GT1 | GT2 | GT3 | GT4 | GT5 | GT6 | GT7 Grupo de Trabalho 4Cultura Teuto-Brasileiro-Evangélica no Rio Grande do Sul: “Conteúdos” e “Movimentos” da Articulação de Gênero com Raça, Classe, Nação e Religião[1] Dagmar E. Estermann Meyer[2] Introdução Neste
artigo sintetizo uma parte de minha tese de doutorado (Meyer, 1999) em
que procurei analisar e problematizar diferentes discursos que se combinaram
e/ou conflituaram no processo de produção de uma cultura teuto-brasileiro-evangélica
no Rio Grande do Sul (Brasil), no período de 1900 a 1940. Busco focalizar
aqui, mais especificamente, os mecanismos e estratégias pelas quais representações
específicas de masculinidade e feminilidade delimitaram modos de funcionamento
de instituições sociais, regeram as relações do grupo com a Nação Alemã
e o Estado Brasileiro, o processo de produção econômica e o de trabalho
e, “naturalmente”, as relações familiares, afetivas e sexuais vigentes;
um processo que delimitou, ao mesmo tempo, as relações deste grupo com
outros grupos sócio-culturais e que o posicionou de um modo particular
no contexto gaúcho e brasileiro da época. A
discussão que apresento fundamentou-se em reflexões produzidas no âmbito
de algumas vertentes dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais que
vêm exercitando uma articulação crítica com a perspectiva pós-estruturalista
de Michel Foucault e Jaques Derrida[3].
Os seus contornos mais amplos delimitaram-se com base em três pressupostos:
um primeiro com o qual se afirma que a História
é um campo de saber envolvido com a produção dos fatos e acontecimentos
que supostamente descreve e analisa; um segundo que permite conceber a
Cultura como sendo um campo
de luta e contestação em que se produzem tanto os sentidos quanto os sujeitos
que constituem os diferentes grupos sociais em sua singularidade e um
terceiro, que enfatiza que sujeitos masculinos e femininos, como também
concepções de masculinidade e feminilidade, são produzidos em articulação/confronto
de muitas outras identificações, baseadas, por exemplo, na nacionalidade,
na raça, na religião e/ou na “posição” ocupada em diferentes sistemas
de produção econômica. A
análise opera, pois, com alguns conceitos centrais aos campos de estudo
acima delimitados. O primeiro deles, como indica o próprio título do trabalho,
é o conceito de cultura que é retomado criticamente nesta perspectiva
dos Estudos Culturais. Vários/as autores/as têm enfatizado a importância
dessa discussão, entre eles Stuart Hall (1997b), alertando para o fato
de que, quanto maior for a centralidade da cultura para a produção e organização
de dinâmicas sociais específicas, mais significativas são as forças envolvidas
com sua produção, regulação e governo. No contexto dessa discussão, cultura
deixa de ser entendida como conjunto de crenças e experiências, valores,
tradições e hábitos dos grupos humanos e passa a ser concebida, de forma
muito mais ampla, como o conjunto dos “processos, categorias e conhecimentos
através dos quais as comunidades são definidas (e se definem) de formas
específicas e diferenciadas” (Donald e Rattansi, 1992, p. 4). Isto significa
que, longe de limitar-se a crenças religiosas, rituais comunais ou tradições
compartilhadas, tomadas como se constituíssem um “todo harmônico e acabado”,
a cultura está implicada com a forma pela qual estes fenômenos manifestos
são produzidos através de sistemas de significação, estruturas de poder
e instituições. Como argumentam Antônio Flávio Moreira e Tomaz T. da Silva
(1994, p. 27) “a cultura é o terreno em que se manifestam diferentes e
conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e não
aquilo que recebemos”. A
discussão em torno da concepção de cultura está
diretamente conectada à problematização e ressignificação de noções
como linguagem e representação. A representação é entendida, aqui, como
sendo um processo que envolve as práticas de significação e os sistemas
simbólicos através dos quais estes significados - que nos permitem entender
nossas experiências e aquilo que nós somos - são construídos (Hall, 1997a).
São os sistemas de representação social que constroem os “lugares” nos
quais indivíduos e/ou grupos se posicionam ou são posicionados e a partir
dos quais podem falar ou “ser falados”. Tais processos de produção e partilhamento
de sentidos estão profundamente enredados em relações de poder que nomeiam,
descrevem, classificam, identificam, diferenciam e hierarquizam culturas
e sujeitos, ou seja, tais relações de poder definem quem está incluído
e quem está excluído de quais grupos/posições sociais. Desse modo, representações
não são apenas múltiplas, mas particulares e interessadas, convergentes
ou divergentes e algumas delas acabam, numa determinada época e lugar,
adquirindo uma autoridade maior e se transformam em senso comum. Ao
trabalhar em sintonia com essas abordagens foi possível perceber que,
no contexto histórico e cultural que investiguei, alguns elementos/marcadores
sociais deram uma importante sustentação ao conjunto de representações
com as quais se produziu/reformulou a concepção de uma
cultura teuto-brasileiro-evangélica, de tal forma que se tornou natural conectar a ela um conjunto específico de pessoas, práticas
e instituições sociais. Vários estudos nos campos dos Estudos Feministas
e dos Estudos Culturais (por exemplo os de Avtar Brah, 1992; Floya Anthias
e Nira Yuval-Davis, 1995; Anne McClintock et al, 1997 e Kathryn Woodward
et al., 1997) têm apontado e problematizado as formas pelas quais grupos
- como o dos teuto-brasileiro-evangélicos - que se representam/são representados
primariamente em função de seu pertencimento nacional, racial e/ou étnico-cultural
posicionam as diferenças/especificidades que são produzidas em torno (ou
a partir) desses marcadores sociais como se fossem largamente independentes
de outros como classe ou gênero e isso se constitui como importante mecanismo
de produção das representações que sustentam tanto as idéias de semelhanças
internas inerentes ao grupo, quanto as de diferenças essenciais em relação
a outros grupos. Os
conceitos de raça/etnia e nacionalidade, que estruturam os sentimentos
e a materialidade desse pertencimento
(ou exclusão), são importantes em minha discussão. Eles, em especial,
envolvem muitas disputas e polêmicas teóricas e políticas, exatamente
porque são elementos centrais dos processos de particularização e classificação
de grupos e populações humanas. Nesse sentido Floya Anthias e Nira Yuval
Davis (1995), ao comentarem esta polêmica, argumentam que estes marcadores
sociais não têm em si, um significado fixo, específico e imutável e que
os significados que eles assumem precisam ser localizados e compreendidos
historicamente, no contexto dos confrontos e conflitos que se desenrolam
dentro e entre movimentos sociais determinados. Os sentidos que eles carregam
estão, freqüentemente, associados com intenções e interesses que desencadeiam
e/ou mantém em funcionamento processos de conquista e subjugação, colonização
e migração e se prestam para explicar e legitimar variadas práticas
de privilegiamento, exclusão e subordinação social. No caso específico
destes termos, seus sentidos referem a supostas diferenças de ordem biológica,
fisionômica, moral, cultural, histórica e/ou territorial, que se articulam
com (ou são traduzidas como) origens e destinos comuns e isto pode ser
produzido no interior, no exterior ou na interconexão de diferentes grupos
e processos sociais. Os
critérios ou parâmetros que são acionados para determinar quem pertence
ou não a este ou àquele grupo
são muito heterogêneos, deveras ambíguos e maleáveis e se transformam
no tempo e nos espaços em que são colocados em funcionamento. Muitas vezes
eles referem ao fato de se ter nascido ou casado dentro de determinados
grupos ou territórios, enfatizam o partilhamento de religiões e “legados
culturais”, valorizam o uso de uma língua comum, ou prescrevem a semelhança
de caracteres fenotípicos como cor da pele, olhos e cabelos ou, ainda,
arrolam modos de ser e de portar-se que são estendidos ao conjunto do
grupo em questão. Essa maleabilidade e ambigüidade indicam a necessidade
de tratar tais critérios, como sugere Avtar Brah (1992), como campos de
contestação inscritos em processos e práticas discursivas e materiais,
entendendo-os como contingências históricas, produzidas em relacionalmente,
cujos sentidos e efeitos de poder são continuamente transformados por
(e no interior de) lutas políticas. O
que muitos/as autores/as vêm enfatizando, nesses campos, é a necessidade
de se entender como as diferenças que delimitam grupos, com base nestas
noções de pertencimento, se imbricam de modo importante com outras marcas,
especialmente as de gênero. Esse conceito é trabalhado, aqui, a partir
da definição (hoje já considerada clássica) de Joan Scott (1995). Nesse
contexto teórico, o gênero passaria a ser compreendido, com diferentes
implicações[4],
como sendo constitutivo de (e constituído por) múltiplas relações sociais
de poder. Isso implica em deslocar a análise das dimensões que poderiam
evocar a idéia reduzida de construção social de papéis/funções
do masculino e do feminino para uma abordagem muito mais ampla e mais
complexa que, nas palavras de Guacira Louro (1997, p. 24), permita examinar
tanto “as múltiplas formas que podem assumir as masculinidades e as feminilidades,
como também as complexas redes de poder que (através das instituições,
dos discursos, dos códigos, das práticas e dos símbolos...) constituem
hierarquias” sociais, justificadas e legitimadas a partir de (ou pela
articulação de) supostas diferenças/identidades entre os sexos. Compartilhando
essa posição teórica, minha análise
das representações em torno de uma cultura teuto-brasileiro-evangélica,
no período que abordo neste trabalho, mobilizou então, fundamentalmente,
elementos vinculados ao gênero, buscando entender como estes elementos
se articularam com noções correntes de raça alemã, cultura ou espírito
alemão (entendido como modo de ser, de agir e de pensar), religião,
classe e, de forma especial,
nacionalidade alemã. Na verdade, uma grande parte do que, nesse período
histórico, foi apresentado como sendo cultura ou espírito alemão passou
a ser tratado, depois da Segunda Guerra Mundial, como etnia.
