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Grupo de Trabalho 4
Linguagem literária e o Rio de Janeiro fin-de-siècle: Trajetos da cidade, trajetos da exclusão

Maria Ercilia do Nascimento[1]

O cenário

A cidade do Rio de Janeiro cantada em prosa e verso por poetas, escritores, artistas, músicos, diretores de cinema, assim como por viajantes, ilustres ou não, foi e permanece referência obrigatória para brasileiros e estrangeiros que com ela estabeleceram algum tipo de ligação e que não deixaram de enaltecer suas belezas naturais, bem como de admirar um certo savoir-faire próprio de seus moradores; identificado com o que poderia se chamar de uma forma de ser tipicamente “carioca”, ironia e sátira, recheadas de um indisfarçavel bom-humor se conjugam para imprimir muito das peculiaridades que tornaram a Cidade - chamada de Maravilhosa - conhecida, inclusive, internacionalmente.

Desde a expulsão dos franceses, e a retomada do Morro dos Castelo pelos portugueses em 1555, o Rio de Janeiro permaneceu como fonte de encantamento e simultaneamente objeto de repulsa; é a natureza que se antecipa em diferentes relatos, acentuando de forma nítida a idéia do que causou - especialmente aos olhares estrangeiros - o contato com a antiga Capital da República; repleta de descrições, onde as sensações causadas pela presença do ar, a ação da luz e do calor, pela cadeia de montanhas e a imensidão do oceano se antecipam a qualquer outra, em 1935, por exemplo, Claude Lévi-Strauss, não consegue se desfazer da profunda emoção deste seu primeiro encontro com o Novo Mundo. Nas páginas de Tristes Trópicos ele relata sua chegada; com desagrado a entrada da Baía o decepciona, porque - diferentemente de New York esculpida aos moldes de um estaleiro - à Guanabara falta espaço para se expandir e lembrando ao antropólogo uma boca banguela, ela lhe deixa uma incômoda impressão de acanhamento.[2]

Inversamente, para Stefan Zweig, o encontro com o Rio de Janeiro, entre 1936 e 1937, seria definitivo: maravilhado com a harmonia desenhada pelas montanhas, além das praias, da baía e das enseadas, dos efeitos provocados pelo calor, pelo sol e pela luz, para o escritor austríaco são as suas feições femininas, distintas de New York - austera e viril - que a tornam hospitaleira, com os braços sempre abertos para receber aqueles que dela se aproximam.[3] Mas, nem todos tiveram com a cidade relações de empatia tão vibrantes. O caso do Conde Gobineau, representante da França entre nós, entre 1869 e 1870, é emblemático; sua correspondência marcada por pouco entusiasmo, e pelo desejo do retorno, fala insistentemente da natureza a lhe incomodar: chuvas, insetos, ar abafado, céu excessivamente cinzento ou claro demais. Pior: a herança escrava, visível na pele negra de seus habitantes esdrúxulos e pouco civilizados, não fazia justiça à sua fama; a cidade só compensava porque, próximo ao Imperador, o Conde podia desfrutar de conversas agradáveis e inteligentes. No restante, o momento mais esperado é sempre o da volta.[4]

Ainda que geograficamente afastada dos centos urbanos e cosmopolitas, onde se davam as grandes mudanças tecnológicas, distante das manifestações e criações culturais que aconteciam nas metrópoles européias, o Rio de Janeiro foi durante os últimos anos que antecederam a chegada do século XX e, com certeza, no período que permaneceu como Capital da República, palco de acontecimentos dramáticos. Sem deixar de dar curso à alterações de caráter econômico, bem como às mutações provocadas pelo avanço das comunicações, transportes, eletricidade, etc, e não perdendo de vista os novos lançamentos internacionais no terreno das artes, a cidade assistiu, entre atônita e resignada a ocorrência de fatos políticos notáveis que modificariam definitivamente a história e os destinos da nação. É o que afirma José Murilo de Carvalho, rememorando as palavras de um observador decepcionado com o que presenciou da Proclamação da República a 15 de novembro de 1889; o povo que deveria ser o principal protagonista de um fato histórico de tamanha envergadura, terminou observando tudo de forma passiva e bestializada, julgando estar diante de uma parada militar.[5]

Entre a paciência e a revolta o Rio de Janeiro procurou conviver com a chegada da modernização - autoritária e esnobe - que teve como pressuposto impor o que se imaginava ser cosmopolitismo ou “civilização”. Diante dos impactos e resultados, vistos como altamente positivos que os investimentos em tecnologia e industrialização deixavam à mostra nos grandes centros europeus, o Rio foi se tornando alvo de sonhos e utopias não só de poetas, escritores, e de nossos primeiros pensadores, mas também das elites recém-chegadas ao poder, em sua maioria retrógradas e conservadoras. Com o momento da economia mundial reascendendo a grandes realizações, ao lado de uma dose excessiva de otimismo, pautado na crença ilimitada do progresso, a belle époque, chamada sugestivamente de tropical, por Jeffrey Needell, encontra na Cidade Maravilhosa seu capítulo mais significativo.[6]

 

