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Grupo de Trabalho 4
Cultura Teuto-Brasileiro-Evangélica no Rio Grande do Sul: “Conteúdos” e “Movimentos” da Articulação de Gênero com Raça, Classe, Nação e Religião[1]

Dagmar E. Estermann Meyer[2]

 

Introdução

Neste artigo sintetizo uma parte de minha tese de doutorado (Meyer, 1999) em que procurei analisar e problematizar diferentes discursos que se combinaram e/ou conflituaram no processo de produção de uma cultura teuto-brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul (Brasil), no período de 1900 a 1940. Busco focalizar aqui, mais especificamente, os mecanismos e estratégias pelas quais representações específicas de masculinidade e feminilidade delimitaram modos de funcionamento de instituições sociais, regeram as relações do grupo com a Nação Alemã e o Estado Brasileiro, o processo de produção econômica e o de trabalho e, “naturalmente”, as relações familiares, afetivas e sexuais vigentes; um processo que delimitou, ao mesmo tempo, as relações deste grupo com outros grupos sócio-culturais e que o posicionou de um modo particular no contexto gaúcho e brasileiro da época.

A discussão que apresento fundamentou-se em reflexões produzidas no âmbito de algumas vertentes dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais que vêm exercitando uma articulação crítica com a perspectiva pós-estruturalista de Michel Foucault e Jaques Derrida[3]. Os seus contornos mais amplos delimitaram-se com base em três pressupostos: um primeiro com o qual se afirma que a História é um campo de saber envolvido com a produção dos fatos e acontecimentos que supostamente descreve e analisa; um segundo que permite conceber a Cultura como sendo um campo de luta e contestação em que se produzem tanto os sentidos quanto os sujeitos que constituem os diferentes grupos sociais em sua singularidade e um terceiro, que enfatiza que sujeitos masculinos e femininos, como também concepções de masculinidade e feminilidade, são produzidos em articulação/confronto de muitas outras identificações, baseadas, por exemplo, na nacionalidade, na raça, na religião e/ou na “posição” ocupada em diferentes sistemas de produção econômica.

A análise opera, pois, com alguns conceitos centrais aos campos de estudo acima delimitados. O primeiro deles, como indica o próprio título do trabalho, é o conceito de cultura que é retomado criticamente nesta perspectiva dos Estudos Culturais. Vários/as autores/as têm enfatizado a importância dessa discussão, entre eles Stuart Hall (1997b), alertando para o fato de que, quanto maior for a centralidade da cultura para a produção e organização de dinâmicas sociais específicas, mais significativas são as forças envolvidas com sua produção, regulação e governo. No contexto dessa discussão, cultura deixa de ser entendida como conjunto de crenças e experiências, valores, tradições e hábitos dos grupos humanos e passa a ser concebida, de forma muito mais ampla, como o conjunto dos “processos, categorias e conhecimentos através dos quais as comunidades são definidas (e se definem) de formas específicas e diferenciadas” (Donald e Rattansi, 1992, p. 4). Isto significa que, longe de limitar-se a crenças religiosas, rituais comunais ou tradições compartilhadas, tomadas como se constituíssem um “todo harmônico e acabado”, a cultura está implicada com a forma pela qual estes fenômenos manifestos são produzidos através de sistemas de significação, estruturas de poder e instituições. Como argumentam Antônio Flávio Moreira e Tomaz T. da Silva (1994, p. 27) “a cultura é o terreno em que se manifestam diferentes e conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e não aquilo que recebemos”.

A discussão em torno da concepção de cultura está diretamente conectada à problematização e ressignificação de noções como linguagem e representação. A representação é entendida, aqui, como sendo um processo que envolve as práticas de significação e os sistemas simbólicos através dos quais estes significados - que nos permitem entender nossas experiências e aquilo que nós somos - são construídos (Hall, 1997a). São os sistemas de representação social que constroem os “lugares” nos quais indivíduos e/ou grupos se posicionam ou são posicionados e a partir dos quais podem falar ou “ser falados”. Tais processos de produção e partilhamento de sentidos estão profundamente enredados em relações de poder que nomeiam, descrevem, classificam, identificam, diferenciam e hierarquizam culturas e sujeitos, ou seja, tais relações de poder definem quem está incluído e quem está excluído de quais grupos/posições sociais. Desse modo, representações não são apenas múltiplas, mas particulares e interessadas, convergentes ou divergentes e algumas delas acabam, numa determinada época e lugar, adquirindo uma autoridade maior e se transformam em senso comum.