Verena Stolke (1991) relata que é no contexto de repugnância ética às
teorias raciais, cujo efeitos mais dramáticos e visíveis foram as câmaras
de gás instaladas pelo nazismo, que o termo etnia ganhou visibilidade
e passou a ser usado com o sentido de enfatizar que grupos humanos se
constituem enquanto fenômenos históricos/sociais e não enquanto categorias
biológicas, cujos traços físicos hereditários estariam se misturando a,
e definindo também, características morais e intelectuais. Como se poderá
perceber ao longo do trabalho, existe um pressuposto de transmissão, também
“pelo sangue”, permeando a aquisição e preservação da cultura ou do espírito
alemão, de forma que os conteúdos
das noções de raça e etnia quase não se diferenciavam no período que examinei. Alguns
autores e autoras têm argumentado, inclusive, que mesmo que o conceito
de etnia venha sendo utilizado, na atualidade, para referir-se a características
como língua, religião, costumes, tradições, sentimento de lugar, dentre
outras, que são partilhadas por um povo específico, o seu uso no lugar
de raça não resolveu as questões mais centrais que aí estão em jogo (Suárez,
1991; Donald e Rattansi, 1992 e Omi e Winant; 1986, por exemplo). Isto
porque - se mantivermos o foco nas relações de poder que estão implicadas
no campo da cultura - o deslocamento
das diferenças que a raça situava na biologia para o terreno da cultura
acabou sustentando um “novo racismo”, onde as discriminações operam tomando
como base supostas incompatibilidades culturais; um processo que tem se
revelado com nitidez em um crescente número de conflitos entre nações
e grupos, sobretudo na Europa contemporânea. Com
base, então, nesses campos e conceitos, utilizei as estratégias da articulação
e da desconstrução como “ferramentas” para examinar publicações, veiculadas
no período de 1900 a 1940, pelo Jornal
Deutsche Post (Deutsche Post), pelo almanaque
Kalender für die Deutschen in Brasilien (Kalender) e pelo periódico Allgemeine Lehrerzeitung für Rio Grande do Sul (Lehrerzeitung), com
o intuito de discutir e analisar algumas das representações de gênero
que, no contexto desse grupo cultural, estiveram imbricadas na regulação
dos afetos e dos relacionamentos entre homens e mulheres, da estrutura
familiar e da divisão social e sexual do trabalho e do sistema produtivo
e econômico delimitando, assim, o funcionamento de algumas de suas mais
importantes instituições sociais. 1. A imigração alemã para o Rio Grande do Sul: contextualizando o tema A
imigração alemã para o Rio Grande do Sul teve início em 1824 e foi desencadeada,
basicamente, em função de duas políticas implementadas, no Brasil, pelo
Primeiro Império: a ocupação de territórios de fronteira, constantemente
ameaçados por invasões dos países platinos, no sul do País, e o estímulo
ao desenvolvimento de uma agricultura voltada para a produção de gêneros
alimentícios destinados ao abastecimento do mercado interno, num sistema
que deveria basear-se em pequenas propriedades e na força de trabalho
familiar. Encontra-se, aqui, uma das importantes particularidades desta
corrente imigratória: o fato dela ter-se constituído, no sul do País,
sob a forma de colonização[5],
o que levou a uma concentração étnica em áreas homogêneas e compactas
e modificou, profundamente, a estrutura fundiária e a vida rural nesses
estados. Isto diferenciou, também, o imigrante alemão que se instalou
no Rio Grande do Sul, daquele que se encaminhou para São Paulo ou para
estados de outras regiões brasileiras. Uma
afirmação que é registrada na maioria das histórias até aqui escritas
sobre a imigração alemã, no Rio Grande do Sul, é que Igreja, Escola e
a importante Imprensa que estas instituições sustentaram, foram centrais
na vida desses imigrantes e que elas estiveram profundamente envolvidos/as
com a produção, reprodução e reformulação dessa cultura e de seu sujeito
cultural, cuja identidade deveria comportar um harmônico, porém duplo
pertencimento: uma nacionalidade alemã e uma cidadania brasileira. Além
disso, a literatura que trata dessa temática usualmente sustenta uma idéia
de homogeneidade cultural que apenas seria perturbada, algumas vezes,
pela opção religiosa – católica ou protestante – enquanto língua, nacionalidade
e algumas características étnico-raciais naturalizadas – por exemplo “a
capacidade de trabalho alemã” - constituíam elementos homogênea e extensivamente
compartilhados, os quais foram (e ainda são) apresentados como sendo o
substrato da “cultura teuto-brasileira”. Uma
análise mais detalhada dessa literatura, no entanto, permite perceber
que os imigrantes alemães não
compunham um grupo homogêneo sob muitos outros aspectos, além do religioso.
Eram oriundos de diferentes regiões e estados, por vezes de diferentes
países; muitos deles eram camponeses e servos, outros tantos marginalizados
urbanos e excluídos do processo de industrialização que se iniciava na
Europa; alguns poucos podiam ser enquadrados como intelectuais em exílio
político e, como nos informa Jorge Luiz da Cunha (1995), nos primeiros
grupos havia ainda muitos indivíduos “socialmente indesejáveis”, libertados
de prisões sob a condição de que emigrassem. Nem mesmo a língua falada
no cotidiano era partilhada por todos no grupo, porque as diferentes regiões
e estados alemães de onde eles provinham adotam dialetos tão diversos
e diferenciados que, em alguns casos, quase constituem idiomas à parte.
Mas
existiam, também, mecanismos de diferenciação/hierarquização em ação no
interior do grupo, acionados pelas próprias instâncias implicadas na preservação
cultural como, por exemplo, “as diversas origens dos imigrantes”: Os primeiros imigrantes eram, mais ou menos na mesma proporção,
alemães-russos de confissão evangélica (...) e poloneses do império russo
e da Galícia, misturados a alguns poucos italianos (....) uma minoria
de suecos, a maior parte deles trabalhadores dos distritos das minas de
ferro, letões (batistas) e, aqui e ali, alemães do reino e dos Alpes austríacos
(...).O nível cultural mais elevado e o sentimento nacional mais sólido
encontrava-se entre os últimos (...). Eles constituíram comunidades fechadas
e responsabilizaram-se pela satisfação de suas necessidades não materiais.
