cidade[20]. Ou seja, o vetor físico-moral potencialmente engloba a ‘sociedade’ local toda, em uma cidade mais velha e bem estabelecida; esta gradiente começa se desfazer com a entrada de novas famílias na cidade, e se desfez nas camadas trabalhadores em sua maior parte imigrantes na cidade grande. O que permanece, no entanto, é o princípio diferenciador familiar do vetor que atinge uma menor ou maior amplitude hierarquizante englobador. Os casos, por assim dizer, evocam a mudança histórica que o caráter mais coletivo do estamento se desintegrou em diversas possibilidades de totalização social mas, mantendo o princípio, a hierarquização toma uma feição mais individualizante, com, supõe-se, família em escalas menores (mesmo com esforços dedicados dos trabalhadores de manter contato com parentes) e mais individualizadas para os membros componentes. É interessante referir a um aspecto particular que acompanha a maior totalização mineira: a raça como categoria nativa é imprimido pelo homem, um atributo que o sangue transmite uma “disposição de vida”, energia vital, princípio ativo masculino (mas moral também) em relação a uma passividade feminina mais vinculada a moral pelo seu sangue[21]. Por um lado, em tempos contemporâneas, as condições sociais das classes trabalhadores impedem a realização dessa inflexão ‘racial’ patrilinear (e, concomitantemente, não por acaso, a hierarquização das famílias, cf. Duarte). Por outro lado, retrocedendo em tempo para a situação pernambucana estamental, observe-se como essa inflexão combina bem com o fato que, sistematicamente, uma ancestralidade indígena passa por uma avó (ou bisavó; ou mais no caso da genealogia de uma família nobre), uma índia, quase nunca um índio.

   

Sangue de índio

 Reconhecer a presença no corpo de “sangue de índio” pode levar a identificações e representações diversas sobre o passado. Muito posterior ao trabalho genealógico histórico da nobreza, variantes pessoais de mestiçagem ou do ‘mito das três raças’ surgem na atualidade ainda. Percorrendo o itinerário indicial, mudamos novamente de região, passando a considerar alguns exemplos contemporâneos do estado de Rio Grande do Norte. Para começar, vale a pena reproduzir uma carta a um colunista de um diário de Natal, que a publicou na íntegra. Após lamentar o ano ruim e desejar um ano mais próspero, o missivista termina com sua representação de sua origem, como quem que se certificar de seu ‘tronco’ (na linguagem generalizada do parentesco consangüíneo) para enfrentar a vida, o que induziu o colunista a intitular a coluna de “A herança da índia Custódia”:

“Aqui, por fim, esbarro. Fico com o sangue a me correr por dentro, vez por outra eferventado, que me chegou de herança da índia Custódia de Amorim Valcácer, misturado com o sangue dos “marinheiros” vindo do Portugal e mais a outra parte - a terceira, a dos homens e mulheres vendidos como escravos.

Sou maranganha, bicho do mato, mestiço”[22].

 Observa-se como a ancestral mulher indígena é ressaltada por ser mencionado em primeiro lugar e pelo seu nome completo, enquanto que em segundo vêm os portugueses, genericamente caracterizados pela sua relação com o mar pelo que chegaram aqui; em terceiro e último lugar, os negros não são mencionados em sua qualidade específica mas em termos de sua humanidade geral, enfatizando sua condição social de origem. A índia, portanto, assume prioridade pela sua autoctonia, única individualizada e feminina, os portugueses são de fora, mas com um pais de referência e com claras conotações masculinas, e os últimos (“mais a outra parte”), gente em estado puro, homens e mulheres, que entraram como mercadoria subumana. Apesar do respeito da condição humana dos africanos negros, uma clara hierarquia ordena a mistura do seu sangue antes que se declara mestiço. O silêncio fica por conta da ausência dos mecanismos sociais dessa integração, ou seja, a dominação e a violência simbólica e real.

A pessoa em questão deve ser alguém com certas aspirações literárias ou intelectuais ao mesmo tempo que, provavelmente, mora no interior. O intelectual considerado o maior do Rio Grande do Norte, elitista em sua formação, mas que se aproximou muito do “povo” para escrever sua vasta obra, Luís Câmara Cascudo, de certa forma parece combinar certas noções de transmissão muito semelhantes ao enunciado do escritor contemporâneo, ou, talvez, referente a, ou extensão de, um terreno comum que distinguimos anteriormente: “Se os portugueses deram ao brasileiro o sangue supersticioso, tê-lo-iam recebido, em maior percentagem, do romano dominador”; ou a noção de que negros e índios aceitaram a superioridade da fé cristã até sem a imposição inerente ao processo colonizador, “Indígenas e negros não defenderam os santos de seu sangue e dor. Não houve mártires da fé, esculpidos em bronze ou ébano. Mantiveram as defesas mágicas e não os atos programáticos do culto tribal[23]. Uma visão da história em que se configura a passagem de qualidades por via substantiva, e a conformação do povo brasileiro mediante uma aculturação desejada pelas próprias etnias dominadas, vitimadas no processo da conquista. Os brancos portugueses se representa particularmente pela superioridade religiosa e, consequentemente, o reconhecimento implicou na não defesa de sua religião pelos ‘inferiores’ (transmitindo somente a dimensão inferior da magia, sem dúvida uma contribuição que cabe no mesmo esquema evolucionista subjacente). O ‘mito das três raças’ inclui a voluntária adesão de suas vítimas diante da superioridade da religião cristã que é que realmente funda a nova sociedade. Versão que se coaduna muito bem com a variante da identidade nacional resultante da miscigenação, da “escravidão benigna” para a “democracia racial”, que se consolidou no Estado Novo como interpretação oficial e oficialista do Brasil (Schwarcz 1998: 178, 188).