Ao trabalhar em sintonia com essas abordagens foi possível perceber que, no contexto histórico e cultural que investiguei, alguns elementos/marcadores sociais deram uma importante sustentação ao conjunto de representações com as quais se produziu/reformulou a concepção de uma cultura teuto-brasileiro-evangélica, de tal forma que se tornou natural conectar a ela um conjunto específico de pessoas, práticas e instituições sociais. Vários estudos nos campos dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais (por exemplo os de Avtar Brah, 1992; Floya Anthias e Nira Yuval-Davis, 1995; Anne McClintock et al, 1997 e Kathryn Woodward et al., 1997) têm apontado e problematizado as formas pelas quais grupos - como o dos teuto-brasileiro-evangélicos - que se representam/são representados primariamente em função de seu pertencimento nacional, racial e/ou étnico-cultural posicionam as diferenças/especificidades que são produzidas em torno (ou a partir) desses marcadores sociais como se fossem largamente independentes de outros como classe ou gênero e isso se constitui como importante mecanismo de produção das representações que sustentam tanto as idéias de semelhanças internas inerentes ao grupo, quanto as de diferenças essenciais em relação a outros grupos.

Os conceitos de raça/etnia e nacionalidade, que estruturam os sentimentos e a materialidade desse pertencimento (ou exclusão), são importantes em minha discussão. Eles, em especial, envolvem muitas disputas e polêmicas teóricas e políticas, exatamente porque são elementos centrais dos processos de particularização e classificação de grupos e populações humanas. Nesse sentido Floya Anthias e Nira Yuval Davis (1995), ao comentarem esta polêmica, argumentam que estes marcadores sociais não têm em si, um significado fixo, específico e imutável e que os significados que eles assumem precisam ser localizados e compreendidos historicamente, no contexto dos confrontos e conflitos que se desenrolam dentro e entre movimentos sociais determinados. Os sentidos que eles carregam estão, freqüentemente, associados com intenções e interesses que desencadeiam e/ou mantém em funcionamento processos de conquista e subjugação, colonização e migração e se prestam para explicar e legitimar variadas práticas de privilegiamento, exclusão e subordinação social. No caso específico destes termos, seus sentidos referem a supostas diferenças de ordem biológica, fisionômica, moral, cultural, histórica e/ou territorial, que se articulam com (ou são traduzidas como) origens e destinos comuns e isto pode ser produzido no interior, no exterior ou na interconexão de diferentes grupos e processos sociais.

Os critérios ou parâmetros que são acionados para determinar quem pertence ou não a este ou àquele grupo são muito heterogêneos, deveras ambíguos e maleáveis e se transformam no tempo e nos espaços em que são colocados em funcionamento. Muitas vezes eles referem ao fato de se ter nascido ou casado dentro de determinados grupos ou territórios, enfatizam o partilhamento de religiões e “legados culturais”, valorizam o uso de uma língua comum, ou prescrevem a semelhança de caracteres fenotípicos como cor da pele, olhos e cabelos ou, ainda, arrolam modos de ser e de portar-se que são estendidos ao conjunto do grupo em questão. Essa maleabilidade e ambigüidade indicam a necessidade de tratar tais critérios, como sugere Avtar Brah (1992), como campos de contestação inscritos em processos e práticas discursivas e materiais, entendendo-os como contingências históricas, produzidas em relacionalmente, cujos sentidos e efeitos de poder são continuamente transformados por (e no interior de) lutas políticas.

O que muitos/as autores/as vêm enfatizando, nesses campos, é a necessidade de se entender como as diferenças que delimitam grupos, com base nestas noções de pertencimento, se imbricam de modo importante com outras marcas, especialmente as de gênero. Esse conceito é trabalhado, aqui, a partir da definição (hoje já considerada clássica) de Joan Scott (1995). Nesse contexto teórico, o gênero passaria a ser compreendido, com diferentes implicações[4], como sendo constitutivo de (e constituído por) múltiplas relações sociais de poder. Isso implica em deslocar a análise das dimensões que poderiam evocar a idéia reduzida de construção social de papéis/funções do masculino e do feminino para uma abordagem muito mais ampla e mais complexa que, nas palavras de Guacira Louro (1997, p. 24), permita examinar tanto “as múltiplas formas que podem assumir as masculinidades e as feminilidades, como também as complexas redes de poder que (através das instituições, dos discursos, dos códigos, das práticas e dos símbolos...) constituem hierarquias” sociais, justificadas e legitimadas a partir de (ou pela articulação de) supostas diferenças/identidades entre os sexos.