(...) Também financeiramente eles se desenvolveram bem (Kaiserlich Deutsches
Konsulat, 29/06/1914, EZA, Bestand 5/2220). O
poder aquisitivo dos imigrantes, sua inserção nas relações econômicas
e de produção vigentes e o pertencimento de classe social que estas diferenças
usualmente sustentam, por sua vez, constitui um tema ainda bastante silenciado
nos estudos que tratam da temática da imigração, sobretudo naqueles que
se dedicam a estudar o século XIX. Floya Anthias e Nira Yuval-Davis (1995)
destacam o fato de que, nos contextos em que grupos de migrantes passam
a ser identificados (ou a identificar-se) com uma classe social ou fração
de classe, acaba-se assumindo a idéia de uma homogeneidade interna, a
qual repousa sobre o pressuposto da unidade étnico/racial e obscurece
as divisões de classe que funcionam
no interior do grupo; isto se aplica aos imigrantes alemães e de seus
descendentes no Rio Grande do Sul, que eram genericamente identificados
(e identificavam-se) como colonos e pequenos proprietários de terra. Marlise
Regina Meyrer (1997, p. 4) problematiza esse silenciamento quando acentua
o fato de que a “dimensão étnica” tem sido privilegiada quando se discute
a colonização alemã no Rio Grande do Sul. A autora argumenta que a sociedade
de imigrantes é analisada, muitas vezes, tomando-se como referência inicial
um “colono pioneiro, pobre e desbravador” que obteve sucesso “ao tornar-se,
comumente, industrial ou comerciante”, uma perspectiva evolutiva que se
aplicaria à população de origem alemã, indistintamente. Assim, as diferenças
porventura apontadas pelos/as estudiosos/as acabaram sendo subsumidas
pela homogeneidade cultural e/ou pela fraternidade
ancorada na idéia do pertencimento nacional compartilhado pelo grupo,
ou, ainda, na oposição entre o rural e o urbano, que se passou a enfatizar
com maior intensidade, a partir do final do século XIX. Este modo de escamotear
as marcas de classe, no entanto, está longe de significar que elas não
tivessem existido e que tenham sido irrelevantes ou desconsideradas na
dinâmica interna do grupo. De forma sutil, a origem de classe fundamentou
discussões feitas na imprensa da época para explicar, por exemplo, o descaso
de alguns núcleos coloniais para com a instituição escolar: O segundo grupo [em que podem ser classificados os que emigraram
dos estados alemães ] compreende aqueles que, em sua maioria, provém das
camadas mais pobres e do campesinato. Estes são os que migraram para o
sul da Hungria, do sul da Rússia (...) e das Américas do Norte e do Sul.(...).
Os imigrantes alemães, no Brasil, sofrem especialmente pelo fato de não
terem vindo, em número suficiente, famílias mais esclarecidas que fundassem
escolas melhores para seus filhos (Pfeiffer, Deutsche Post, 12/10/1914,
p. 1) ).[6]. Também
o gênero posicionava diferentemente os sujeitos no interior do grupo e
foi acionado para distinguir grupos entre si. Apresentadas como sendo
naturais e determinadas
por Deus e/ou pela natureza humana, as diferenças de gênero posicionavam
mulheres e homens nas comunidades, regiam as relações entre marido e mulher
e entre pais e filhos/as e definiam suas funções/deveres em casa, na família
e na propriedade familiar. As diferenças de gênero foram, pois, internamente
afirmadas como necessidade e como destino e é a sua inevitabilidade (que
ainda assim requer medidas educativas para que possa ser devidamente preservada)
que modula o “tom” que se adotava nos artigos dos jornais do período em
foco: As crianças não podem crescer na rua e nem nas plantações,
mas em casa, e a mãe deve saber sempre onde os seus filhos estão. Deitá-los
na cama à noite com oração e erguê-los dali pela manhã ensinando-os a
ficar com as mãozinhas postas, prestar atenção em sua tagarelice e responder
a ela é um dever materno indiscutível. É evidente que o pai deve dedicar-se
diariamente aos filhos, contar-lhes estórias ao anoitecer, brincar com
eles e educá-los...(Quando homem e mulher não querem ou não podem fazê-lo,
não devem contrair matrimônio) (Deutsche Post, 22/03/1907, p. 1). Como
se pode perceber, havia muitas diferenças nomeadas, silenciadas, legitimadas
ou negadas conformando o grupo internamente e delimitando suas relações
com outros grupos culturais. Passo a discutir, agora, de forma mais pontual,
como as representações de gênero estiveram implicadas com a definição
dessas diferenças/identidades (dentro e fora do grupo), constituindo-se,
portanto, em um dos elementos básicos de produção/reformulação da cultura
teuto-brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul. 2.
Cultura teuto-brasileiro-evangélica: “conteúdos” e “movimentos” da articulação
de gênero com nação, raça, classe social e religião As
ações e os efeitos da imbricação das representações de gênero com os processos
de diferenciação/identificação social e cultural podem ser percebidos,
como sugere Joan Scott (1995), nas representações que instituem símbolos
culturais e sustentam conceitos normativos de doutrinas religiosas, jurídicas,
educativas, políticas, dentre outras,
doutrinas estas que procuram expressar e regular as possibilidades
de interpretação dos sistemas simbólicos, disponíveis em culturas específicas.
Estas imbricações estão implicadas, também de forma constitutiva, nos
sistemas econômicos e nas organizações educacionais e políticas, de tal
forma que é o conjunto desses símbolos, processos, práticas e instituições
que “fabrica” as diferentes posições dos sujeitos e situa os diversos
grupos/indivíduos, de forma hierarquizada e desigual, nas sociedades em
que estão inseridos. Nessa
perspectiva, Floya Anthias e Nira Yuval-Davis (1995) chamam atenção, por
exemplo, para a centralidade das mulheres na reprodução de coletividades
nacionais e estados, ressaltando que esta centralidade engloba muito mais
do que a dimensão da reprodução biológica dos seus futuros membros. Está
incluída, aqui, a inserção da mulher no processo de construção/reprodução
das identidades culturais das crianças, pela mobilização/transmissão de
mitos, simbologias, práticas sociais e identificações que representam
o grupo em suas especificidades. Esta representação que posiciona a mulher,
fundamentalmente, como mãe da nação
(no sentido biológico e cultural) era uma das mais acionadas nesse (e
em muitos outros) contexto histórico-cultural: Se a mulher, como mãe, exerce uma influência decisiva sobre
a nação pelo fato de que a ela cabe construir a ponte espiritual entre
a criança e seu povo e, se ela é, como primeira transmissora da língua
materna, a “cuidadora” pré-destinada da consciência nacional, então a
sua inclinação [natural] para o cuidado e a conservação é de grande importância
para a existência da nação [alemã] (Pleimes, Deutsche Post, 7/11/1925,
p. 3). As
autoras acima referidas (op. cit.) seguem sua argumentação alargando o
significado desse conceito de mãe
da nação, ao detalhar as múltiplas dimensões dessa posição de “cuidadora”
que inclui, de forma importante, tanto a iniciação na língua materna quanto
a iniciação religiosa, mas que não se limita a elas. Ser mãe
da nação inclui conhecer, exercitar e incutir costumes e comportamentos
sociais e culturais adequados, modos apropriados de comer, se vestir,
cuidar da casa e do lar e, principalmente, fazer tudo isso, no âmbito
de casamentos aprovados e legitimados pela coletividade em questão. O
“casamento adequado” se constituía, pois, como uma instância-chave desse
processo de legitimação do pertencimento e das fronteiras raciais, nacionais
e/ou religiosas que delimitavam o grupo. Os argumentos que o sustentavam
referiam, fundamentalmente, a representações específicas de masculinidade
e feminilidade, as quais se encontravam, também, articuladas a poderosos
mecanismos que regulavam e fixavam possibilidades de vivência não só de
afetos, mas também da sexualidade: (...) lá fora, nos países além-mar, o homem alemão precisa
ainda mais de uma mulher alemã do que aqui na pátria querida. Ele precisa
dela desde o início, isto é, desde o momento em que passa a ter condições
de fundar um lar próprio, para que ela o ajude a constituir este lar da
forma mais alemã possível, se é que nele se pretende nutrir e cuidar da
germanidade; uma tarefa que cabe principalmente à dona de casa, uma vez
que o homem é muitas vezes obrigado a fazer concessões aos usos e costumes
de sua nova pátria, o que é poucas vezes exigido da mulher (...). Se não
há mulheres alemãs disponíveis, ele fará de uma mulher de outra raça a
companheira que lhe supre as necessidades. Neste caso ele logo perde também
a sua germanidade (...) (von Busch, Deutsche Post, 2/7/1924, p. 2) Talvez
seja importante mencionar que estas duas últimas citações foram retiradas
de artigos originalmente publicados em jornais alemães e transcritos pelo
Jornal Deutsche Post e que estes
pareciam ter o propósito de incentivar a emigração de moças alemãs para
os países nos quais se tinha uma concentração maior de imigrantes desta
“origem”. A argumentação desenvolvida sustentava que a idéia de que moças
e mulheres que emigram sozinhas correm riscos em terras estrangeiras
precisava ser reconsiderada, tendo em vista, exatamente, o seu posicionamento
como defensoras e perpetuadoras “naturais” da raça e da cultura. Buscava-se,
assim, ampliar as possibilidades de “preservação” da raça e da cultura
alemãs em solo estrangeiro, posicionando-se a mulher alemã como sendo
agente central desse processo. É
muito provável que, acionada
em situações como esta, a representação da mulher como mãe
da nação tenha tornado possível a desestabilização de outras representações
hegemônicas de gênero, sobretudo daquelas que posicionavam as mulheres ou como sendo mais frágeis e mais vulneráveis
aos “perigos do mundo” do que os homens ou, então, como sendo seres cuja
conduta necessitava de supervisão e controle familiar mais próximos e
permanentes. Ao incentivar (e legitimar) sua emigração para “destiná-las”
ao casamento, provavelmente abriram-se, para algumas delas, outras possibilidades
de viver a feminilidade longe
da Alemanha e da vigilância de suas famílias. Assim, elas puderam vir,
também, como governantas, como missionárias, como diaconisas, como enfermeiras/parteiras
ou como professoras; algumas devem ter terminado casadas e, por isso,
deixaram de exercer trabalho fora de casa; outras vieram viver novas experiências
e depois retornaram a seu país
de origem, enquanto que outras construíram espaços profissionais independentes
nos quais se mantiveram ativas por muitos anos, como foi o caso das irmãs
Engel, professoras alemãs que, em 1886, inauguraram uma escola feminina
em Novo Hamburgo, que está em funcionamento até hoje[7].