Tal importância do sobrenatural e sua significação para a explicação do mundo faz, de fato, parte da cosmologia sertaneja tal como reconstituído para o interior do mesmo estado de Rio Grande do Norte. Uma economia simbólica que privilegia a conquista do território selvagem natural pela ocupação do espaço por santuários católicos que exemplificam a domesticação e socialização pela nova sociedade, impondo-se sobre a natureza e seus habitantes indomados. As narrativas históricas locais deste conquista civilizadora excluem praticamente toda menção aos índios ou negros, sendo que as guerras de extermínio contra os índios e o seu desaparecimento geralmente não figuram nessa histórias fundantes (Cavignac 1995a: 92). Em consonância com o silêncio da conquista, que é reputada de ter sido um dos mais violentos no Brasil, somente traços mais generalizadas ou individualizadas perduraram da presença indígena. Talvez, aliás, há uma relação entre esta apagamento e repressão da memória social e o fato de que o Estado é conhecido por não ter mais nenhum povo indígena no seu território, sendo acompanhado nisso, no Brasil todo, somente por Piauí. Ou seja, o processo de ‘emergência étnica’ verificada em todos os outros estados nordestinos, e que se intensificou nos últimos vinte anos, não se realizou aqui, apesar de existirem grupos isolados de “caboclos”, “(...) quer dizer, mestiços de índios que são considerados como selvagens” (Cavignac 1995b: 86). Há pelo menos três casos de parentelas, em regiões afastadas, com endogamia e posse de terras, reputadas descendentes de índios (duas de “tapuia”), que parecem fazer admitir a possibilidade de uma identidade de “caboclo”, descendente de índio, diferenciado da sociedade envolvente (Monteiro 1998; i.p.)[24].

Nesse sertão correm etno-histórias, histórias sobre a história da formação social da sociedade local, que surpreendem por até eliminar a autoctonia dos índios da região: “A nossa descendência é toda de Portugal, mas nós temos a descendência do índio também. Pedro Alvares Cabral trouxe os índios de lá para cá” (cit. em Cavignac 1995b: 87)[25]. O lugar destes índios é na natureza mais selvagem, que, também, se associa ao sobrenatural, conectando os índios a capacidades privilegiadas para ligar-se com o plano do sobrenatural. Conexão, diga-se de passagem, que parece generalizada no sertão nordestino todo e, como vimos, até traçavel entre trabalhadores urbanos. A selvagaria se atesta pelas histórias de antropofagia: assando o branco em um girau para comê-lo com mel, objetivo repugnante e bruto e o procedimento sendo uma modalidade bem natural de preparação, o mel é um produto alimentar também derivado de ação natural. Evocando as idéias de Lévi-Strauss, assar consiste de uma ação menos cultural do que cozinhar (e trata o branco como caça), o mel é produzido por animais sociais, talvez a sociedade das abelhas seja semelhante ao estado social dos próprios índios. A única brecha nesse estado inferior é uma índia que se compadece com a sorte do branco e o liberta para fugir em conjunto. Em uma ‘história de Trancoso’, eles não conseguem o intuito e acabam mortos, conotando a força deste estado de inferioridade, mas de força bruta, desses índios. Em uma história contado como acontecido em Pará, como verdadeira, escaparam e constituíram família. Mesmo assim, o narrador frisa que não mataram os índios no sertão, como se faz hoje na Amazônia (Cavignac 1995b).

Uma mulher índia pode ser atraída pela civilização, como se fosse um elemento mais subordinado e, por isso, mais maleável à dominação civilizadora do homem. Do destino dos homens, em termos gerais, não se fala mais, a violência, no sentido de ação sobre um coletivo, mais uma vez, some. O mecanismo de incorporação, literalmente, mais mencionado é a tomada de uma índia na natureza, o que ocorria com a expressão quase ritual de “pegada à casca de cavalo” (ib. : 87). O que, em outras paragens do sertão, equivale a “pegada à dente de cachorro”. Note-se que a segunda afirmação enfatiza um aspecto de caça, uma mulher semelhante a um animal selvagem, a ser capturada no mesmo modo, enquanto a primeira frisa a superioridade de locomoção dada pelo conhecimento de posse de um animal domesticado inicialmente desconhecido pelos índios. Dessa maneira, a mulher “braba” era capturada “no mato brabo” e amansada dentro de uma casa, para se casar com seu captor depois. O roubo se legitima pela ação civilizatória e, até surpreendente mas, talvez, explicável pela mencionada primazia masculina na descendência, assumido em um casamento. Há, aqui, um conjunto de idéias no mínimo muito próximas do que as Duarte distinguiu para seu estudo citadino, qual seja, o homem como ativo, voltado para o exterior, dominador do espaço comunitária, eventualmente violento na defesa dele, de sua honra e dos seus, e englobando a mulher que é passiva, ligada à casa e a moral. A mulher se associa, por isso, à natureza, que também deve ser dominada, conquistada e domesticada, cujo marco simbólico inicial e primordial, como já dito, constitui uma construção religiosa no território selvagem. Por analogia do ‘processo civilizatório’ da natureza, talvez, o desfecho da conquista violenta da índia tenha de ser a sacramentação pelo casamento. Ancestral legítima mas individual, um processo de conquista que implica em domesticação e humanização de uma natureza com conotações femininas; uma operação do trabalho masculina que cria pastos, igrejas e famílias esculpidos destas elementos naturais feminizadas e que diminui ou exime da responsabilidade de extermínio das populações de humanos inferiores anteriores habitantes deste espaço. Evoca, curiosamente e por outra via, a expressão originalmente empregada para os povos que viriam a ser “índios”, os naturais da terra de Cabral.