O Cenário e seus protagonistas

Sentindo-se preparada para por em prática um ideário que apostava na certeza de que o país venceria a fase de imobilidade e atraso em que se encontrava, - em razão da herança deixada pelo passado colonial - a República que chega em 1889, exatamente um ano após e meio após a Abolição da Escravatura, se propõe uma responsabilidade: tornar a Capital da República nosso primeiro e verdadeiro cartão postal. Não deveriam ser poupados esforços para esse fim, e uma nova cidade, inspirada na Paris do Prefeito Haussmann é entregue ao engenheiro Pereira Passos; formado na Polytechnique francesa e encarregado de levar adiante o que ficou conhecido como a “Regeneração”, ao lado de alguns exageros, como a importação de pardais - símbolos de Paris - trazidos com o objetivo de tornar o Rio mais atraente, ou mesmo a implosão do Morro do Castelo -  marco da fundação da cidade - o que está em pauta é uma determinada concepção de progresso baseada na limpeza, no arejamento, na amplidão e na claridade.[7]

Ruas escuras e apertadas, becos, e velhos casarões cedem lugar para que sejam construídos amplos edifícios como a Biblioteca Nacional, a Escola de Belas Artes, o Teatro Municipal e largas avenidas, a exemplo da conturbada e polêmica Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. É o espaço que se abre aos moldes do boulevard para que a beleza de novos prédios e monumentos seja admirada e as ruas sirvam como local de desfile de uma nova classe, sedenta em expor o último modelo parisiense desembarcado no porto, este também alterado para receber navios de grande porte.

Conectada diretamente a tudo que acontecia na Capital francesa, Paris torna-se o nosso espelho civilizado e dela serão transportados desde o último grito da moda, até comportamentos considerados chic ou smart. Lima Barreto em sua habitual ironia é quem nos fornece um flash do que se passava.

... “Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios e, como complemento queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra.”[8]

Sem dúvida a palavra de ordem “o Rio Civiliza-se”, é o que mais define o espírito vivido pela cidade.[9] Embora pareça anedótico nos dias de hoje, no decorrer da Primeira Guerra a elite carioca substituiu nosso tradicional bom-dia ou boa-tarde por um patriótico Viva a França; livrar-se das heranças deixadas pela Colônia e pelo Império, que na perspectiva dos novos setores republicanos se constituíam nos verdadeiros empecilhos para que o país alcançasse níveis razoáveis de progresso, importava à entrada do século XX ações efetivas que permitissem ao Brasil figurar - em condições de igualdade econômicas e culturais - às nações mais avanças da Europa. Era portanto necessário que as “picaretas regeneradoras” destruíssem, sem nenhum constrangimento o que a cidade guardava de seu passado, levando com ele o atraso, a vergonha, a sujeira. A demolição da antiga cidade acompanhada com surpresa por alguns e lamentada por outros, recebe do povo, simplesmente um nome : Bota Abaixo.[10]

Nicolau Sevcenko nos dá as coordenadas do que se a buscava com a “Regeneração”: em primeiro lugar, está sendo posta em prática uma política sistemática de condenação de hábitos e costumes que tivessem qualquer ligação com a sociedade colonial; em segundo, a depreciação, e até mesmo a ridicularização de qualquer forma de manifestação da cultura popular, o que significava deixar intocado o que se entendia por sociedade civilizada ou por “civilização”; o terceiro, diz respeito à expulsão planejada de antigos moradores e grupos populares do centro da cidade, que se tornará um espaço exclusivo das novas camadas sociais e, finalmente, uma maneira de se comportar inspirada no estilo de vida parisiense. Nesses quatro princípios estão presentes as concepções de um momento histórico caracterizado por violentas marginalizações e exclusões, não apenas econômicas, mas principalmente culturais e étnicas. Seus resultados não poderiam ser de outra ordem: o legado cultural da sociedade brasileira enfrenta severas leituras de caráter ideológico, com conseqüências  graves à sua própria preservação. Com essa seleção, ficarão de lado tradições e recriações culturais consideradas atrasadas ou remanescentes de uma mescla cultural, não afinada com padrões importados do Velho Continente, em favor do que passa a valer como “moderno” ou “civilizado”.[11]

 

O escritor

Estabelecer regras de conduta e convivência para os domínios da raça ou das distinções raciais, e articulá-los ao lugar que a sociedade impõe aos que se diferenciam fisica e culturalmente do grupo majoritário branco, constitui o desafio que nos propomos enfrentar, conduzidos pela mão do escritor, romancista, memorialista e cronista Afonso Henriques de Lima Barreto. Sua trajetória, enquanto descendente direto de escravos africanos, vivendo os impasses e dilemas impostos pelas transformações do Rio de Janeiro, fin-de-siécle poderia ser pensada como caso-limite; esta perspectiva permite aproximá-lo da trajetória de tantos outros brasileiros que viveram humilhações e constrangimentos em razão da cor da pele, e que sonharam com respeito, dignidade e reconhecimento, ou simplesmente esperaram ser aceitos enquanto seres humanos, iguais a todos os outros sem qualquer distinção.

Vivendo às últimas conseqüências os tênues limites da vida e da morte, da esperança e do desespero, da fé e do descrédito, é a palavra escrita, na narrativa ou na ficção, que lhe permite revelar as formas abertas e veladas assumidas pelo preconceito, em suas intrincadas inter-conexões econômicas e sociais; por essa razão, não nos parecem corretas interpretações a respeito da vida/obra do escritor, onde predominam fatores de ordem individual e familiar, em prejuízo das circunstâncias que o teriam tornado, segundo parte da crítica literária, “desadaptado” ou “desajustado”.