Estes outros modos de viver a vida, como mulher, devem ter provocado rupturas
e conflitos e desarticulado relações de poder vigentes, visibilizando
e fazendo circular, desta forma, outras representações de gênero. Uma
outra dimensão interessante de ser explorada, aqui, considerando-se o
desdobramento dos argumentos
de Scott (1995) e de Anthias e Yuval-Davis (1995), é
exatamente a generificação
dos símbolos que estruturam as relações de pertencimento racial/nacional
das coletividades sociais. Nesse sentido, tomarei como referência duas
concepções acionadas com freqüência
em poemas publicados no Kalender,
para desenvolver o argumento de que o gênero esteve implicado com a produção da noção de duplo pertencimento - nacionalidade/cidadania
- que constituiu uma das especificidades mais explicitadas desse grupo
cultural. Nestes poemas (e também em alguns artigos) as palavras Mutterland
e Vaterland articularam sentidos atribuídos às figuras de pai
e mãe com sentidos vinculados aos termos terra ou território possibilitando
a produção de duas próximas, porém distintas representações - terra natal
e pátria[8]
- as quais permitiram construir, aí, relações de pertencimento supostamente
complementares e harmônicas, ao mesmo tempo que diferenciadas e específicas.
As
noções que emergiam destas representações, que em português talvez pudessem
ser tomadas como sinônimos, foram produzidas no âmbito desse grupo, apresentando-se
a Alemanha como “terra-mãe” ou terra natal
e o Brasil como “terra-pai” ou pátria e isso permitiu instituir uma
oposição binária que operava incorporando
simetrias e assimetrias de gênero, naturalizadas nas culturas alemã
e européia a partir do século XVIII, nas oposições mulher/homem e mãe/pai.
As noções de harmonia e complementaridade que foram fixadas, por exemplo,
às distinções entre mulher e homem e pai e mãe na família alemã evangélica
foram metaforizadas de forma a representar a relação entre a nacionalidade alemã e a cidadania brasileira como
sendo uma relação desejável, produtiva e harmônica de dois entes distintos
e complementares. É este “casamento” entre terra natal e pátria que deveria
gerar o sujeito e a cultura
teuto-brasileira, cujas vozes se faziam ouvir assim: Nós queremos prestar bons serviços à nossa nova pátria [Vaterland],
queremos mesmo dar-lhe o melhor que temos, mas sem copiar costumes brasileiros
cujas peças não foram cortadas sob medida para o nosso corpo, porque isso
poderia nos fazer vestir um “terno de loucos”. Nós queremos aprender a
língua brasileira o melhor possível, porque ela é a língua das nossas
leis e do nosso comércio; mas nós queremos utilizar a língua materna alemã
para expressar as nossas mais profundas e pessoais percepções, nossas
melhores motivações de vida, ela é a língua de nosso coração (Dir. Meyer,
Kalender, 1909, p. 168. Grifos meus) Pode-se
observar, nesta citação, como concepções de gênero específicas foram corporificadas
nos símbolos e passaram a “moldar”
e regular o pertencimento dos sujeitos. Assim, o Brasil, cuja representação
se articulava em torno da idéia do homem/pai, é o país onde se vivia,
se trabalhava e se garantiam os meios econômicos e materiais não só para
a sobrevivência, mas para o progresso social; ele era o provedor da “família”
de imigrantes e a ele se atribuía a autoridade de ditar (e cobrar) deveres
e direitos; é ele quem conferia a cidadania ao sujeito, ou seja, concedia-lhe
o registro em que o reconhecimento
da paternidade oficializava sua condição de “filho legítimo” do país.
O exercício desta cidadania vinculava, nesse contexto, o respeito e a
obediência às leis vigentes ao usufruto dos direitos de liberdade e igualdade
política. A língua portuguesa era, então, a “língua do pai”
que produzia a lei, regulava
a produção e a ordem social e erigia a ponte que ligava o grupo ao seu
entorno. A
Alemanha, representada como mulher/mãe,
“gesta e dá à luz” às marcas que constituíam o grupo em sua especificidade
cultural; a ligação que se tinha com ela se inscrevia no plano da “natureza
biológica” dos seres humanos e era, pois, fruto da inexorabilidade dos
acontecimentos naturais; era ela quem nutria a cria, produzindo/reproduzindo
o seu alimento cultural (Kultur,
no sentido que lhe atribui Elias[9]);
ela governava a intimidade e o mundo das emoções e corporificava o lar (das
Heim) no sentido que este assumiu com a emergência das sociedades
burguesas - o lugar protegido
e seguro (feminino) em que a família deveria viver as suas relações reguladas
pelo afeto, longe das preocupações políticas e econômicas que constituem
o mundo (masculino) exterior. A língua alemã era, então, a “língua da
mãe” que transmitia/construía os valores culturais e a crença religiosa,
modulava os sentimentos mais íntimos e os afetos familiares. Assim,
penso que se pode dizer que, no contexto desse grupo, o sentido da nacionalidade
se constituiu, em grande medida,
com base em representações do feminino, produzindo uma relação em
que o afeto nutre, preserva e
faz crescer o sujeito dotado de sentimentos, emoções e valores culturais
particulares enquanto que a cidadania se fundiu com representações
do masculino e constituiu uma relação em que o afeto provê, disciplina, cobra, pune e premia, no sentido de desenvolver
o sujeito político, responsável, racional e útil, produtivo do ponto de vista social. As
representações de gênero que permitiram produzir esse “matrimônio” entre
nacionalidade e cidadania fundamentam-se em noções de diferenças
naturais e complementares entre mulheres e homens, que foram concebidas e articuladas
nos contextos alemão e europeu, em diferentes discursos e processos históricos.
Dagmar Herzog (1993) e Andrea Bieler (1994) indicam que foi, sobretudo,
o pressuposto iluminista da existência de um sujeito autônomo, unitário
e universal que operou o reordenamento das relações de poder que regulavam
as relações de gênero, até o século XVIII. A argumentação de Herzog (op.
cit.) permite entender que as
relações de gênero até então vigentes no contexto europeu, fundamentavam-se
em pressupostos em que se representava
a mulher como sendo um homem incompleto, um homem a quem faltava algo
e este pressuposto localizava a sua inferioridade e subordinação no plano
das semelhanças que compartilhavam. O pensamento
filosófico iluminista passaria a representar o mundo a partir da operação
de dicotomias ou oposições binárias e é no contexto desse pensamento que
se instituiu a dicotomia que posicionou homens e mulheres como sendo essencialmente
diferentes e, necessária e naturalmente, complementares. A inferioridade
e a subordinação passaram, desde então, a estar ancoradas nas diferenças
que os separavam. Desta forma, o pressuposto filosófico da diferença
essencial e complementar, ironicamente, forneceu argumentos fixados no
plano da natureza humana pela oposição natureza/cultura, para delimitar
e restringir naturalmente a universalidade da igualdade e liberdade dos seres humanos, que o próprio Iluminismo instituiu
como premissa social e política básica. Com estas delimitações, as representações
do sujeito humano universal podiam incluir, unicamente, o homem burguês,
europeu, branco, heterossexual e cristão que o concebeu.