A incorporação feminina pelos corpos das índias se defronta com dois resultados decorrentes deste processo. Por um lado, nem todos os índios foram efetivamente incorporados desta forma e a etno-história tem de lidar com grupos de descendentes de índios. Um narrador depois de contar sobre a bisavó indígena de seu avô, e admitindo a presença de índios em uma natureza abundante em meios para sua sobrevivência, acaba, já que não os eliminava pela violência aberta, resumindo o processo de aprendizagem de um grupo indígena. Depois de caracterizar a abundância dada pela natureza e que não se vestiam com roupas, um tanto quanto contraditoriamente com a incorporação descrita, reconhece uma continuidade coletiva:

“Adespois que se amansou muito, sabiam ler. Na eras de sessenta do outro século, um índio de quinze anos tinha medo de andar na rua disse:

- Por que vocês não vão pra rua?

- Que nós somos de outra nação de gente, nós temo medo de tar aqui no meio da rua...

 Agora só tem a ascendência, já tá tudo batizado, já morreram os mais velhos...

 Domesticados pelos civilizados, ao ponto que aprenderam a ler, a gente resultante aparece como esforço dos seus amansadores, da ação civilizatória sobre estes selvagens, inicialmente sem roupa e vivendo em a, e da, natureza. A distinção étnica coletiva no século passado não desapareceu, no entanto, e o centro da ‘civilização’ continua inspirando medo para os que vêm da natureza braba. Nenhuma noção da violência simbólica inerente à aculturação forçada perpassa a narrativa e os índios parecem passivos, domesticáveis e sem resistência. O ponto final deste processo se demarca bem pelo batizado, a incorporação na religião dominante (um projeto já presente na carta de Caminha), os mais velhos que eram os mais selvagens já morreram e sobra a ascendência física[26]. Com efeito, a descrição do estado final implica em um grupo de gente que mantém vinculo de transmissão de parentesco com os “índios”. Isso se parece com a situação de muitos grupos indígenas antes de sua ‘emergência’: considerados descendentes de índios, civilizados e sem maior concepção de possuírem patrimônio cultural próprio, mas, mesmo assim, distintos dos descendentes dos não-índios. Essa narrativa não explicita qual é a relevância dessa ascendência em uma distinção socialmente operante que diferencia os descendentes indígenas dos ‘civilizados’, embora a menção ao índio do passado induz pensar na continuidade da distinção de uma coletividade. O fluxo das trocas culturais aparece como naturalizada e unidirecional e o único vetor de continuidade de ‘indianidade’ restringe-se a parentesco. Não obstante, esse vetor somente pode ser o sangue. Na cultura sertaneja encontramos o mesmo complexo da transmissão substantiva. Desse modo, um pistoleiro que se afirma “vingador” constata como fato que os membros de sua família já vêm nascendo com determinado atributo, a valentia, usado-o, mas somente em um caso deste, para vingar o derrame do sangue -- pelo amor ao seu sangue -- pelo sangue dos agressores (Barreira 1998: 94; e, em um cordel sobre pistoleiro, o sangue do pai malvado, segundo este, fez o filho nascer para ser cruel; ib.: 135). Conhece-se as relações entre honra, valentia (homem), casa, família (mulher) e a vingança do sangue na história do sertão.

Outra narrativa fornece o elo não mencionado que garante a “ascendência”. No caso anterior, a ascendência pessoal do narrador se localiza bem distante geracionalmente. Em um outro depoimento, uma mulher explicou que a índia roubada, sua tataravó (apesar da distância genealógica), lhe legou certas capacidades pessoais significativas. Ainda na variante da origem européia dos índios, o tataravô era marinheiro e viajou para Itália, agradou-se da índia, a roubou e trouxe para cá. Mas a índia roubada na Itália por um marinheiro -- talvez a menção ao marinheiros na carta publicada no jornal tenha mais ressonâncias do que parece a primeira vista -- exibe todas as qualidades típicas, inclusive um buraco na língua e certas conhecimentos não usuais. “E eu venho dessa descendência, não é? E puxei por certo, puxei alguma herança dela, não é? A ciência ...(Cavignac 1995b: 87). Ora, a rezadeira explica o seu dom de cura pela sua herança. A sua ancestral era sabida e lhe passou a ciência para lidar com curas sobrenaturais. O mesmo idioma se utiliza nos grupos indígenas que praticam um ritual concebido como tipicamente indígena, o Toré, em que a ciência do índio presente em os sabidos ou os entendidos viabiliza o conhecimento diferenciado e diacrítico necessário para sua execução (cf. Reesink 1995). Mais, a narrativa sertaneja confirma que certos dons sejam tidos como inatos, exatamente como o dom de ser pajé parecia hereditário no caso do atual pajé Tuxá. Neste caso, em contrapartida, este dom para o cargo o afilie indubitavelmente ao seu avô, um grande líder indígena, ao invés da família negra de sua linha paterna. Uma predisposição hereditária revelaria a correção de sua opção étnica de ser índio, tanto em termos sociais, quanto em termos subjetivos pessoais (Reesink 1999). Nos dois casos o mesmo complexo de sangue transmitindo dons sobrenaturais, novamente de acordo com a associação forte entre sangue indígena e predisposições para um ligação privilegiado com o sobrenatural.  

  

Sangue de índio/sangue de negro

No sertão de Rio Grande do Norte os grupos de índios que escaparam do extermínio se tornaram invisíveis enquanto que as mulheres incorporados transmitiram certas qualidades pessoais, entretanto, em contrapartida, ao que parece, não uma identidade diferenciada de índio ou caboclo. Uma forte noção de mestiçagem perpassa os relatos regionais, tanto que a carta no jornal e a ‘confusão histórica’ da etno-história local sublinham este processo, mistura física e cultural. Os negros entram pouco nesses mitos de origem, como, de fato, quantitativamente tiveram uma expressão menos impactante na história do Estado. Talvez isso seja a causa de que podem, bem “a contrário” dos índios, ser vistos como nascidos no sertão e de não terem sidos escravos (Cavignac 1995b: 90). No caso, a mestiçagem ‘real’ com índios tenha sido, possivelmente, maior do que com negros, o que os torna mais propensos para funcionar como polo simbólico em oposição, ou contradição, com a sociedade “civilizadora”. Em outros segmentos da sociedade nacional, com agregação bem maior dos negros, uma pesquisa já mencionada surpreendeu, além do imaginário mais elaborado em consonância total ou parcial com o ‘mito da três raças’, uma ascendência indígena direta. Apesar de urbana, o bairro fluminense é de origem pesqueira e ainda habitado por muitos pescadores. Um núcleo de poucas famílias extensas retraçam a sua descendência a uma “população indígena autóctone”, a qual se adicionaram o “sangue de escravos” e o “sangue europeu de contrabandistas e negreiros” (Duarte s.d.2: 179). Aparentemente, o núcleo central identificadora se constitui da filiação indígena, concebida positivamente, mas que inclui a agregação de negro e branco, para instituir, mais amplamente, uma identidade positiva do bairro. Assim, nessa mistura, a noção do bairro estar situado em cima de um cemitério de escravos pode ser apropriada como uma metáfora significativa para expressar aspectos importantes de sua situação social atual (Duarte s.d.1).