 Nascido à 13 de maio de 1881, na cidade do Rio de Janeiro, filho de João Henriques de Lima Barreto, tipógrafo da antiga Imprensa Nacional, de ascendência portuguesa e africana, e de Amália Augusta Pereira de Carvalho, professora primária, igualmente descendente de africanos e portugueses, o pai do futuro escritor nasce liberto e a mãe livre.[12] O biógrafo registra o fato com indisfarçada emoção:

        “Afonso Henriques nasceu numa sexta-feira,13. Treze de maio de 1881. Dia e número aziagos, dirão os supersticiosos, com o riso amarelo. E mais seguros ficarão da má sina do menino ao saberem que veio ao mundo em data em que se comemora Nossa Senhora dos Mártires, embora tivesse como protetora à hora do batismo, Nossa Senhora da Glória, de quem João Henriques era devoto. Não verificamos qual a posição dos astros nesse dia, mas não deveria ser lá muito favorável, pois essa força e misteriosa e desconhecida que se chama destino, sempre conspirou contra Afonso Henriques de Lima Barreto.”[13]

A família procura legar ao filho uma educação requintada e especial para os padrões da época; vida modesta é verdade, sem grandes farturas, mas passada de início em bairros de relativo poder aquisitivo do Rio de Janeiro, como Flamengo e Laranjeiras; no entanto, em forças que ele não consegue suplantar - chamadas posteriormente de Acaso ou Destino - recaem as responsabilidades por desfazer seus pequenos sonhos: aos 7 anos a mãe morre de tuberculose galopante e o pai, monarquista confesso, com a chegada da República demite-se das oficinas da Imprensa Nacional; aos 33 anos, João Henriques está viúvo, vendo-se obrigado a cuidar de quatro filhos menores. Passa a exercer o cargo de almoxarife da Colônia de Alienados, na Ilha do Governador, conseguindo manter a educação de Afonso Henriques graças ao auxílio do padrinho, num dos Colégios particulares mais prestigiados da época.[14] Imaginavam, à esta altura, pai e filho, que com uma educação aprimorada o pequeno Afonso seria Doutor com pergaminho e anel no dedo.

Ilusões que se anulam com a doença do pai acometido de uma insanidade mental incurável, tornando-o prisioneiro de seus próprios delírios durante quase quarenta anos; esperanças arruinadas, porque mesmo tendo conseguido chegar à Escola Politécnica, perseguido por um dos professores, por razões raciais, acabará abandonando o Curso de Engenharia para prestar concurso como amanuense da Secretaria da Guerra. Dificuldades financeiras rondam o lar dos Lima Barreto e a pouca aposentadoria do pai, aliada ao insuficiente salário do escritor, obrigam-no a se instalar em Todos os Santos, subúrbio do Rio de Janeiro, numa casa simples que ele chama carinhosamente de Vila Quilombo. À esta época, pela casa dos 25/26 anos, faz sua opção pela Literatura, e a ela, sem meias palavras, resolve dedicar-lhe a vida.

 O tempo, anteriormente tranqüilo passado entre os estudantes que freqüentavam o Largo São Francisco, deve agora ser dividido entre o trabalho enfadonho e burocrático da Secretaria da Guerra, e sua atividade junto a jornais e revistas da cidade, dos quais se tornara colaborador. Ser escritor reconhecido - não obrigatoriamente admirado - foi o que buscou Lima Barreto que produziu, em apenas 41 anos, romances, artigos, contos, crônicas, sátiras, crítica literária, registrando ainda grande parte de sua vida no Diário Íntimo, no Diário do Hospício, e na Correspondência Ativa e Passiva. Para quem imaginara ser Doutor não seria fácil a adaptação à um trabalho desprovido de qualquer sentido; obrigado a enfrentar não apenas a crítica, quase sempre indiferente ou pouco efusiva diante de sua produção literária, são as privações financeiras que forçam-no a custear com dinheiro próprio - e o auxílio de poucos amigos - grande parte de suas publicações.

É sempre o sabor de uma nova esperança e o desejo de conseguir o merecido reconhecimento que o animam a prosseguir, muito embora os “mandarins da literatura” e a poderosa Academia Brasileira de Letras, atentos a critérios diversos dos estritamente literários, não tivessem permitido a  Lima Barreto fazer parte da galeria daqueles que se dedicaram ao mundo das letras. Será continuamente taxado de desleixo e pouco caso com as regras gramaticais, e assim morreria sem imaginar que um dia seu esforço seria finalmente recompensado. Este mérito deve ser creditado à Editora Brasiliense e à Antonio Houaiss, M. Cavalcante Proença e Francisco de Assis Barbosa, também responsável pela biografia; a partir de 1956 encarregados da organização da obra, publicam-na  integralmente e entregam os Prefácios a nomes de destaque do mundo literário e acadêmico brasileiros, como Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, e Alceu Amoroso Lima, entre tantos outros.[15]

Como vencer as barreiras que se fechavam em uma cidade sitiada pelo ideário do embranquecimento, refletido não apenas em seus espaços cada vez mais arejados e claros? Como conciliar um espírito extremamente lúcido e perspicaz ao lado dos desmandos e negociatas que a Primeira República realizava em nome do propalado progresso? Como calar diante da indiferença dos poderes públicos com aqueles que, como ele, encontravam-se nos níveis mais baixos da escala social? Consciente de que a República, além do poder florianista, foi a responsável pela perda de emprego e pela insanidade paterna, tendo absoluta convicção que as reformas levada a efeito por Pereira Passos empurraram para subúrbios cada vez mais distantes, os indesejáveis, os pobres, os miseráveis e os considerados incapazes de absorver padrões de uma civilização européia sofisticada e à altura de poucos, Lima Barreto que, em seu Diário Íntimo aos vinte e dois anos, se impusera como decálogo, 1) não ser mais aluno da Escola Politécnica e 2) não beber excesso de coisa alguma, mais uma vez - ironia do Destino  - não conseguiria cumprir o que determinava o segundo ítem.