O que estou procurando enfatizar aqui pode, pois, ser entendido como
sendo a análise de ações e efeitos
particulares da articulação entre representações que esta oposição homem/mulher
mobilizou e instituiu, com representações que mobilizaram outras oposições
básicas nesse contexto, como as que envolviam as
noções de raça e nacionalidade. Tais
ações e efeitos podem ser buscados ainda, no que se refere ao contexto
histórico que circunscreve a imigração alemã para o Brasil, na agricultura
de base familiar que organizou o sistema de produção nas regiões de colonização,
nos discursos científicos que permitiram “biologizar” as políticas de
imigração e no discurso religioso
do Protestantismo Luterano que regulou e normalizou uma ampla dimensão
da vida nas colônias. Assim,
se retomarmos as políticas de imigração brasileiras que, nos séculos XIX e XX, “afirmavam o interesse
do País por imigrantes agricultores que fossem assentados em colônias,
tendo como base fundiária [e econômica] a pequena propriedade [e o trabalho]
familiar” (Seyfert, 1991, p. 166), veremos como estas políticas, que buscavam
incentivar a imigração de famílias de camponeses ou artesãos europeus
(de preferência alemães, pelas suas qualificações “naturais” como agricultores),
articularam gênero com raça e classe social Este argumento pode ser melhor compreendido a partir da análise das
representações de gênero que permeavam a organização da família e o processo
de trabalho destes segmentos sociais, no contexto dos estados alemães.
Maria
Luiza Renaux (1995, p. 8 e seg.), trabalhando com a pressuposição de uma
“cultura alemã trazida na bagagem dos imigrantes”, descreve, em linhas
gerais, a instituição do casamento e a dinâmica das relações familiares
e de trabalho dentro dos principais grupos
que compunham essa sociedade no período das migrações. Ela
se detém, de modo especial, na descrição das famílias de médios e
pequenos agricultores, trabalhadores rurais e artesãos, uma vez que foram
estes os segmentos que compuseram grande parte dos contingentes que migraram
para o sul do Brasil. A
família que se apresentava nesses extratos sociais, ainda durante o século
XIX, não é a família nuclear a que nos referimos hoje, uma vez que ela
comportava, muitas vezes, mais de uma geração vivendo sob o mesmo teto
e, no caso dos proprietários de terras maiores e dos artesãos, incluía
também seus empregados e aprendizes. A par de diferenças temporais, profissionais
e econômicas que estiveram implicadas
com a produção das especificidades de cada um desses grupos sociais,
vamos encontrar, genericamente, uma família que, na Alemanha, esteve legalmente
estruturada em torno da (indiscutível) autoridade paterna, a qual englobava/articulava,
até fins do século XIX, as decisões que aglutinavam, ao mesmo tempo, as
dimensões familiares e econômicas expressas nos conceitos de lar (Heim) e de casa (Haus).
Comentando
o Código Civil que entrou em vigor, naquele país, em janeiro de 1900,
Renaux (op. cit.) refere que, mesmo frente às profundas mudanças sociais
que a industrialização e a entrada formal das mulheres no mercado de trabalho
vinha provocando já durante o século XIX, ele deixou inalterado, até 1953,
o modo pelo qual se concebia as relações conjugais e familiares desde
as sociedades feudais: O patriarca podia decidir, por si só, sobre todas as questões
de âmbito doméstico (...). O cônjuge podia rescindir o contrato de trabalho
de sua mulher, mesmo contra a vontade dela. Podia, também, administrar
e usufruir da fortuna da esposa e da renda de seus bens, o que eqüivale
a dizer que, se a mulher possuísse bens próprios, somente seu marido podia
dispor deles (Renaux, 1995, p. 11-2). Considerando-se,
de modo mais pontual, as famílias camponesas e artesãs, vamos encontrar,
aí, algumas das razões que devem ter motivado, nas políticas de imigração,
a defesa do sistema de produção familiar em pequenas propriedades rurais,
que deveria constituir a base do processo de colonização com imigrantes
europeus, no sul do Brasil.
A autora refere-se ao conceito de “casa global” para definir a unidade
de produção em que se agregavam, para morar e trabalhar sob o mesmo teto
e para o mesmo “caixa”, a família strictu
sensu e todos os que participavam do sistema produtivo doméstico,
e a leitura de seu livro permite dizer que este sistema produtivo dependia
fundamentalmente das relações de gênero vigentes. A casa global rural
era dirigida tanto pelo “pai da casa” (Hausvater)
quanto pela “mãe da casa” (Hausmuter),
que eram, ambos, responsáveis pela produção, sendo que esta responsabilidade
estava delimitada pelo exercício
desigual de poder de mulheres e homens, no âmbito da unidade produtiva.
Quando
a propriedade rural gerava o suficiente para garantir o sustento da família,
o campo de atuação da mulher incluía o cuidado com a casa, a educação
dos filhos, o cuidado com jardim, horta e animais domésticos (principalmente
as vacas leiteiras), a plantação do linho e a sala de fiação, o beneficiamento
do leite, a comercialização dos produtos e o arrendamento das terras,
bem como a supervisão de eventuais empregados que estivessem envolvidos
com estas atividades. Esta era a concepção de trabalho doméstico “naturalmente” vinculada ao feminino que
instituía, aí, uma subordinação de gênero bem diversa daquela que passou
a vigorar no meio urbano, com a consolidação da burguesia e da industrialização,
exatamente porque nela estavam entrelaçadas as relações afetivas e de
reprodução biológica e social com a esfera da produção econômica. Ao pai
cabia a autoridade máxima e ele determinava não apenas o transcorrer de todo o ritmo de trabalho, como
também a conduta da mulher, dos filhos e dos empregados [quando se dispunha
deles] ...qualquer alteração na rotina doméstica cabia unicamente à decisão
paterna. No máximo o que se podia esperar da mulher era um poder indireto,
via influência sobre as decisões do marido (Renaux, 1995, p. 19). As
representações de mulher e de
homem que emergem da análise desta autora têm em comum o “amor ao trabalho”
manual e pesado como pressuposto básico de vida, a sobriedade e a honestidade
como principais valores morais e a adoção de um rígido código de conduta
e divisão social, que “amarrava” de forma quase que definitiva os indivíduos
e suas famílias aos grupos sociais em que haviam nascido. Ao homem agricultor
cabiam os cuidados mais pesados com a plantação e os pastos e era ele
quem detinha a autoridade global sobre a propriedade. O casamento e a
maternidade (nesta ordem) constituíam o destino supremo e inexorável das
mulheres e não realizá-lo colocava em risco, com o avançar dos anos, a
própria possibilidade de sobrevivência. Elas eram representadas como “extensão”
dos homens, primeiro de seus pais e depois de seus maridos (ou de um de
seus irmãos, quando permaneciam solteiras); tinham jornadas de trabalho
ainda mais duras do que as deles, uma vez que estavam profundamente inseridas
no processo de trabalho da propriedade rural ou da corporação (o domínio
masculino que elas compartilhavam como ajudantes qualificadas), ao mesmo
tempo que respondiam, sozinhas, pelo seu
“trabalho natural” (casa e filhos). Estas representações de gênero
emergem, com freqüência, também do material que examinei: Os trabalhos mais pesados, como derrubar mato, roçar, lavrar
com bois e operar com a carroça eram reservados aos homens e eles os aceitavam
com naturalidade. (...) No que se relacionava com a criação de animais,
as mulheres tinham sob seu cuidado as vacas. Cabia-lhes ordenhar e desnatar
o leite. Tratar os porcos, os bois e os cavalos era serviço dos homens.