Se perto de Niterói se pode surpreender uma descendência indígena, mesmo na cidade mais negra do Brasil existem os descendentes indígenas, na caso, também, com um histórico de pescador. Trata-se de pessoas moradores de Itapuã em que um descendente conta que seu avô narrava a origem do lugar como “terra de índio” e pescador. Posteriormente, em função da pesca de baleia do local, vieram os “africanos” e, aparentemente mais tarde ainda, portugueses e espanhóis. O narrador se orgulha de seu avô, o “melhor arpoador de baleia da região” e que os dois pais desse avô eram “caboclos legítimos”, o que o fez da mesma “raça de caboclo, a raça mesmo legítima” (Gandon 1997: 145). Assim, ganhou o apelido de Adriano Caboclo. “Caboclo” aqui claramente na acepção do mesmo uso que circulava entre os descendentes de índios, antes de se tornarem nos atuais povos indígenas nordestinos: a raça “pura” legitima o caboclo como verdadeiro ontologicamente, real sucessor dos ancestrais indígenas, mesmo quando culturalmente não mais “puro”. “Caboclo” sempre carrega certa ambivalência de ser descendente mas não ser mais equivalente culturalmente às gerações antigas. Daí que um velho caboclo, morando mais perto do local da antiga Casa da Torre -- lugar de mais histórias sobre índios do que Itapuã (ib.: 139) --, ao ser instigado sobre o significado de “caboclo”, nós terminou por explicitar: “caboclo, caboclo índio” (numa visita nossa ao litoral norte da Bahia no início dos anos 80). Em Itapuã, apesar de muitos dos mais velhos (no caso, novamente, as mais velhas) terem sido “pegado no mato a dente de cachorro”, os descendentes demonstram orgulho de sua ascendência (ib.: 148-149). Houve, pelos depoimentos, significativa mistura com negros, mas muitas pessoas continuam com apelidos formados por alguma variante de “caboclo”. As aparências físicas correspondentes ainda respontam entre os habitantes tradicionais do local. Antigamente, umas moças bem tipificadas com a aparência indígena serviam para desfilar como a “cabocla”, em uma variante local da festa de Dois de Julho em Itapuã (ib.: 160). A pesquisa que fornece esses dados é de orientação histórica, e não elucida em que medida estes descendentes ainda se consideram com “caboclo índio” ou se remetem a ancestralidade inteiramente ao passado[27]. Em outras palavras, orgulho ancestral étnico em que “caboclo” permanece uma categoria étnica gestora de identidade atual, ou uma descendência incorporado em que a mistura transforma o “caboclo” em categoria de conteúdo fenotípico, vale dizer, racial e não étnica.

Para Itapuã se menciona uma presença muito marcante de “caboclos” nos candomblés locais, aparentemente maior de que nas áreas de menor mistura indígena. Também, o mito tupi de Sumé, da pegada do seu pé na pedra no mar, de modo transformado, ainda é contado por descendentes de índios. Uma outra pessoa se refere a uma visão, em um sonho, de um “caboclo legítimo”, “trajado de índio” que ele encontrou na praia na frente da pedra. Vale observar que o chama de encanto, de acordo com o idioma religioso dos índios (como no Toré), e não pela classificação dos candomblés (ib.: 152-153). Estes traços se reconfiguram quando no local de um outro bairro na cidade, de alguma forma concebido e vivido como tendo certa unidade, a presença de ascendência indígena se manifesta somente como uma ancestralidade genealógica mais remota, e não vinculado ao tempo/espaço deste bairro. Nesta outra pesquisa, em um bairro pobre de Salvador de muito menor profundidade histórica, os traços genealógicas e imaginários indígenas se encaixam, assim, mediante um modo menos direto. Inicialmente, de acordo com a predisposição para o acesso ao sobrenatural, uma ascendência genealógica conhecida com algum ancestral indígena, pode se transformar em uma ligação pessoal, com uma entidade sobrenatural chamada “caboclo”. A concepção de pessoa, como analisado por McCallum, manifesta-se com a noção generalizada de que existe sempre uma conexão entre uma pessoa e uma entidade espiritual, esta vela pela pessoa e lhe monitora e direciona a sua trajetória pela vida. Com efeito, embora não possa ser afirmada com toda certeza, uma descendência que inclui uma predisposição para estabelecer relação privilegiada com um caboclo espiritual: a relação de sangue permite a realização não de uma identidade de si mesmo, como “caboclo” ou “índio”, mas de ter, como sua contrapartida sobrenatural de proteção personalizada, um ancestral já morto e transformado em uma entidade poderosa (McCallum s.d.).