 Procurando reverter a má sorte, lembrando as palavras do biógrafo, uma visão de si mesmo, que não chegava a ser totalmente depreciativa está bem longe da imagem que dele faziam os companheiros de boêmia, quando próximo dos 30 anos, o álcool começava a deixar os primeiros sinais que o levariam à morte. Em 1903, no Diário Íntimo, sob o título Um Diário Extravagante, está anotado,

“Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade.”[16]

Ao se desfazerem os sonhos e ilusões, aproximar-se do escritor exige cuidados redobrados; impossível permanecer indiferente, pois trata-se de manifestar solidariedade à uma luta que tem por objetivo vencer o vício e observar as reações que seu drama desperta nos que dividiram com ele a mesma saga pelos bares e cafés da cidade. A recusa para que se aceitem os argumentos de que esta não é uma tragédia exclusivamente pessoal ou ligada à um grupo racial distinto, caracterizado por presumíveis dificuldades de convivência e adaptação, persistiu até bem pouco tempo. Mais que isso: sentindo-se desobrigada de qualquer responsabilidade, a própria sociedade coloca em termos individuais, o que de fato também lhe diz respeito. Portanto, a chegada da antiga Capital da República ao século XX sinaliza, de forma contundente, para a ausência da justiça social em todos os níveis e para instauração de mecanismos de exclusão, preconceito e discriminação de ordem social e racial.

A exclusão e a intolerância em relação aos que se encontram nos estratos inferiores e que trazem no corpo o estigma da “diferença”, em torno dos quais são construídas as alteridades - o outro dos outros, caracterizado por um grupo social ou uma etnia” - como pensa Marc Augé, passam a agir de maneira associada, denotando e circunscrevendo uma das características mais eficazes do preconceito no interior da sociedade brasileira. Ele se instaura sob dois planos - o social e o racial - deixando transparente apenas um de seus lados - o social  - supondo ser possível, nestes termos, encobrir a presença e a prática das discriminações de ordem racial.

Valeria lembrar que para o antropólogo francês somos devedores dos estudos etnológicos, porque foram eles que nos revelaram que o social se inicia com o indivíduo e que este se encontra na dependência direta do que a comunidade lhe deixa como marca. Porém, a cultura nunca a se dá a conhecer em sua plenitude, e os indivíduos sempre a enunciam sempre sob determinado prisma; “nem a cultura localizada no tempo e no espaço, nem os indivíduos nos quais elas e encarna definem um nível de identificação básico aquém do qual nenhuma alteridade seria pensável”.[17]  Mesmo que sua tentativa seja se opor aos caminhos adotados pela Antropologia, interessa frisar, em outras palavras, que a invenção da alteridade ou a criação do Outro, pode ser colocada em debate; reconhecidos os sentidos que lhe são pertinentes, sua dimensão multilinear permite olhá-la sob vários ângulos: ela pode ser entendida como o outro exótico, definido em relação à um nós, também presumivelmente idêntico, ou um ele como designação específica de uma etnia; pode referir-se à um outro social, arcabouço de um complexo sistema de diferenças familiares, sexuais, etárias econômicas ou políticas, e por fim o outro íntimo “presente no cerne de todos os sistemas de pensamento e cuja individualidade absoluta é impensável.”[18] Estas premissas abririam o campo de distintas multifaces, em torno das quais se consolidam as alteridades.

Pensando nestes mecanismos de relações entre individual e social, entre um ele e um nós, podemos, ainda uma vez, continuar seguindo Lima Barreto, agora cumprindo a triste rotina de assíduo freqüentador dos bares e cafés onde se reuniam boêmios famosos e conhecidos. Aos 30 anos já havia escrito seus melhores contos e romances sem, conseguir algum grau de reconhecimento;[19] crescem as censuras por escrever romances à clef, por usar uma linguagem interpretada pelos críticos como apressada e pouco elaborada e, novamente, pelos descuidos gramaticais, sintáticos e semânticos; à essas objeções, aliam-se restrições aos temas que sempre retornam ao interior da narrativa e da ficção, dizendo respeito diretamente a vida do escritor. Os preceitos que ditam as regras do romance, afastando personagens e narradores da trama ficcional não encontraram em Lima Barreto um fiel muito convicto e assim, ao lado das imagens de desregramento, inadaptação, revolta, desajustamentos e inconformismos vão se acrescentar aquelas que se criaram em função do alcoolismo e das internações.