Compartilhando essa posição teórica, minha análise das representações em torno de uma cultura teuto-brasileiro-evangélica, no período que abordo neste trabalho, mobilizou então, fundamentalmente, elementos vinculados ao gênero, buscando entender como estes elementos se articularam com noções correntes de raça alemã, cultura ou espírito alemão (entendido como modo de ser, de agir e de pensar), religião, classe e, de forma especial, nacionalidade alemã. Na verdade, uma grande parte do que, nesse período histórico, foi apresentado como sendo cultura ou espírito alemão passou a ser tratado, depois da Segunda Guerra Mundial, como etnia. Verena Stolke (1991) relata que é no contexto de repugnância ética às teorias raciais, cujo efeitos mais dramáticos e visíveis foram as câmaras de gás instaladas pelo nazismo, que o termo etnia ganhou visibilidade e passou a ser usado com o sentido de enfatizar que grupos humanos se constituem enquanto fenômenos históricos/sociais e não enquanto categorias biológicas, cujos traços físicos hereditários estariam se misturando a, e definindo também, características morais e intelectuais. Como se poderá perceber ao longo do trabalho, existe um pressuposto de transmissão, também “pelo sangue”, permeando a aquisição e preservação da cultura ou do espírito alemão, de forma que os conteúdos das noções de raça e etnia quase não se diferenciavam no período que examinei.

Alguns autores e autoras têm argumentado, inclusive, que mesmo que o conceito de etnia venha sendo utilizado, na atualidade, para referir-se a características como língua, religião, costumes, tradições, sentimento de lugar, dentre outras, que são partilhadas por um povo específico, o seu uso no lugar de raça não resolveu as questões mais centrais que aí estão em jogo (Suárez, 1991; Donald e Rattansi, 1992 e Omi e Winant; 1986, por exemplo). Isto porque - se mantivermos o foco nas relações de poder que estão implicadas no campo da cultura - o deslocamento das diferenças que a raça situava na biologia para o terreno da cultura acabou sustentando um “novo racismo”, onde as discriminações operam tomando como base supostas incompatibilidades culturais; um processo que tem se revelado com nitidez em um crescente número de conflitos entre nações e grupos, sobretudo na Europa contemporânea.

Com base, então, nesses campos e conceitos, utilizei as estratégias da articulação e da desconstrução como “ferramentas” para examinar publicações, veiculadas no período de 1900 a 1940, pelo Jornal Deutsche Post (Deutsche Post), pelo almanaque Kalender für die Deutschen in Brasilien (Kalender) e pelo periódico Allgemeine Lehrerzeitung für Rio Grande do Sul (Lehrerzeitung), com o intuito de discutir e analisar algumas das representações de gênero que, no contexto desse grupo cultural, estiveram imbricadas na regulação dos afetos e dos relacionamentos entre homens e mulheres, da estrutura familiar e da divisão social e sexual do trabalho e do sistema produtivo e econômico delimitando, assim, o funcionamento de algumas de suas mais importantes instituições sociais.

 

1.       A imigração alemã para o Rio Grande do Sul: contextualizando o tema

A imigração alemã para o Rio Grande do Sul teve início em 1824 e foi desencadeada, basicamente, em função de duas políticas implementadas, no Brasil, pelo Primeiro Império: a ocupação de territórios de fronteira, constantemente ameaçados por invasões dos países platinos, no sul do País, e o estímulo ao desenvolvimento de uma agricultura voltada para a produção de gêneros alimentícios destinados ao abastecimento do mercado interno, num sistema que deveria basear-se em pequenas propriedades e na força de trabalho familiar. Encontra-se, aqui, uma das importantes particularidades desta corrente imigratória: o fato dela ter-se constituído, no sul do País, sob a forma de colonização[5], o que levou a uma concentração étnica em áreas homogêneas e compactas e modificou, profundamente, a estrutura fundiária e a vida rural nesses estados. Isto diferenciou, também, o imigrante alemão que se instalou no Rio Grande do Sul, daquele que se encaminhou para São Paulo ou para estados de outras regiões brasileiras.