Curiosamente, uma operação análoga em um plano urbano e pessoal de ‘religação’ sobrenatural com seus próprios ancestrais que o Toré, entre os povos indígenas no sertão, realiza conectando todo o grupo a todos seus ancestrais, transformados em “encantados” (Reesink 1995). Dessa maneira, além da recorrência apontada, se verifica um mecanismo de conexão simbólico análogo em segmentos sociais bastante diversos[28]. O bairro urbano recente demonstra outra variante de uma valorização positiva dos índios atuais. Ou seja, a interpretação de fatos contemporâneas muitas vezes se dá em inflexão diversa da mídia. Se, por um lado, a população de baixa renda compartilha da ideologia das três raças, que se conformou pelas discussões intelectuais do fim do século passado e assumido pelo Estado nos anos trinta, tanto seu nacionalismo, quanto sua concepção de indianidade, inclui um misto de conformismo e resistência aos esquemas interpretativos dominantes. A luta indígena atual, nesse sentido, se associa a imagens de capacidades masculinas dos índios em defesa de seus direitos, mesmo que mantida a correlação, ou, talvez, em função da mesma, com a proximidade com a natureza. Desse modo, o “indianismo popular”, tanto pessoal como de uma constelação de representações, pode inspirar uma certa resistência popular das classes subalternas, mesmo quando, inversamente, parecem aceitar certas ‘verdades históricas’ veiculadas pela escola e pela visão oficial do Dois de Julho e seu casal de “caboclos” (McCallum s.d.).

Uma inflexão importante exprime uma visão dessa ambivalência. A população sendo composto de gente de toda gama racial, mas maioritariamente “moreno”, a divisão básica de mundo consiste em escuro/branco, humilde/rico, fraco/forte (ou seja, pouco poder/poderoso). Essa divisão dualista do mundo social corresponde a diferenças evidentemente muito palpáveis de poder socioeconômico em uma sociedade muito hierarquizada e em que o capital sociocultural desse segmento -- que ainda se denomina de “classe média” porque “pobre” ainda são os que são totalmente miseráveis -- raramente alcança um nível que permite uma ascensão social. Aliás, vale observar, que uma das poucas vias de ascensão concebidas depende de uma relação personalizada e clientelística com este outro social, branco e rico, evocando uma analogia com a concepção de que a força da entidade sobrenatural protetora é fundamental para o bem estar da pessoa protegida. Ao mesmo tempo, o exemplo do índio, “raça” não branca, que ‘vai a luta’, exemplifica um modelo corporal para a comunidade que se vê basicamente moreno, contrariando a discriminação racial e social de que sofre. Mais, familiarizado com a constelação imaginária da “baianidade”, que se apropria das qualidade físicas concebidas como diacriticamente do negro (música, dança, capoeira), não por acaso qualidades substancializadas e apoiados pelas ações do Estado da Bahia, este não encontra eco para um discurso de uma negritude dos movimentos negros. Na verdade, eles desapropriam o mito das três raças nacional em uma variante em que a ‘mistura’ não leva ao famoso embranquecimento, mas ao ‘escurecimento’, apreciando a baianidade mediante esta via. Os verdadeiros brasileiros são aqueles misturados, não brancos, ou seja, os ‘morenos’ ou os ‘escuros’: nem preto nem branco, nem europeu nem africano. Mas, consequentemente, a classe média superior e a elite branca não são verdadeiramente brasileira, a classe da gente humilde, de sua ‘classe média’, detém esse privilégio. A brasilidade é reservada aos resultados da mestiçagem de negros e índios, misturados com brancos, mas predominando sobre o influxo branco (McCallum 1996).

 

Algumas observações finais.

 Iniciamos o itinerário pela Bahia e terminamos o mesmo novamente na área metropolitana da cidade de Todos os Santos. A conquista da Terra de Vera Cruz realmente ganhou o seu impulso definitivo com a fundação desta cidade em 1549 com o governo central e sua subordinação militar das aldeias circundantes à cidade e as localizadas no Recôncavo. A conquista desta área central significou o início da política de incorporação sociocultural das etnias subjugadas e gerou uma dinâmica processual que incluiu tendências de inclusão e exclusão de identidades sociais substancializadas. Ou seja, por um lado, a sociedade colonial gestou mistura -- no caso dos índios por processos que se estendiam até o estímulo estatal após Pombal --, por outro lado, em parte pela ação de agências controladoras metropolitanas como a Inquisição, a permanência da “pureza” de segmentos estamentais mais globais. Duas vias de resolução do problema classificatório criado pela emergência de gente inicialmente não classificável parecem ter operadas: a criação de novos termos para os mestiçados e a manutenção do núcleo simbólico definidor de superioridade; mistura e gradação com um centro hierárquico. Desse modo, com a dissolução do caráter mais estamental das divisões básicas que tem seu símbolo-chave no sangue, e na sua “pureza”, houve, depreende-se dos indícios reunidos, uma passagem para um nível menos englobante da ‘parentela’ e da família, sendo que, como um espécie de término provisório deste processo de longa duração, somente nesse século, e em alguns segmentos sociais mais ‘modernizados’, se percebe um valor menos abrangente e mais individualizado na construção da pessoa, mas em que, mesmo assim, sua origem substancializada conta na avaliação global da pessoa.

Os indícios reunidos acima abarcam somente uma parte do conjunto de pistas possíveis para elaborar e desdobrar a investigação do sangue e das identidades substancializadas na história e contemporaneidade brasileira. As “estruturas de alteridade” brasileiras encontram aqui, na identidade essencializada baseada na transmissão de características sociomorais pela substância sangue, a possibilidade de um quadro de uma perspectiva teórica que se expande alem das semelhanças e dissimilaridades entre as posições liminais ocupados por índios e negros nestas estruturas (a proposta de Wade (1997: 35-39) para superar a divisão, até recentemente, entre os estudos indígenas, “étnicas”, e os dos negros, “relações raciais”). Reduzidos a um nível de parentesco mais direto e não mais estamental, identidades pessoais permanecem ligadas a coletividades que são, em primeira instância, conjuntos de parentes, famílias nucleares e mais extensivas. Os indícios etnográficas exemplificam os casos em que continua presente o calculo substancialista familiar e pessoal, com diferentes composições dos ingredientes índios, negros e, portanto, também, brancos, com suas valorizações e concepções de mestiçagem.