As crises provocadas pelo álcool foram inúmeras, obrigando-o a tirar várias licenças para tratamento de saúde, e os delírios extremamente graves levaram-no a ser internado, uma vez no Hospital Nacional de Alienados e uma segunda, no Hospital do Exército. No entanto, o que mais chama a atenção é a plena consciência e o profundo conhecimento que ele expressa sobre as causas que o levaram a beber. Está fora de seu alcance dominar as forças que o impulsionam à incontrolável atração pela bebida, e ao se dar conta dos processos da destruição física e mental que o álcool lhe impõe, Lima Barreto adquire a certeza que este é um caminho sem volta. Sofrimento duplo, porque o escritor sabia muito bem as causas que o levaram a beber, o que procurava esquecer, e sem dúvida temia suas conseqüências. Ele confessa,

“De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades da vida material me assoberbam, de quando em quando, dou sinais de loucura: deliro”.[20]

Finalmente Lima Barreto despede-se da vida, tendo a seu redor dois projetos altamente significativos; o primeiro, centrado em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá- romance preterido por ele em favor de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, quando de sua estréia no mundo literário- e que concorre ao prêmio de melhor livro do ano em 1920, recebendo da Academia Brasileira de Letras, apenas menção honrosa, e o segundo, ao qual se dedica em 1921, portanto um ano antes de sua morte, é o romance Clara dos Anjos. Voltando ao que abandonara em 1904 em torno do que deveria ter sido sua Germinal Negra, a despedida do escritor se faz através da figura feminina e delicada da sonhadora Clara; deixando transparecer a simplicidade, os conflitos, e as ilusões que permeiam o cotidiano dos subúrbios cariocas, dele emergem, injustiças e impunidades que persistem até os dias de hoje, marcando com extremada violência os mesmos lugares por onde esteve Clara dos Anjos. A primeiro de novembro de 1922 Lima Barreto falece no Rio de Janeiro, tendo em suas mãos um exemplar da Revue de Deux Monde; quarenta e oito horas depois, o Acaso e o Destino completam sua missão e morre João Henriques, pai do escritor.

De forma breve se poderia dizer que as revoltas do escritor se encerraram dentro do panorama das diferentes barreiras que o impediram de ser aceito pelo que simplesmente era, ou seja, como alguém que carregava com plena consciência e a mais justa certeza a noção do valor que possuía, fosse em termos intelectuais ou morais; sabendo que os homens valem menos pelo que aparentam, e bem mais pelo que de fato são - especialmente pela honestidade e pelo conhecimento  - Lima Barreto  foi incapaz de ceder a qualquer tipo de apelo que implicasse a perda de sua própria dignidade enquanto homem/negro/cidadão e suburbano.

Impaciente, implacável e irônico, conhecia os significados de sua condição racial e social, e a luta pelo exercício da cidadania - que empreendeu sem condescendência - contou exclusivamente com a arma que teve a seu dispor: a palavra escrita, usada sem limites e sem descanso, denunciando e protestando contra o abandono, os preconceitos e a miséria. Retraído, reservado, possuidor de um senso de observação extremamente aguçado e uma noção muito precisa do significado e das conseqüências do preconceito racial, dono de uma ironia particularmente fina e bem humorada, a Literatura aí está, como afirmou ele mesmo, para “dizer o que os simples fatos não dizem”.

Narrativa e ficção, ao fixarem e registrarem o cotidiano da antiga Capital da República, abrem o espaço público para novas perspectivas, trazendo para o interior da literatura brasileira a presença de tipos muito particulares, onde se incluem pequenos funcionários públicos, escriturários, jornaleiros e jornalistas, soldados, delegados de polícia, prostitutas, lavadeiras, costureiras, poetas, condutores de bonde, estudantes, deputados, padres, médicos, violeiros, militares, redatores, revisores, jogadores, carteiros, verdureiros, livreiros, etc. Orgulhoso por se definir um “carioca da gema, apesar dos pesares”, é por meio dela que Lima Barreto tentará ser a voz dissonante e desafinada, trilhando novas perspectivas literárias que acabarão rompendo, segundo estudiosos contemporâneos, com os padrões estéticos de seu tempo.

Foram idéias, debates e polêmicas que se davam no mundo das artes e das ciências em geral, que moldaram os contornos de suas concepções intelectuais e artísticas; nelas se incluem ao lado do pensamento de Taine, Renan, Bouglet e Condorcet, uma sintonia muito apurada e um espírito excessivamente crítico, por vezes muito bem-humorado, com o que se passava em termos culturais e políticos, tanto em nível nacional como internacional, foram os clássicos da literatura quem lhe propiciaram suas mais notáveis características. Nesta galeria, além de Eça de Queiroz, José de Alencar, Tolstói, Balzac, Proust, Stendhal, está o predileto: Dostoievski. Desta maneira, é à Literatura e a extremada relação autor/obra que deve se dirigir o olhar de quem queira entender como Lima Barreto viveu e conviveu com um mundo, que à seu tempo, passava por mutações de natureza diversa.


A Jornada de Isaías

Talvez seja Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909, ao lado de Clara dos Anjos, o romance em que as articulações entre a raça, e condição sócio-econômica apareçam com maior nitidez. Escolhido por  Lima como seu trabalho de estréia, esperando com ele escandalizar e provocar polêmica, o livro terminou recebido pela crítica com indisfarçada apatia. A narrativa acontece quando Isaías Caminha já adulto conta sua própria história; a tortuosa e humilhante jornada do antigo estudante é desvendada pelo narrador, desde sua saída do interior do Estado do Espírito Santo em direção ao Rio de Janeiro, até sua volta como escrivão da Coletoria.

A personagem, ao mesmo tempo alter-ego do escritor, apresenta-se diante dos leitores sem nenhum disfarce; filho ilegítimo do pároco da cidade, ao deixar a distante Caxambi levava com ele um carta de apresentação à um certo Dr. Castro - a quem a comarca de onde provinha o elegera como deputado, com o voto de incontáveis defuntos -  que se encarregaria de lhe conseguir emprego para completar os estudos. Sonhos e desejos de se ver com anel de doutor e pergaminho na parede, assumem antes da partida proporções mágicas; ao se despedir percebe o olhar de “terror, admiração, pena e amor” de sua mãe que diz simplesmente: vai meu filho...Adeus! ... E não te mostres muito, porque nós...