Os terneiros geralmente ficavam sob o cuidado das crianças. Quando o homem
tinha completado o tratamento dos “seus” animais, depois de ter voltado
da roça com a mulher que o auxiliara na colheita, na capina ou na plantação,
então ele estava “pronto”. Assim, tomava um trago, lavava os pés e ocasionalmente
trocava de camisa e sentava para ler o jornal, conversar ou, simplesmente
para descansar. Neste tempo, a mulher tinha ainda de preparar a comida;
por a mesa; lavar a máquina para o desnatamento do leite; convidar para
vir à mesa; lavar a louça; arrumar a cozinha; preparar o café para o dia
seguinte e planejar o próximo almoço. Aos sábados, além das tarefas habituais,
competia à mulher lavar a casa e a cozinha. (...) Quando completava o
serviço da cozinha, a mulher pegava o cesto de roupa para remendar ou
lavar. Ela não ficava nunca sem trabalhar (...) eu nunca sentia que tudo
isso que minha mãe fazia era trabalho também. (...)Eu nunca tinha visto
minha mãe ficar sem fazer alguma coisa (Altmann, 1991, p. 24-5. destaques
meus). Este
depoimento autobiográfico do autor permite perceber, para além da descrição
de papéis/funções de mulheres e homens no contexto desse grupo cultural,
a extensão e a profundidade da generificação do processo de produção
agrícola na pequena propriedade rural. Rearticulada para incluir as especificidades
da vida cotidiana no novo contexto, a representação hegemônica de “trabalho
agrícola do campesinato alemão”, desdobrada em suas dimensões de “trabalho
de homem” e “trabalho de mulher”, está em ação aqui e
a sua naturalização como “universal” da cultura e da raça, contribuiu
muito para construir as idéias
em torno da pujança da colonização européia no sul do Brasil. Tomaz
Tadeu da Silva (1997, p. 3) usa esta noção de “universais da cultura”
para referir-se aos sistemas de significação cuja pretensão consiste em
expressar um determinado grupo humano e social, em sua totalidade. É muito
provável, então, que estas representações universalizadas tenham engendrado
também, em detalhes objetivos, as políticas que incentivaram e viabilizaram
a implementação desta colonização, determinando por exemplo: o tamanho
dos lotes e os benefícios financeiros concedidos que, em princípio, não possibilitavam
(e não previam) a contratação de empregados ou a posse de escravos; a
preferência pela imigração de famílias; os impedimentos legais para a
introdução de escravos nas regiões de colonização; a localização das colônias
em terras desabitadas e distantes de centros urbanos. Tudo isso dificultava
aos imigrantes a adoção de atitudes e/ou práticas que desagregassem o
processo de trabalho familiar,
como por exemplo, encontrar ou aceitar outras possibilidades de emprego. Anthias
e Yuval-Davis (1995) chamam atenção para um efeito importante da articulação
entre gênero e classe social no contexto do sistema de produção, que pode
ser considerado também aqui, qual seja, o de que é preciso compreender
as formas pelas quais a inserção da família no processo de produção (com
destaque para o posicionamento da mulher no contexto dessa articulação)
está implicada com “o lugar” que o grupo
dos teuto/brasileiros veio a ocupar na economia e na sociedade gaúcha,
considerando-se os diferentes grupos culturais que a compunham. Eu diria,
ainda, que o emprego da força de trabalho familiar, em primeira instância,
deve ter contribuído muito para construir a idéia, bastante difundida,
de que este grupo se constituía como uma “sociedade sem divisões de classe”,
uma vez que a clássica oposição entre patrões e empregados não se fazia
visível, pelo menos nas primeiras décadas da colonização. É
preciso, no entanto, retomar a tese (já citada anteriormente) de uma homogeneidade
cultural construída pelas representações,
para pontuar que mulheres, homens e crianças que compuseram os diversos
grupos de migrantes não provinham todos dos mesmos estados alemães, não
eram todos camponeses ou artesãos, não dispunham dos mesmos recursos financeiros
para reiniciar a vida nas terras “além-mar” e nem professavam, todos,
a mesma crença religiosa. Isto implica considerar que a generificação
das políticas de imigração e do processo de produção agrícola nas regiões
de colonização alemã, no sul do Brasil, foi produzida pela articulação
de especificidades (regionais, de segmentos de classe, de gênero e religião)
e as representações que a viabilizaram passaram a funcionar nesse outro
contexto, dentro e fora do grupo e com diferentes efeitos, como sendo
extensivamente compartilhadas pelo povo alemão. Assim,
as representações de gênero acabaram por configurar-se como
argumentos poderosos tanto da tese da “preservação e transmissão da
cultura” quanto da tese da “degeneração social e cultural decorrente da
mistura de raças” e estiveram coladas, de forma importante, aos processos
de diferenciação/identificação que produziram a cultura teuto-brasileira.
Um texto intitulado “Lembra-te de que és alemão”, em que são elencadas
as vantagens políticas e econômicas que a preservação da germanidade traria
ao Brasil, permite observar como a oposição homem/mulher funcionou produzindo,
explicitamente, diferenças,
identidades e desigualdades: O colono [homem] descendente de alemães é uma pessoa extraordinariamente
diligente e esforçada e segue seu difícil caminho de forma correta e legítima,
plantando suas batatas, milho, feijão, mandioca e saldando seus impostos
-- muito consideráveis -- conscienciosa e pontualmente. O que ele pode
economizar ele guarda e com o tempo garante um certo bem-estar. Então
ele constrói um belo e aconchegante lar e se preocupa em não sofrer na
velhice ou tornar-se um incômodo para outros e em garantir que os filhos,
quando crescidos, tenham terra suficiente para, a exemplo do pai, trabalharem
com sucesso e serem felizes. Ao lado dele trabalha, incansável e competentemente,
a mulher, abençoada com a mesma alegria pelo trabalho, pelas mesmas preocupações
com o cotidiano. Ela trabalha na casa e no pátio, cozinha, assa, lava,
cuida dos animais e, se após esse trabalho em casa ainda lhe sobra tempo,
ela está lá fora na roça, ombro a ombro com o marido e com a enxada na
mão. E essa colaboração da mulher educada desde a infância para se mexer
e trabalhar, é um fator essencial para a conquista da fortuna dos colonos
alemães (Dr. M. F., Kalender, 1924, p. 42-3). Muitos
aspectos importantes para a discussão em torno da generificação da cultura
podem ser elencados a partir desta citação. Em primeiro lugar, articulam-se
nela múltiplas especificidades (de gênero, culturais, religiosas e econômicas)
que, combinadas de formas diversas, passam a representar o ser homem e o ser mulher
neste grupo de imigrantes. Tal representação descola-se das condições
concretas de sua produção (por exemplo, ter estado vinculado ao campesinato
alemão e/ou ser e viver no mesmo lugar, na mesma época, da mesma forma
e com os mesmos resultados a condição de pequeno agricultor no Rio Grande
do Sul) e passa a identificar um jeito particular de viver a masculinidade
e a feminilidade como sendo a
masculinidade e a feminilidade
compartilhada por todos os elementos do grupo. Silva (1997, p. 16-7) permite
entender melhor este processo de transformação do particular em marca
compartilhada pelo conjunto do grupo, ao acentuar que “aquilo que um grupo
tem em comum é resultado de um processo de criação de símbolos, imagens,
memórias, narrativas, mitos que ‘cimentam’ a sua unidade, que definem
sua identidade (...) esse é um campo atravessado por relações de poder”
e esta afirmação reforça a necessidade de se vincular a discussão em torno
das representações (já constituídas) ao processo de sua produção. Em
segundo lugar, estas representações que se universalizaram passaram a
regular e a delimitar, concretamente, as possibilidades que os sujeitos
teuto-brasileiro-evangélicos tinham de viver a própria vida, ou seja,
elas marcaram instituições e práticas sociais e culturais que foram centrais
para a formação dos sujeitos nesse grupo: a família devia constituir-se
e funcionar de formas “adequadas”, a escola se organizou em torno de determinados saberes sociais e
privilegiou determinados comportamentos e condutas que lhes deviam ser
ensinados, a Igreja regulou
suas consciências e, com e a
partir destas representações, pavimentou os caminhos que podiam levá-los
a Deus. Assim, as representações hegemônicas de gênero (bem como as de
raça, classe e nação) fixaram
os padrões a partir dos quais se instituiu o que é ser homem e mulher,
como se educam meninos e meninas e, por extensão, o que podem/devem fazer
da/na vida. Essas representações delimitaram
seus espaços e posições e com isso operacionalizaram a
hierarquização entre ambos e, ao instituírem as normas e inscrevê-las
na natureza dos sujeitos, passaram a mobilizá-las como sinais de diferenciação
intrínsecos e imutáveis. Ernesto
Niemeyer (Kalender, 1938), discutindo
as diferenças entre mulheres e homens e as suas funções sociais, vai buscar
em Deus e na natureza os argumentos que explicam o caráter de suas relações: O homem é dotado de criatividade. Ele elabora idéias novas.