Nessa estrutura de alteridade o substrato da noção da identidade substancializado se encontra, ao que parece, em todos os segmentos sociais, para si e os outros nas relações cotidianas e no nível da brasilidade geral. O mito das três raças se funda na mesma noção de mistura de um indivíduo índio, negro e branco e a intervenção do Estado na promoção de sua concepção de brasilidade se assenta nessa noção ‘pessoalizada’, não coletiva e étnica, e mestiçada, portanto, substancializada, mesmo quando afirma defender o anti-racismo (Reesink: no prelo b). A circulação do fundamento substancializada da identidade/alteridades parece, dessa maneira, ser total, entre as diversas categorias sociais operantes e mesmo nas instâncias sociais institucionalizadas. A atual situação, como modelo mais hegemônico, vem da reavaliação da mestiçagem, vindo do século passado e passando pela hierarquização gradual de Nina Rodrigues também pôs o problema para a Bahia e o Brasil, se realiza nos anos trinta e com Gilberto Freyre como autoridade acadêmico principal. Este, na sua visita a Bahia em 1943, expressou sua admiração pelo velho estado, o “mais maternal” do Brasil, em termos que ilustram maravilhosamente bem a construção a caminho. Dada a segregação sinistra das raças do fascismo da época ele contrapõe um respeito a diferença que concilie e harmonize os extremos e antagonismos na mestiçagem humana (racial e cultural):

“A nós, no Brasil, há largo tempo é esta a mistica que nos anima a vir equilibrando, conciliando, fundindo tradições antagonicas, valores diferentes, raças diversas em novas combinações de sangue, de cultura, de tipos psicológicos. Combinações que têm precisamente nesta matriarcal Bahia não só de todos os santos como de todos os homens, de todas as raças, de todos os sangues [...] sua mais vasta estação experimental nos trópicos” (Freyre 1944: 31; ênfase minha).

Ou seja, harmonia na antagonismo, combinações numa Bahia que exibe, numa seqüência hierárquica reveladora, todos os seres sobrenaturais, os seres humanos, os segmentos fisicamente semelhantes da humanidade, o vetor de transmissão sociomoral (seguem plantas, temperos e aspirações). A humanidade se divide em raças com o vetor de sangue substancial subjacente. Este é o axioma generalizada para a construção da pessoa que, apesar de toda mistura, vale para todos. Nessa estrutura básica de alteridade os índios e os negros ocupam posições específicas, sangues subordinados, e não harmônicos, como quer o modelo. Mas o cerne continua; não é por acaso que quando Freyre exalta a miscigenação com o negro até nas famílias mais notáveis de Pernambuco, em si mesmo revelador de uma hierarquia de parentelas, mas aponta a exceção dos Wanderley, que se mantiveram relativamente endogâmicos e puros, ele acrescenta que ele mesmo pertence a esta família (Penna 1981: 48-49). Freyre não deixa de ser fiel à letra do hino estadual pernambucano: “Coração do Brasil, em teu seio corre o sangue de heróis, rubro veio” (Mello 1986: epígrafe) Sobre este fundamento do dualismo central do centro branco irradiam diversas dimensões valorativas, assemelhando índios, negros e morenos (mestiços) naquele que não são e diferenciando-os em outros predicados, permitindo distingui-los e gradua-los hierarquicamente. Dualismo concêntrico em que alguns destes predicados parecem universais: os índios se relacionam com a natureza selvagem e o sobrenatural dos seus ancestrais; os negros se vinculam a certas capacidades predicados no uso do próprio corpo (lazer e trabalho corporal); em termos gerais, e visto pela longa duração, com uma tendência dos índios serem mais favoravelmente capacitados do que os negros[29]. A distinção, portanto, é produto de operações diferenciadores localizados nas heranças corporais. Sangues diferentes, alteridades corporais distintos, gente diferente. Isso permite gradações ao longo de eixos variados, gerando cálculos contextuais e situacionais que complexificam muito além do dualismo original desdobrado em poucas oposições hierárquicas coloniais[30]. Se o dualismo concêntrico atualmente é fracionada, nem por isso perde o seu caráter hierarquizante (mas multidimensional até no aspecto ‘puramente’ físico, calculando cor, cabelo, feições do rosto). Desse modo, além deste dualismo, poder-se-ía hipotizar um dualismo diamétrico subjacente -- em particular para o caso mais cotidiano na sociabilidade brasileira contemporânea --, em que haja duas identidades polares: “branco” (polo superior) versus “negro” (polo inferior), nas suas formas mais exemplarmente icônicas. Não obstante do segundo ser subjacente ao primeiro, a etnografias discutidas permitem uma hipótese subsequente: o dualismo concêntrico parece se vincular mais às famílias e as pessoas na esfera da sociabilidade mais comunitária e de contato pessoal (por exemplo, as comunidades de bairro); o dualismo diamétrico se relaciona mais a esfera de sociabilidade impessoal em que se apreende e avalia a pessoa mais em termos imediatistas de classe, gênero e cor aparente, ou seja, não mediada pelo conhecimento da pessoa em um sentido mais compreensivo e global[31].

Substrato de essencialização que funda identidades étnicas ou raciais, sem que, no entanto, essa semelhança necessariamente faz estes conceitos se sobreporem. A diferença analítica deve ser mantida, mas o conhecimento da raça na construção étnica dos índios (mais facilmente reconhecido socialmente como étnico) e da origem étnica da raça negra e mestiça (predominantemente não reconhecido como étnico, fracionado em termos de “raça”), poderá se apoiar no exame deste processo básico de substancialização e levar a um refinamento maior das semelhanças e dessemelhanças nas diferentes posições na complexa estrutura de alteridades brasileira.