 Durante a viagem passando em revista a si mesmo, após ter enfrentado um incidente de conotações raciais, num rancor surdo e quase aos prantos, constrói de si o seguinte auto-retrato,

“Os meus dezenove anos eram sadios e poupados, e meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros largos e os membros ágeis e elásticos”... “Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada.”[21]

Chega ao Rio com atenção e sentidos redobrados, vai para um hotel bastante simples dando início à uma nova etapa; guiado pelas mãos de um hóspede que lhe desperta algumas suspeitas, conhece tipos curiosos e extravagantes da boêmia carioca: são jornalistas, redatores, revisores, em sua maioria ligados à grande imprensa que lhe causam decepção e uma certa surpresa. Ao seu olhar, não escapa que pretensão, convencimento e uma insuportável superioridade rondava os que faziam parte do que o narrador denomina “Onipotente Imprensa”.  

O tempo vai transcorrendo sem qualquer indício de saída para seus problemas. Os prejuízos ocasionados pela recusa do deputado Castro em lhe fornecer uma carta de apresentação, redundam no fim de suas economias; acusado de furto e intimado a prestar depoimento, o mulatinho do Jenikalé - assim a ele se refere o Delegado, em referência ao nome do Hotel onde estava hospedado - enfrenta mais uma, entre tantas outras, situação de constrangimento em razão da cor da pele. Com plena certeza de que Isaías está mentindo ao afirmar sua condição de estudante, as provocações do delegado, não conseguem torná-lo mais flexível. Por seu orgulho é levado à cela onde permanece algumas horas. Um dos jornalistas que conhecera nos bares e cafés, é quem vai livrá-lo da prisão; surpreso, o delegado insiste para que ele não se esqueça, a partir daquele instante de declarar, nestas situações, seus conhecimentos e amizades porque “um jornalista é sempre um homem importante, respeitado, e nós da polícia temo-lo em grande conta...[22]

Episódios semelhantes à este vão tornando tensa e sem saída as buscas do estudante, agora morador de uma pensão barata no Rio Comprido, até sua entrada como contínuo da redação do Jornal “O Globo”, diário matutino, dos mais importantes da cidade. Novamente, alterações qualitativas vão se dar na vida da personagem. O  narrador insiste em mostrar como o contato com o redator-chefe, articulistas e revisores, em cujas mãos está o poder de decidir sobre o destino de políticos, autoridades, e da própria população, serão os elementos-chave na mudança de caráter de Isaías. Subserviência e pedantismo, mesclado à uma quase futilidade são constantes entre os que trabalham no Jornal, ao lado de concorrências, disputas, mediocridades e arrivismos que atingem os bajuladores que freqüentam a redação, políticos que exigem explicações ao público, e assim por diante. Chama-lhe a atenção o descaso com que são tratadas as notícias, tendo em vista seu principal objetivo: a venda cada vez maior de exemplares. Destruir ou elogiar é um jogo que faz parte deste intrincado movimento de interesses despertado pela necessidade de consolidação da República. A ausência de escrúpulos definiria, segundo o escrivão, a linha de e “O Globo” que poderia ser tomado como um retrato do período vivido pelo país.

 Esse mundo vai se revelando quase sobrenatural, acima das condições terrestres, e caindo nas águas do esquecimento o tempo de miséria e fome quando mal vestido deixava transparecer sua situação de miséria, Isaías vai de modificando. Ao apresentar-se de maneira mais adequada deixando de lado a aparência anterior, neste caminho dissipam-se os primeiros sonhos, e as pessoas com quem divide sua moradia passam a tratá-lo de forma diferente; um processo de alheamento vai se operando e o encantamento que um almoço ou jantar podem lhe propiciar deixam a dimensão exata de que a mediocridade tomou conta de seus dias. Convivendo em maior intimidade com as tensões e comprometimentos de editores e articulistas, aos poucos, o desnudamento que ele vive ao escrever suas “Recordações” atinge graus mais profundos, e não sem uma carga de amargura, chega a reconhecer que chegou a sentir vergonha pelas origens de seu nascimento.

 Numa noite ele é testemunha do suicídio de um dos revisores nas dependências do Jornal; este  fato, que isoladamente não representaria muito na trama do romance, deverá alterar novamente o percurso de Isaías. Obrigado a levar a notícia ao redator-chefe, acostumado a passar uma parte da madrugada na Casa de Idalina, toma conhecimento de um dos lados da vida, não tão séria e honesta do todo poderoso e temido responsável pelo “O Globo”. Evidentemente que ao lado dos pedidos de discrição, feitos pelo chefe em razão do que presenciara, chegam até ele outras propostas e convites; ao final é designado como repórter da “Marinha e Alfândega, passando a vivenciar, sem qualquer constrangimento, novas experiências; a partir daí, será reconhecido, temido, elogiado e principalmente adulado.

O enredo que se desenvolve em Isaías Caminha, se pensado com mais cuidado, poderia surpreender pela ausência de originalidade diante de trajetos semelhantes a outros personagens da literatura brasileira, que saem de cidades pequenas e acanhadas do interior, buscando conquistas e realizações na antiga Capital da República. Para todos eles, o processo de desnudamento é inevitável, se considerarmos que o reconhecimento de si e as lembranças do passado, agradáveis ou não, formam o contraponto com as transformações e vivências de cada um deles, diante da antipatia e impáfia da belle-époque carioca. Esta constatação é verdadeira e não há razões para espanto.