Uma afirmação que é registrada na maioria das histórias até aqui escritas sobre a imigração alemã, no Rio Grande do Sul, é que Igreja, Escola e a importante Imprensa que estas instituições sustentaram, foram centrais na vida desses imigrantes e que elas estiveram profundamente envolvidos/as com a produção, reprodução e reformulação dessa cultura e de seu sujeito cultural, cuja identidade deveria comportar um harmônico, porém duplo pertencimento: uma nacionalidade alemã e uma cidadania brasileira.

Além disso, a literatura que trata dessa temática usualmente sustenta uma idéia de homogeneidade cultural que apenas seria perturbada, algumas vezes, pela opção religiosa – católica ou protestante – enquanto língua, nacionalidade e algumas características étnico-raciais naturalizadas – por exemplo “a capacidade de trabalho alemã” - constituíam elementos homogênea e extensivamente compartilhados, os quais foram (e ainda são) apresentados como sendo o substrato da “cultura teuto-brasileira”.

Uma análise mais detalhada dessa literatura, no entanto, permite perceber que os imigrantes alemães não compunham um grupo homogêneo sob muitos outros aspectos, além do religioso. Eram oriundos de diferentes regiões e estados, por vezes de diferentes países; muitos deles eram camponeses e servos, outros tantos marginalizados urbanos e excluídos do processo de industrialização que se iniciava na Europa; alguns poucos podiam ser enquadrados como intelectuais em exílio político e, como nos informa Jorge Luiz da Cunha (1995), nos primeiros grupos havia ainda muitos indivíduos “socialmente indesejáveis”, libertados de prisões sob a condição de que emigrassem. Nem mesmo a língua falada no cotidiano era partilhada por todos no grupo, porque as diferentes regiões e estados alemães de onde eles provinham adotam dialetos tão diversos e diferenciados que, em alguns casos, quase constituem idiomas à parte.

Mas existiam, também, mecanismos de diferenciação/hierarquização em ação no interior do grupo, acionados pelas próprias instâncias implicadas na preservação cultural como, por exemplo, “as diversas origens dos imigrantes”:

Os primeiros imigrantes eram, mais ou menos na mesma proporção, alemães-russos de confissão evangélica (...) e poloneses do império russo e da Galícia, misturados a alguns poucos italianos (....) uma minoria de suecos, a maior parte deles trabalhadores dos distritos das minas de ferro, letões (batistas) e, aqui e ali, alemães do reino e dos Alpes austríacos (...).O nível cultural mais elevado e o sentimento nacional mais sólido encontrava-se entre os últimos (...). Eles constituíram comunidades fechadas e responsabilizaram-se pela satisfação de suas necessidades não materiais. (...) Também financeiramente eles se desenvolveram bem (Kaiserlich Deutsches Konsulat, 29/06/1914, EZA, Bestand 5/2220).

O poder aquisitivo dos imigrantes, sua inserção nas relações econômicas e de produção vigentes e o pertencimento de classe social que estas diferenças usualmente sustentam, por sua vez, constitui um tema ainda bastante silenciado nos estudos que tratam da temática da imigração, sobretudo naqueles que se dedicam a estudar o século XIX. Floya Anthias e Nira Yuval-Davis (1995) destacam o fato de que, nos contextos em que grupos de migrantes passam a ser identificados (ou a identificar-se) com uma classe social ou fração de classe, acaba-se assumindo a idéia de uma homogeneidade interna, a qual repousa sobre o pressuposto da unidade étnico/racial e obscurece as divisões de classe que funcionam no interior do grupo; isto se aplica aos imigrantes alemães e de seus descendentes no Rio Grande do Sul, que eram genericamente identificados (e identificavam-se) como colonos e pequenos proprietários de terra.