Ele descobre novas armas e novos utensílios. Ele descobre novas terras
e constrói para si um novo lar. Mas ele é volúvel. Em sua ânsia de criar
coisas novas ele não observa suficientemente o que já existe. Então ele
precisa da mulher com a sua constância, como mantenedora dos tesouros
espirituais da humanidade(...) Com uma memória extraordinária ela conserva
tudo que o ser humano conseguiu em termos de boas maneiras, bons costumes
e tradições.(...) Sempre haverá homem e mulher, uma parte que gera e outra
que concebe. O homem gera e a mulher concebe. Ela cultiva o concebido
e lhe dá forma.(...) O que é válido para o corpo, portanto, também o é
para o espírito. Também aqui, o espírito do homem dá o conteúdo e o da
mulher a forma...(Niemeyer, Kalender, 1938, p. 120-1) Se,
num primeiro momento, nos reencontramos aqui com
elementos que se articulavam para instituir o símbolo de mãe da nação,
confrontamo-nos, também, com seres que são apresentados como tendo capacidades
diversas (inconstância / constância, criatividade / memorização, conteúdo
/ forma, geração / concepção, produção / conservação). A natureza excludente
e, ao mesmo tempo, complementar das capacidades que estruturam estas oposições
binárias não esconde a valorização social diferenciada que elas instituem
e nem as relações de poder que colocam em funcionamento. A partir desta
citação pode-se argumentar que as representações de gênero se articulavam,
no contexto deste grupo, em torno de “universais” de distinto alcance:
se, por um lado, elas referiam a
“todos os homens e mulheres do mundo” e, a partir daí, dividiam o
grupo internamente, por outro, elas produziam as figuras do
homem e da mulher teuto-brasileiro-evangélico/a,
que passaram a ser acionadas como importantes símbolos de diferenciação,
na relação com outros grupos culturais. A mulher
(descendente de) alemã representou e corporificou, nesse contexto,
um elemento central desse processo de diferenciação, uma vez que
a oposição mulher alemã/mulher brasileira ou mulher germânica/mulher
romana encarnava muitas das características mobilizadas nos discursos
em que a laboriosidade, o sucesso financeiro e o caráter escolarizado
e religioso do grupo eram contrapostos à indolência, à pobreza, à falta
de instrução e de capricho atribuídos, de forma isolada ou em conjunto,
aos demais grupos com que conviviam: Deixar que a mulher trabalhe contradiz o sentimento de cavalheirismo
que cada brasileiro desenvolve em relação ao sexo frágil. A mulher é a
jóia da casa, mimada pelo marido que se sentiria ofendido se alguém esperasse
dela um trabalho sério.(...) elas não só não entendem, de fato, o verdadeiro
trabalho como considerariam ofensa à sua honra feminina caso lhes pedissem
para trabalhar. O trabalho existe apenas para o homem. A mulher é durante
toda a sua vida a senhora, a patroa, a verdadeira filha de um velho povo
de senhores. Esse é um valor de todo o povo brasileiro e estende-se até
as mais baixas camadas da população. É preferível morrer de fome e ficar
em farrapos, mas bancar o grande senhor, do que trabalhar e com isso,
um dia, tornar-se realmente um senhor. ( Dr. M. F., Kalender, 1924, p.
43). Nessas
representações, a mulher foi posicionada como a salvação ou
a perdição do homem alemão, da família alemã e, por extensão, da germanidade.
Este posicionamento estava intrinsecamente vinculado à instituição do
casamento em que a adequação e a
legitimidade era conferida àquele que unia um homem alemão a uma mulher
alemã. Quando a mistura ocorria,
o casamento menos adequado era
aquele que unia um alemão a uma mulher de outra raça, porque nele se perdiam
“com certeza” a língua e, provavelmente, também a fé, uma vez que o Protestantismo
Luterano era uma religião racializada nesse momento histórico. O casamento
chegava a ser qualificado como desastre quando o jovem leva para casa uma romana. Este vai sozinho para a
roça, planta, limpa e capina sozinho, ele se mata de trabalhar e trabalhar,
pois com o sangue alemão ele herdou, também, a diligência. Mas, sozinho,
ele não consegue nada. Falta a metade. O trabalho o sufoca. Por fim ele
se desespera, joga a enxada no chão e abandona a esperança de uma vida
melhor. Aborrecido, ele agora planta apenas o necessário para satisfazer
um escasso sustento. Dívidas o pressionam. A bela casa com a qual sonhou,
com paredes brancas e janelas de vidro, como tinham os seus pais, não
é construída. O rancho coberto com grama e com as paredes de argila, que
presenciou a alegria de sua lua-de-mel será o asilo de sua velhice, onde
ele, consciente de ser um fardo para seus filhos, encontrará o descanso
eterno.(Dr. M. F., Kalender, 1924, p. 43). Uma
das diferenças mais acionadas no contexto da oposição mulher alemã/mulher
brasileira fundamentava-se,
no contexto deste estudo, em
concepções que dimensionavam, de forma diversa, o trabalho doméstico “naturalmente”
desempenhado pela mulher no âmbito destes grupos culturais. Se, por um
lado, a delimitação do que seja doméstico
remetia, no caso dos teuto-brasileiros, à concepção de trabalho do campesinato
alemão é preciso, por outro lado, buscar entender a sua relação com o
Protestantismo Luterano e isto remete à compreensão da articulação de
gênero com religião, a última dimensão a ser ainda discutida no âmbito
deste trabalho. A
Reforma Protestante colocou em xeque
uma ética religiosa medieval católica
que estava, fundamentalmente, centrada no pressuposto de uma vida
que só poderia tornar-se plena depois da morte e fora da terra e o fez,
reposicionando os sentidos que, até então, definiam o que se entendia
por sagrado. Com Lutero a idéia
de sagrado passa a incluir, de forma importante, também aquilo que está
no mundo e isso constitui o que ele chama de dimensão temporal ou
regime secular. Este reposicionamento está estreitamente ligado a um princípio
teológico importante para o Protestantismo, que se expressa pelo conceito
de Beruf e sua tradução mais próxima pode ser vinculada ao termo vocação
ou chamado [divino]. Max Weber (1967) explica que esse princípio incorporou
ao trabalho secular e cotidiano, independentemente de sua natureza, uma
dimensão quase que religiosa (sagrada, portanto) e fixou à noção de cumprimento
do dever, no contexto desse trabalho, o mais alto grau de moralidade que
o indivíduo podia/devia atingir: Nesse conceito de vocação manifestou-se o dogma central de
todos os ramos do protestantismo (...) segundo o qual a única maneira
de viver, aceitável para Deus, não estava na superação da moralidade secular
pela ascese monástica, mas sim no cumprimento das tarefas seculares, impostas
ao indivíduo pela sua posição no mundo (op. cit., p. 53). Ocorre
que alguns argumentos desenvolvidos por Lutero, a meu ver, generificaram
de forma explícita esse conceito
de Beruf e isso se pode perceber,
por exemplo, em sua “Carta aos
Conselhos de todas as Cidades da Alemanha” (1995, p. 318) onde ele acentuava
que “o mundo precisa de homens e mulheres excelentes e aptos para manter
seu regime secular, para que
então os homens governem o povo e o país, e as mulheres possam governar
bem a casa, educar bem os filhos e governar a criadagem”. Governar a casa tem, nestes textos de Lutero, um sentido que se aproxima do conceito
de economia na filosofia aristotélica,
um termo que, aí, se refere à administração
doméstica e se contrapõe à política, ou seja, à arte de administração
da cidade ou do Estado. Ao associar isto com outras dimensões da Teologia
Luterana, como por exemplo as interpretações que o reformador faz dos
eventos da criação e da expulsão do paraíso, pode-se entender o governo
da casa como sendo um dever, sagrado para a mulher, que implicava em assumir
a responsabilidade por todas as tarefas que pudessem impedir o homem de
concentrar-se, com todas as suas forças, em seu próprio trabalho. Desta
forma, a ressignificação de trabalho como Beruf
teve implicações bastante diferentes para mulheres e homens: para elas
a sacralidade foi traduzida como a capacidade de providenciar as condições
para que os homens pudessem realizar, de forma plena, a sua vocação. Na
verdade, o que se depreende da leitura de autoras como Barbara Stolze
(1995), Andrea Bieler (1994) e Hannelore Erhard (1993) é que o próprio
casamento é profundamente ressignificado com a Reforma Protestante. Lutero
teria representado (e vivido) este sacramento como um mecanismo que possibilitava
o controle do caos social e individual porque ele instituía um lugar para
o qual se canalizavam, de forma segura e ordenada, as emoções
e a satisfação de todas as necessidades
básicas espirituais e biológicas (inclusive a satisfação dos instintos
sexuais). A instituição da casa
pastoral conferiu ao casamento e à família um estatuto sagrado e anulou,
ao mesmo tempo, o princípio de que o celibato e a castidade (os fundamentos
da vida monástica católica) constituíssem instâncias privilegiadas de
exercício da fé. A interpretação
que Lutero fez das escrituras, a partir da qual elaborou sua perspectiva
teológica das relações entre os sexos, articulada a esta ressignificação
do matrimônio, acabou por produzir a representação de que casamento e
maternidade biológica constituíam a vocação (Beruf)
natural e abençoada da mulher, uma perspectiva que esteve profundamente
implicada, por exemplo, com a produção das especificidades da identidade
docente que se construiu no contexto desse grupo cultural. É
Hannelore Erhard (1993, p. 77-8)) quem refere que o princípio básico que
fundamentava o matrimônio luterano, qual seja,
o de um organismo cuja cabeça era constituída pelo homem e cujo corpo
correspondia à mulher, foi elaborado a partir de uma interpretação particular
de várias passagens bíblicas, destacando-se, em especial, duas delas.