O que altera a trajetória do romance é a interferência de seu criador, simultaneamente metamorfoseado nas figuras do narrador e da personagem, que poderia ter encerrado tranquilamente sua ficção com a volta da personagem à Caxambi, como escrivão da Coletoria. No que seriam diferentes estas “Recordações”, frente a de outros personagens que como Isaías compartilharam dos mesmos sonhos e desilusões?  De fato, se não há como negar que eles foram criados à imagem e semelhança de seus autores, nenhum chegou ao limite de revelar sua nudez, como fizera o mulato Isaías, um “homens de muitas caixas”. Se outros criadores de personagens contemporâneos de Lima Barreto, ao se despirem abriram incontáveis caixas, onde se estavam guardadas as camadas mais profundas de suas personalidades, não quiseram ou  não puderam chegar ao fim, onde se encontrava o segredo inviolável e seguro de suas próprias almas. Resta-nos perguntar, por que? Em poucas palavras, a resposta é: Isaías era um homem de uma única caixa.

“A caixa da confiança no poder da vontade e da inteligência. Caixa ou roupa, se se prefere voltar esta imagem, em que limitada e provinciana educação lhe metera na alma. Caixa ou roupa de tecedura muito frágil, a ponto de se desmanchar aos primeiros atritos do meio ambiente social, e dela sair uma alma em plena nudez: e plena porque a nudez de uma alma sem vontade, sem qualquer aderência  à existência, a qual de todos os lados impulsionava e fazia subir ao corpo de Isaías”.[23]

Lembra-nos Soares Amora, inspirador dessas reflexões finais que por aí deveria ter parado Lima Barreto. Porém ao escritor, dono de uma intransigente e rígida conduta moral, não seria possível encerrar com esta tranqüilidade as memórias de Isaías. O livro que se abre com uma Breve Notícia, datada de julho de 1905, explica ao leitor as intenções de Isaías/Lima Barreto em escrever suas “Recordações”, afirmando como propósito, não produzir uma obra carregada de ódio ou rancor, e muito menos fazer grande literatura; seus objetivos, bem mais modestos, restringem-se a mostrar as injustiças que a sociedade impõe a certos grupos sociais, estando neste caso aqueles que em razão da ascendência étnica ou de determinados traços fenotípicos foram excluídos do acesso à saúde, educação, segurança, etc., assim como em função desses mesmos fatores deixaram de se constituir como grupo culturalmente distinto, de fazer parte da cultura oficial e hegemônica. O intuito foi mostrar que a sociedade é que deve estar em foco quando se trata de emitir qualquer (pré)-julgamento a respeito da trajetória individual de negros e seus descendentes, não o contrário.

Isaías e Lima Barreto, como vimos, se confundem, e é a natureza moral dos dois que permite ao livro ir mais além; na segunda edição, datada de 1916, o ficcionista  faz outras revelações confessando que o seu Isaías, escrevera suas Recordações movido, por amargas lembranças, porque,

“Após dez anos, tantos são os que vão da composição das “Recordações” aos dias que correm, o meu amigo perdeu muito de sua amargura, tem passado pelo Rio com belas fatiotas, já foi ao Municipal, freqüenta as casas de chá; e, segundo me escreveu, vai deixar de ser representante do Espírito Santo, na Assembléia Estadual, para ser, na próxima legislatura, deputado federal. Ele não se incomoda mais com o livro; tomou outro rumo. Hei de vê-lo em breve entre  encantadoras, fazendo o tal “footing” domingueiro, no Flamengo, e figurando nas notícias elegantes dos jornais. Isaías deixou de ser escrivão. Enviuvou sem filhos, enriqueceu e será deputado. Basta. Deus escreve direito por linhas tortas, dizem. Será isso ou será de lamentar que a felicidade vulgar tenha afogado, asfixiado um espírito tão singular? Quem sabe lá? Para mim, no entanto, sem  acreditar na intervenção de nenhuma Dejanira, sou de opinião que ele está vestindo a túnica de Nessus da Sociedade”.[24]

 Aqui reside a diferença. A coragem de se despir em público até a completa nudez, expondo o que fora reservado como destino para negros e seus descendentes na sociedade brasileira. Para este pobre contínuo que soube acompanhar o fim de suas mais cara ilusões e esperanças, e perceber as mudanças de caráter que a nova vida na redação do Jornal “O Globo” lhe impunham, não faltaram escrúpulos - após alguns anos de sua crise moral - vestir-se novamente diante desta mesma sociedade. Só que agora, o que ele veste, fazendo uso das figuras mitológicas, são os figurinos oferecidos pela ópera bufa, representada pela elite carioca à entrada do século XX.

Está posto em discussão, quase que forma profética que o que viria a ser o drama de nossos afro-descendentes, ao final do nosso século. Discriminados e excluídos, inclusive pela divulgação de diferentes explicações, assentadas em duvidosos estudos e premissas antropológicas e sociológicas, as elites brasileiras insistiram veementemente na afirmação de desigualdades culturais, a partir de visíveis e intransferíveis diferenças genéticas. Qualquer manifestação de inconformismo, revolta, qualquer atitude de denúncia e, por fim, qualquer comportamento que denotasse uma não adequação ao estabelecido socialmente, passou, com o tempo, a ser visto como resultado de inadaptações e desajustamentos. Assim foi com o criador de Isaías, assim foi - até certo ponto - com a sua personagem.