Marlise Regina Meyrer (1997, p. 4) problematiza esse silenciamento quando acentua o fato de que a “dimensão étnica” tem sido privilegiada quando se discute a colonização alemã no Rio Grande do Sul. A autora argumenta que a sociedade de imigrantes é analisada, muitas vezes, tomando-se como referência inicial um “colono pioneiro, pobre e desbravador” que obteve sucesso “ao tornar-se, comumente, industrial ou comerciante”, uma perspectiva evolutiva que se aplicaria à população de origem alemã, indistintamente. Assim, as diferenças porventura apontadas pelos/as estudiosos/as acabaram sendo subsumidas pela homogeneidade cultural e/ou pela fraternidade ancorada na idéia do pertencimento nacional compartilhado pelo grupo, ou, ainda, na oposição entre o rural e o urbano, que se passou a enfatizar com maior intensidade, a partir do final do século XIX. Este modo de escamotear as marcas de classe, no entanto, está longe de significar que elas não tivessem existido e que tenham sido irrelevantes ou desconsideradas na dinâmica interna do grupo. De forma sutil, a origem de classe fundamentou discussões feitas na imprensa da época para explicar, por exemplo, o descaso de alguns núcleos coloniais para com a instituição escolar:

O segundo grupo [em que podem ser classificados os que emigraram dos estados alemães ] compreende aqueles que, em sua maioria, provém das camadas mais pobres e do campesinato. Estes são os que migraram para o sul da Hungria, do sul da Rússia (...) e das Américas do Norte e do Sul.(...). Os imigrantes alemães, no Brasil, sofrem especialmente pelo fato de não terem vindo, em número suficiente, famílias mais esclarecidas que fundassem escolas melhores para seus filhos (Pfeiffer, Deutsche Post, 12/10/1914, p. 1) ).[6].

Também o gênero posicionava diferentemente os sujeitos no interior do grupo e foi acionado para distinguir grupos entre si. Apresentadas como sendo naturais e determinadas por Deus e/ou pela natureza humana, as diferenças de gênero posicionavam mulheres e homens nas comunidades, regiam as relações entre marido e mulher e entre pais e filhos/as e definiam suas funções/deveres em casa, na família e na propriedade familiar. As diferenças de gênero foram, pois, internamente afirmadas como necessidade e como destino e é a sua inevitabilidade (que ainda assim requer medidas educativas para que possa ser devidamente preservada) que modula o “tom” que se adotava nos artigos dos jornais do período em foco:

As crianças não podem crescer na rua e nem nas plantações, mas em casa, e a mãe deve saber sempre onde os seus filhos estão. Deitá-los na cama à noite com oração e erguê-los dali pela manhã ensinando-os a ficar com as mãozinhas postas, prestar atenção em sua tagarelice e responder a ela é um dever materno indiscutível. É evidente que o pai deve dedicar-se diariamente aos filhos, contar-lhes estórias ao anoitecer, brincar com eles e educá-los...(Quando homem e mulher não querem ou não podem fazê-lo, não devem contrair matrimônio) (Deutsche Post, 22/03/1907, p. 1).

Como se pode perceber, havia muitas diferenças nomeadas, silenciadas, legitimadas ou negadas conformando o grupo internamente e delimitando suas relações com outros grupos culturais. Passo a discutir, agora, de forma mais pontual, como as representações de gênero estiveram implicadas com a definição dessas diferenças/identidades (dentro e fora do grupo), constituindo-se, portanto, em um dos elementos básicos de produção/reformulação da cultura teuto-brasileiro-evangélica no Rio Grande do Sul.

 

2. Cultura teuto-brasileiro-evangélica: “conteúdos” e “movimentos” da articulação de gênero com nação, raça, classe social e religião

 As ações e os efeitos da imbricação das representações de gênero com os processos de diferenciação/identificação social e cultural podem ser percebidos, como sugere Joan Scott (1995), nas representações que instituem símbolos culturais e sustentam conceitos normativos de doutrinas religiosas, jurídicas, educativas, políticas, dentre outras, doutrinas estas que procuram expressar e regular as possibilidades de interpretação dos sistemas simbólicos, disponíveis em culturas específicas. Estas imbricações estão implicadas, também de forma constitutiva, nos sistemas econômicos e nas organizações educacionais e políticas, de tal forma que é o conjunto desses símbolos, processos, práticas e instituições que “fabrica” as diferentes posições dos sujeitos e situa os diversos grupos/indivíduos, de forma hierarquizada e desigual, nas sociedades em que estão inseridos.