  

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[1] Este artigo é uma seqüência e conseqüência ampliada do trabalho apresentado ao V Congresso Afrobrasileiro, agosto de 1997, em Salvador, que já saiu publicado: Reesink 1999.

[2] Mestrado pela Universidade de Leiden, doutorado em antropologia social pelo Museu Nacional UFRJ. Professor do Departamento de Antropologia e PPCS da Universidade Federal da Bahia. Trabalha com povos, indígenas no Nordeste do Brasil e da Amazônia sobre os quais publicou vários artigos. Atualmente trabalha sobre Canudos.

[3] Conhecido desde o início da antropologia, o que pode ser exemplificado pela noção dos aborígenes australianos que inspirou a teoria de Durkheim sobre o incesto (cf. Lévi-Strauss 1969: 19-20).

[4] O que permite apropriações contemporâneas, como o lema recente da Romaria de Canudos, da igreja católica, de “sangue derramada, terra fecundada”, expressão ainda passível de outras interpretações pertinentes sobre a terra de Canudos.

[5] Fato de aplicação universal, o que, obviamente, faz desta constatação empírica potencialmente um fator de causalidade forte para universalizar a relação simbólica em muitas culturas. No caso da bíblia em português da Sociedade Bíblica do Brasil, em versículo 14 chega a oferecer, em nota, a alternativa “vida” para a expressão “alma” usada.

[6] Parafraseando o historiador Ginzburg, um ‘itinerário indicial’ que perpassa os tempos/espaços mais bem delimitados das investigações citadas.

[7] Ou, então, “negros brasil”, “brasil”, “gentio” (Vainfas 1997: 76). Observa-se que “brasil” ainda se referia aos futuros “índios”, não havia, de fato, ainda “brasileiros”. Este uso lembro o termo “brasiliano” que os holandês usavam para índios Tupi algumas décadas depois.

[8] O que enfatizava sua condição de escravo como preponderante. Ou seja, o cálculo do valor do escravo não atribuía importância a origem étnica. Em Portugal “negro” já se tornara quase equivalente a escravo e a expressão “negro” diferenciada apenas por “da terra” ou “da Guiné” indica forte associação entre os dois termos (Oliveira 1997: 37;40; 44).

[9] Câmara Cascudo (s.d.: 543) aceita a explicação de Teodoro Sampaio que o termo derivaria da língua Tupi, simplesmente “o misturado”. Dado a inflexão patrilinear dos Tupi, essa explicação convence menos, faria sentido alocar o misturado, descendente de uma índia e não de um índio, no grupo do pai branco. 

[10] E, nesse sentido, durante o tempo anterior, prevalecia um controle social bem menor, gerando uma série de práticas muito perturbadores para a rigidez do visitador e bem mais variado, é de se esperar, do que acostumado em Portugal (cf. Vainfas 1997: 28).

[11] Sem trocadilho, lembrando a bíblia, sangue é vida, porque, por exemplo, uma cristã-nova foi mandada para Lisboa, e só não foi para a fogueira porque morreu antes no cárcere, por muito menos do que os atos heréticos, que incluía até assassinato de escrava indígena, do senhor de foro nobre (Vainfas 1997: 281-2). De certa forma, as analogias atuais destas categorias são os pobres (em especial os negros), os índios e a elite brasileira.

[12] Toda essa parte se baseia nos escritos de Evandro Cabral de Mello que, na verdade, trata dessas questões ao longo dos dois livros citados.

[13] Por uma especulação fundamentado na concepção de sangue arruinado pelo sífilis nos anos oitenta (Duarte 1986), é curioso que uma noção como “sangue infecta” prefiguria a reação forte, de outro ponto de vista desmedida, contra os portadores de doenças sanguinárias, particularmente a discriminação contra portadores de HIV e Aids. Afinal, Câmara Cascudo registra “sangue bom” com não arruinado por doenças e anemia se caracteriza como sangue aguado (s.d.: 800).

  [14] O “Terço dos Henriques” rejeitava o ingresso de mulatos e as milícias oficialmente mestiças surgem bem mais tarde, como se fosse caso de manter as distinções fixas e rígidas, conforme o modelo da tetrarquia (Mello 1986: 221-222).

  [15] Ajudado, aqui, pelo fato que o fundador de Pernambuco teve como concubina uma filha de um cacique, outro “principal”, que chegou a ser chamada de “princesa”! Ou seja, só com outra “nobreza” e somente nos tempos fundadores (e de preferência do próprio fundador); naturalmente, casamento com índia no tempo dessa história mitificada seria impensável. Do lado baiano, outro fundador de dinastia, conquistador de extensas terras para o interior, Garcia d’Ávila da Casa da Torre, sacramentou sua união com uma índia. Mas, ainda na visão de Afrânio Peixoto em 1945, seu “êxito” o enobreceu e a percentagem de sangue branco nobre aumentou no seu sucessor (Gandon 1997: 139;143).

  [16] Complexificação aqui é, bem entendido, o processo de multiplicação de categorias sociais que podem operar como atributos de alguma forma de coletividade, sem que implica em qualquer valorização menor de uma sociedade mais ‘simples’ no início da conquista em comparação de uma sociedade mais ‘complexa’ que se transforma no processo histórico brasileiro.

[17] Vale observar que na primeira parte deste século havia correntes de pensamento que disputava uma primazia científica que partiam de um biodetermismo (higienismo), que evoca toda nossa problemática de transmissão de atributos sociomorais, para explicar todo tipo de degeneração social de certas categorias de desviantes (Carrara 1992). Em um caso discutido, um médico e literato atribui um excesso de sexualidade feminina ao fato que sua personagem trouxe a obsessão sexual “no sangue”, ou seja, herdada e fora de seu controle sobre si mesma (ib.: 23). Como no caso análogo do racismo científico (que lhe é próximo), há uma circulação significativa entre o discurso nativo (ou mais ‘popular’) e a teoria científica que ‘cientifica’ valores e determinismos culturais.