O Escrivão da Coletoria de Caxambi que se despiu em público aceitou, provavelmente não sem dificuldades, o que a sociedade lhe oferecia. As intrincadas, e às vezes não muito explícitas, redes de transmissão do preconceito e da discriminação racial e social continuam ativas e atentas aos desnudamentos que, sem dúvida, continuam a ocorrer. Porém, esta mesma sociedade, sempre pronta a oferecer em contrapartida conexões de vários tipos e qualidades para os que desejarem novamente se vestir, guarda em segredo o alto preço destas metamorfoses. Lima Barreto e seu Isaías, tiveram a coragem de vivê-las até o fim; ambos desvendaram e abriram suas caixas, revelando aos seus descendentes, pelo menos o preço moral dessas transmutações.

 

[1] Mestrado e doutorado no Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;  Professora do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP)/ Araraquara. São Paulo/Brasil.

[2]  Lévi-Strauss diz textualmente: “Estes acidentes geográficos, quase constantemente submersos numa bruma lamacenta dos trópicos não conseguem preencher um horizonte amplo demais para se contentar com eles”. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, Lisboa, Edições 70, s/d. p.74

[3] As impressões, análises e perspectivas deixadas por Stefan Zweig têm em vários momentos um tom excessivamente positivo; elas recaem basicamente na capacidade de tolerância e na ausência de preconceito racial que ele pressupunha inexistir entre os brasileiros. Ver: Brasil, País do Futuro, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1981.

[4] A correspondência deixada pelo Conde Arthur de Gobinaeu durante os quatorze meses em que permaneceu como  representante da França  no Brasil encontra-se em: RAEDERS, Georges. O Inimigo Cordial do Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988

[5] Ver a este respeito. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados, Companhia das Letras, São Paulo, 1987

[6] Analisando o fim de século  do século XIX, Nedell aproxima-se do Rio de Janeiro e suas metamorfoses urbanas, levando em conta um ideário de Civilização e Progresso que não se restringe exclusivamente ao período republicano; desde a vinda da Missão Francesa em 1861 a cidade vivia um  processo de gradativo de transformaçõs infra-estruturais, mostrando que o desejo de haussmannização já se encontrava presente. NEEDELL, Jefrey D. Belle Époque  Tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

[7] São os representantes das oligarquias, no período republicano, quem solidificam um esquema de poder e dão o aval para o processo de remodelação da cidade; também estão em confronto segmentos agro-exportadoras e aqueles que se encontram mais próximas das realidades urbanas, forçando o início de  investimentos em industrialização. Passado o período mais ostensivo da presença militar no interior da República, consolida-se um modelo federativo mínimo, passível de ser administrado pelas elites de São Paulo e Minas Gerais.

[8] LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, São Paulo, Editora Brasiliense, 1956, pp 204/205.

[9] As expressões “O Rio Civiliza-se” e a “ditadura do smartismo” pertencem ao colunista social e figurinista Figueiredo Pimentel, lançadas em sua coluna,“O Binóculo”, no Jornal carioca Gazeta de Notícias.

[10] O desejo de se livrar do que pudesse de algum modo lembrar o passado colonial era estimulada por poetas e escritores. A ação das picaretas regeneradoras, foi louvada por Olavo Bilac em linguagem quase sensual, conforme registra Nicolau Sevecenko em Literatura como Missão.

[11] Cf. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão, São Paulo, Editora Brasiliense, 3ª Edição, 1983.

[12] A complexa e intrincada legislação que fez parte do sistema escravista, normatizando o estatuto jurídico dos livres, libertos e forros, e definindo as condições a que estariam sujeitos escravos africanos e os nascidos no Brasil, foi se estruturando durante a vigência da própria escravidão. Esta a razão pela qual, os pais de Lima Barreto, embora filhos de escravos, já fossem livres, não tendo o próprio escritor conhecido, segundo ele mesmo, “seus horrores”, pois no Rio de Janeiro de 1881 o sistema já se encontrava em franco declínio.

[13] BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto, Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1988, p.30 

[14] Trata-se de Afonso Celso de Assis Figueiredo, Visconde de Outro Preto. Lima Barreto estudou no Liceu Popular Nitoreiense tendo entre seus colegas os filhos da alta elite carioca.

[15] A obra completa de Lima Barreto está composta de: romances (5); contos (1); sátira (1); artigos e crônicas (4); crítica (1), memórias (2) e correspondência (2).

[16] LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Diário Íntimo, São Paulo, Brasiliense, 1956, p.33.

[17] AUGÉ, MARC. Não Lugares (Introdução à uma Antropologia da Supermodernidade), Campinas, Editora Papirus, 1994, p. 26

[18] AUGÉ, MARC. Não Lugares (Introdução à uma Antropologia da Supermodernidade), op.cit, p.27

[19] São eles: Triste Fim de Policarpo Quaresma, Vida e Morte de M.J.Gonzaga de Sá e Recordações do Escrivão Isaías Caminha, além dos contos O Homem que sabia Javanês, A nova Califórnia e O único Assasinato de Cazuza, entre outros.

[20] LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Cemitério dos Vivos, Editora Brasiliense, São Paulo 1956, p.33

[21] LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Editora Brasiliense, op.cit. p.60

[22] LIMA BARRETO,  Afonso Henriques de. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, op.cit. p 123

[23] AMORA, Soares Antonio. “O Mulato que se Vestiu”. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento Literário, agosto, 1962, p. 4.

[24] AMORA, Soares Antonio. “O Mulato que se Vestiu” op. cit. p.4