Nessa perspectiva, Floya Anthias e Nira Yuval-Davis (1995) chamam atenção, por exemplo, para a centralidade das mulheres na reprodução de coletividades nacionais e estados, ressaltando que esta centralidade engloba muito mais do que a dimensão da reprodução biológica dos seus futuros membros. Está incluída, aqui, a inserção da mulher no processo de construção/reprodução das identidades culturais das crianças, pela mobilização/transmissão de mitos, simbologias, práticas sociais e identificações que representam o grupo em suas especificidades. Esta representação que posiciona a mulher, fundamentalmente, como mãe da nação (no sentido biológico e cultural) era uma das mais acionadas nesse (e em muitos outros) contexto histórico-cultural:

Se a mulher, como mãe, exerce uma influência decisiva sobre a nação pelo fato de que a ela cabe construir a ponte espiritual entre a criança e seu povo e, se ela é, como primeira transmissora da língua materna, a “cuidadora” pré-destinada da consciência nacional, então a sua inclinação [natural] para o cuidado e a conservação é de grande importância para a existência da nação [alemã] (Pleimes, Deutsche Post, 7/11/1925, p. 3).

As autoras acima referidas (op. cit.) seguem sua argumentação alargando o significado desse conceito de mãe da nação, ao detalhar as múltiplas dimensões dessa posição de “cuidadora” que inclui, de forma importante, tanto a iniciação na língua materna quanto a iniciação religiosa, mas que não se limita a elas. Ser mãe da nação inclui conhecer, exercitar e incutir costumes e comportamentos sociais e culturais adequados, modos apropriados de comer, se vestir, cuidar da casa e do lar e, principalmente, fazer tudo isso, no âmbito de casamentos aprovados e legitimados pela coletividade em questão. O “casamento adequado” se constituía, pois, como uma instância-chave desse processo de legitimação do pertencimento e das fronteiras raciais, nacionais e/ou religiosas que delimitavam o grupo. Os argumentos que o sustentavam referiam, fundamentalmente, a representações específicas de masculinidade e feminilidade, as quais se encontravam, também, articuladas a poderosos mecanismos que regulavam e fixavam possibilidades de vivência não só de afetos, mas também da sexualidade:

(...) lá fora, nos países além-mar, o homem alemão precisa ainda mais de uma mulher alemã do que aqui na pátria querida. Ele precisa dela desde o início, isto é, desde o momento em que passa a ter condições de fundar um lar próprio, para que ela o ajude a constituir este lar da forma mais alemã possível, se é que nele se pretende nutrir e cuidar da germanidade; uma tarefa que cabe principalmente à dona de casa, uma vez que o homem é muitas vezes obrigado a fazer concessões aos usos e costumes de sua nova pátria, o que é poucas vezes exigido da mulher (...). Se não há mulheres alemãs disponíveis, ele fará de uma mulher de outra raça a companheira que lhe supre as necessidades. Neste caso ele logo perde também a sua germanidade (...) (von Busch, Deutsche Post, 2/7/1924, p. 2)

Talvez seja importante mencionar que estas duas últimas citações foram retiradas de artigos originalmente publicados em jornais alemães e transcritos pelo Jornal Deutsche Post e que estes pareciam ter o propósito de incentivar a emigração de moças alemãs para os países nos quais se tinha uma concentração maior de imigrantes desta “origem”. A argumentação desenvolvida sustentava que a idéia de que moças e mulheres que emigram sozinhas correm riscos em terras estrangeiras precisava ser reconsiderada, tendo em vista, exatamente, o seu posicionamento como defensoras e perpetuadoras “naturais” da raça e da cultura. Buscava-se, assim, ampliar as possibilidades de “preservação” da raça e da cultura alemãs em solo estrangeiro, posicionando-se a mulher alemã como sendo agente central desse processo.

É muito provável que, acionada em situações como esta, a representação da mulher como mãe da nação tenha tornado possível a desestabilização de outras representações hegemônicas de gênero, sobretudo daquelas que posicionavam as mulheres ou como sendo mais frágeis e mais vulneráveis aos “perigos do mundo” do que os homens ou, então, como sendo seres cuja conduta necessitava de supervisão e controle familiar mais próximos e permanentes. Ao incentivar (e legitimar) sua emigração para “destiná-las” ao casamento, provavelmente abriram-se, para algumas delas, outras possibilidades de viver a feminilidade longe da Alemanha e da vigilância de suas famílias. Assim, elas puderam vir, também, como governantas, como missionárias, como diaconisas, como enfermeiras/parteiras ou como professoras; algumas devem ter terminado casadas e, por isso, deixaram de exercer trabalho fora de casa; outras vieram viver novas experiências e depois retornaram a seu país de origem, enquanto que outras construíram espaços profissionais independentes nos quais se mantiveram ativas por muitos anos, como foi o caso das irmãs Engel, professoras alemãs que, em 1886, inauguraram uma escola feminina em Novo Hamburgo, que está em funcionamento até hoje[7]. Estes outros modos de viver a vida, como mulher, devem ter provocado rupturas e conflitos e desarticulado relações de poder vigentes, visibilizando e fazendo circular, desta forma, outras representações de gênero.