  [18] Assim, um obstáculo para a adoção de crianças consiste em “não ser do sangue, não é nosso”. Além disso, é notório que a preferência predominante é para adotar uma criança branca de olhos azuis.

  [19] Oliveira (1997) afirma que antes do comércio escravista tomar fôlego, os portugueses adquiriam conhecimento diversifico sobre os povos africanos e suas particularidades culturais. A empresa escravista, no entanto, empobrecia as classificações utilizadas. Assim, no início, a mencionada categoria “negro de Guiné” assemelhava todos a uma só procedência, nivelando as diferenças étnicas existentes. Com efeito, os “nomes da nação” exigem todo um trabalho de exegese para estabelecer as conexões com as etnias africanas, incluindo aí termos como “nagô” e “jeje”. Esse é o objetivo do artigo de Oliveira.

[20] Na escala mais particularista, a “raça” pode ser “o filho”, a descendência direta, como na expressão no sertão baiano de um índio sertanejo ao mostrar a foto os filhos do seu filho: “olha aqui a raça dele”.

[21] Basta lembrar, para evidenciar, em concordância com a nota anterior, que essa noção deva ter mais lastro, que os locutores e comentaristas de futebol na televisão freqüentemente usam a concepção para um bom time: o jogador e o time tem que “ter raça”.

[22] Publicado na coluna “WM” do dia 20/12/1998 no jornal Tribuna do Norte de Natal, Rio Grande do Norte (Caderno 1o, p.2).

[23] Citações tiradas de um artigo sobre Câmara Cascudo por Gilberto Vasconcellos, em Folha de São Paulo de 27 de dezembro de 1998, caderno 5, p.9, intitulado “o brasileiro que construiu a ciência do povo”. Este artigo o elogia como um intelectual regional fora da academia que soube ouvir o “povo” e dar valor ao “folclore” como ciência do povo. Sem tirar este mérito do Cascudo, vale notar que o sociólogo reproduz os escritos de um modo como se tivesse de acordo com as asserções sobre a formação do povo brasileiro.

[24] Excluindo a área da pesquisa de Cavignac. O mesmo pesquisador, Olavo Monteiro, informou que até trinta ou quarenta anos atrás ainda se celebrava um ritual indígena secreto nas matas no lado norte do rio Potengi, Natal, sítio de uma antiga aldeia Potiguara, índios agraciados com terra pelo serviço prestado na guerra com os holandeses. Para o Piauí, diga-se de passagem, há um indício que lá também existe uma população de origem indígena que não procurou reconhecimento. Voltarei ao assunto; basta mencionar aqui o acervo acumulado de pesquisas que se dedicaram a debruçar-se sobre este processo (cf. Reesink 1995).

[25] Que é o inverso na etno-história Kiriri (Mirandela, Bahia), quando o descobridor Cabral pertence aos “caboclos” e sua “rainha Isabel”, que o mandou na expedição, também é “cabocla”! Nesse caso, de modo espelhado, nos dois casos se estabelece a primazia histórica legitimador dos dois grupos em oposição ( cf. Reesink no prelo).

[26] Castro de Faria já analisou a carta, em 1970, de modo a apontar que a conquista dos naturais da terra passou pela sua primeira identificação de “pagão”, delineando um futuro em que a conquista da alma se aliou à conquista dos corpos indígenas e do seu território (apud Da Matta 1976: 48). O batizado é tão importante que em um cordel o pistoleiro, aquele que foi marcado pelo pai para seguir este destino, diz que, porque não pôde se batizar, não pôde se salvar (Barreira 1998: 118).

[27] Nos depoimentos citados não há indício sobre o seu próprio estado, o mais próximo ascendente mencionado é a mãe de uma das mulheres, mas o pai, cuja família, em contrapartida, ela não conhece, era um preto. A ascendência indígena, mesmo mais distante ou com menção clara a mistura, parece bem marcada na memória familiar.

[28] E a visão no sonho do neto que encontrou um encanto índio possivelmente pode indicar a mesma operação.

[29] O que faz com que até entram noções culturalistas variantes do senso comum do mito das três raças em discurso de economistas extremamente liberais: Boa parte do nosso subdesenvolvimento se explica em termos culturais. Ao contrário dos anglo-saxões, que prezam a racionalidade e a competição, nossos componentes culturais são a cultura ibérica do privilégio, a cultura indígena da indolência e a cultura negra da magia [...] (Roberto Campos, Folha de São Paulo de 25/08/1996, cad. 1, p.4). A associação “negro-magia” é antiga também, uma relação, em termos gerais, com a dimensão desvalorizada e mais temida com o sobrenatural do que a relação mais positiva dos índios ou a atitude para com os “caboclos” sobrenaturais.

[30] Ou pretendido por algum grupo negro, na sua tentativa atual de etnogênese, de uma parcialidade do conjunto que essa mesmo grupo denomina “negro”, mas que é, como visto, graduada e fracionado. Depois de desconstruído a etnicidade já nova, reconfigurada no Brasil, a gradação e a falta de referências atuais (aquelas identidades conformadas “brasileiras” a não ser para denominar tipos de candomblé), dificultam passar de níveis familiares e individuais para uma categoria mais englobante em que “negro” seja mais étnica do que “racial”. Aliás, curiosamente, somente o desaparecimento destas identidades coloniais possibilita pensar em reaglutinar os descendentes em uma única categoria que, necessariamente, terá que ter um fundo substancialista. Na falta de uma clara “cultura negra” consensualmente aceita (associada a parcialidades ditas negras que não se consideram como tais como do bairro recente em Salvador; basta lembrar que para muitos, crentes mas também católicos, “o candomblé é de satanás”), só a mesma atitude que combate no racismo poderá assentar uma recreação.

[31] O que desloca a proposta de Schwartcz (1998) sobre a especificidade do racismo brasileiro; ela põe uma ênfase sobre as esferas de privado e público, aqui proponho um gradiente entre o pessoal e impessoal.