O evento da criação teria fornecido
o argumento de que, no mundo, apenas o homem havia sido criado à imagem
e semelhança de Deus e isto lhe conferia uma posição de domínio sobre
a mulher, criada a partir de uma costela retirada de seu corpo. Nesta
argumentação, a relação da mulher com Deus era mediada, justamente, por
sua subordinação ao ser que, na terra, mais se assemelhava a Ele. O evento
da expulsão do paraíso teria acrescentado a estas concepções acerca
da relação de mulheres e homens, a dimensão de formas distintas de expiação
do pecado original: Deus teria destinado ao homem o trabalho e a responsabilidade pela sobrevivência e à mulher a reprodução
e o cuidado da espécie. A
autora refere que o conjunto destas interpretações forneceu as bases da
hierarquização que se fortaleceu, em outros contextos históricos, com
a oposição entre produção/reprodução, trabalho remunerado/ não remunerado
e, ainda, entre público e privado.
Uma hierarquização cuja inscrição na estrutura teológica do Protestantismo
Luterano se deu de forma tão poderosa que seus efeitos ainda puderam ser
visibilizados na luta que as mulheres protestantes travaram, na Alemanha
e no Rio Grande do Sul, pela conquista de espaço profissional tanto no
magistério quanto no pastorado,
desde o século XIX até meados do século XX; um processo cuja discussão
não cabe neste artigo mas que analisei extensamente em minha tese de doutorado. Algumas
considerações finais Talvez
fosse importante começar estas “considerações finais” pontuando que este
trabalho não foi norteado pela pretensão de descobrir e/ou descrever as
“verdadeiras” características ou “a essência” da cultura teuto-brasileiro-evangélica
e das representações de gênero que nela se produziram e/ou se fizeram
circular. Trabalhei com um referencial teórico que aponta, justamente,
para a impossibilidade da existência de verdades e/ou de essências universais
e transcendentes. No entanto, ao sujeitar-me a esse referencial teórico,
que coloca noções como pluralidade, contingência, instabilidade, diferença
e desigualdade no centro dos processos de produção de culturas e de suas
identidades sociais, foi possível explorar, exatamente, a heterogeneidade
e a diversidade de interesses e de conflitos que permearam a produção
de representações de gênero em sua articulação com outros importantes
marcadores sociais, no contexto desse grupo cultural, no período estudado
e esse é, em minha avaliação, um dos pontos fortes desse trabalho. Nessa
perspectiva, a discussão feita aqui tornou possível, então, entender alguns
dos mecanismos e estratégias que estiveram implicados com a produção de
representações de gênero específicas, no âmbito desse grupo cultural.
No processo de produção destas representações determinadas especificidades
parecem ter sido universalizadas e passaram a funcionar como se fossem
“atributos”, naturais e imutáveis, compartilhados por todos os homens
e mulheres do grupo. Foi possível perceber, também, que as representações
hegemônicas de gênero, em ação no contexto estudado, tanto foram produzidas
pela articulação contingente de vários marcadores sociais e no interior
de diferentes processos históricos e políticos quanto estiveram imbricadas
na constituição dos sistemas simbólicos, das instituições e das práticas
sociais e culturais que produziram (e modificaram), ao longo do tempo,
esta cultura teuto-brasileiro-evangélica e
as identidades sociais que ela colocou em circulação, no contexto
e no período estudado. Desse
modo, também procurei colocar em funcionamento, nesta análise, uma afirmação
que, em nosso meio acadêmico, ainda tem ficado bastante no plano das intenções
ou das recomendações, quando trabalhamos com conceitos como gênero, classe,
raça e/ou nação, dentre outros. Ou seja, procurei fazer, aqui, uma análise
que buscou compreender a produção de determinadas representações de gênero
num determinado tempo e lugar, pela sua articulação/confronto com diferentes
marcadores sociais: nação, raça, religião e classe social. Mesmo que
tivesse ampliado o grau de dificuldade do trabalho, esse desafio acabou
por se transformar, para mim, em um de seus atrativos especiais. Considerando-se,
pois, que o referencial de análise aqui adotado ainda não tem tido grande
penetração nas áreas em que se têm desenvolvido grande parte das pesquisas
acerca da imigração alemã no Brasil e, em especial, no Rio Grande do Sul,
penso que meu estudo pode gerar debates interessantes e profícuos e apontar
para outras possibilidades de investigação nesse campo. Além disso, no
campo específico dos estudos acerca da imigração alemã no Rio Grande do
Sul, as relações entre os diferentes marcadores sociais que analisei foram,
até aqui, pouco exploradas e isso faz dessa temática um tema instigante,
sobre o qual ainda há muito para ser investigado. Assim, ao fim e ao cabo,
estudos como este que apresentei, aqui, permitem ampliar o debate em torno
das potencialidades e dos limites analíticos que uma aproximação crítica
entre os Estudos Feministas, os Estudos Culturais e a perspectiva Pós-
Estruturalista colocam para a teorização social contemporânea. Referências Bibliográficas ALTMANN,
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Nr. 2358 K. Nr101, Evangelisches Zentralarchiv in Berlin, Bestand
5/2220.
[1] Este trabalho é parte de minha tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do sul, em maio de 1999. [2] Professora Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação e pesquisadora do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero. [3] Para uma leitura mais detalhada do referencial teórico-metodológico que fundamenta minha análise neste trabalho, cf. Meyer, 1999 (2º capítulo). [4] Cf. a discussão acerca das implicações teórico-metodológicas da adoção desta definição em Louro, G. Gênero, História e Educação: construção e desconstrução. Educação e Realidade, v. 20, n. 2, jul/dez 1995 e em Meyer, D. Do poder ao gênero: uma articulação teórico-analítica. In: Lopes, M. et al. (orgs.) Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. [5] Os termos colônia e colonização serão usados, neste trabalho, com o sentido que lhes é atribuído nesse contexto histórico. De maneira genérica colônia remete à designação do rural em contraposição ao urbano e, de maneira mais específica, designa a pequena propriedade rural e as benfeitorias nela consideradas essenciais: casa, estábulo, animais e plantações. (Cf. Seyfert, 1985 e 1993). Colonização refere-se ao processo de assentamento das famílias de imigrantes europeus, nas terras delimitadas e divididas em lotes coloniais, nos estados do sul do País. [6] Os excertos de textos retirados das fontes de pesquisa e transcritos neste trabalho serão apresentados, aqui, em português. A traduções foram feitas por Rita Dolores Wolf (vinculada ao PIBIC UFRGS/CNPq) Para ter acesso aos textos originais, em alemão gótico, cf. Meyer, 1999. [7] Cf. Meyrer, M. Evangelisches Stift: uma escola para “moças das melhores famílias”. São Leopoldo: Unisinos, 1997. Dissertação. (Mestrado em História). [8] Ver, por exemplo, o poema de Wolfgang Ammon intitulado “Hino do teuto-brasileiro”, em que ele inicia a estrofe em que fala da relação com o Brasil dizendo “Heil dir Brasil, du Vaterland” e a estrofe em que fala das relações com a Alemanha, dizendo “Heil Deutschland dir, du Mutterland”(Kalender, 1936, p. 97). [9] Elias, em “O processo Civilizador” (1989, p. 44 -5) distingue o conceito de Kultur alemão, do conceito de civilização francês e inglês, dizendo que o primeiro vincula-se, basicamente, a movimentos/valores intelectuais, artísticos e religiosos e exclui, nitidamente, a política, a economia e a organização legal e social. A produção deste conceito está profundamente imbricada no contexto histórico e político alemão dos séculos XVIII e XIX.
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