Uma outra dimensão interessante de ser explorada, aqui, considerando-se o desdobramento dos argumentos de Scott (1995) e de Anthias e Yuval-Davis (1995), é exatamente a generificação dos símbolos que estruturam as relações de pertencimento racial/nacional das coletividades sociais. Nesse sentido, tomarei como referência duas concepções acionadas com freqüência em poemas publicados no Kalender, para desenvolver o argumento de que o gênero esteve implicado com a produção da noção de duplo pertencimento - nacionalidade/cidadania - que constituiu uma das especificidades mais explicitadas desse grupo cultural. Nestes poemas (e também em alguns artigos) as palavras Mutterland e Vaterland articularam sentidos atribuídos às figuras de pai e mãe com sentidos vinculados aos termos terra ou território possibilitando a produção de duas próximas, porém distintas representações - terra natal e pátria[8] - as quais permitiram construir, aí, relações de pertencimento supostamente complementares e harmônicas, ao mesmo tempo que diferenciadas e específicas.

As noções que emergiam destas representações, que em português talvez pudessem ser tomadas como sinônimos, foram produzidas no âmbito desse grupo, apresentando-se a Alemanha como “terra-mãe” ou terra natal e o Brasil como “terra-pai” ou pátria e isso permitiu instituir uma oposição binária que operava incorporando simetrias e assimetrias de gênero, naturalizadas nas culturas alemã e européia a partir do século XVIII, nas oposições mulher/homem e mãe/pai. As noções de harmonia e complementaridade que foram fixadas, por exemplo, às distinções entre mulher e homem e pai e mãe na família alemã evangélica foram metaforizadas de forma a representar a relação entre a nacionalidade alemã e a cidadania brasileira como sendo uma relação desejável, produtiva e harmônica de dois entes distintos e complementares. É este “casamento” entre terra natal e pátria que deveria gerar o sujeito e a cultura teuto-brasileira, cujas vozes se faziam ouvir assim:

Nós queremos prestar bons serviços à nossa nova pátria [Vaterland], queremos mesmo dar-lhe o melhor que temos, mas sem copiar costumes brasileiros cujas peças não foram cortadas sob medida para o nosso corpo, porque isso poderia nos fazer vestir um “terno de loucos”. Nós queremos aprender a língua brasileira o melhor possível, porque ela é a língua das nossas leis e do nosso comércio; mas nós queremos utilizar a língua materna alemã para expressar as nossas mais profundas e pessoais percepções, nossas melhores motivações de vida, ela é a língua de nosso coração (Dir. Meyer, Kalender, 1909, p. 168. Grifos meus)

Pode-se observar, nesta citação, como concepções de gênero específicas foram corporificadas nos símbolos e passaram a “moldar” e regular o pertencimento dos sujeitos. Assim, o Brasil, cuja representação se articulava em torno da idéia do homem/pai, é o país onde se vivia, se trabalhava e se garantiam os meios econômicos e materiais não só para a sobrevivência, mas para o progresso social; ele era o provedor da “família” de imigrantes e a ele se atribuía a autoridade de ditar (e cobrar) deveres e direitos; é ele quem conferia a cidadania ao sujeito, ou seja, concedia-lhe o registro em que o reconhecimento da paternidade oficializava sua condição de “filho legítimo” do país. O exercício desta cidadania vinculava, nesse contexto, o respeito e a obediência às leis vigentes ao usufruto dos direitos de liberdade e igualdade política. A língua portuguesa era, então, a “língua do pai” que produzia a lei, regulava a produção e a ordem social e erigia a ponte que ligava o grupo ao seu entorno.

A Alemanha, representada como mulher/mãe, “gesta e dá à luz” às marcas que constituíam o grupo em sua especificidade cultural; a ligação que se tinha com ela se inscrevia no plano da “natureza biológica” dos seres humanos e era, pois, fruto da inexorabilidade dos acontecimentos naturais; era ela quem nutria a cria, produzindo/reproduzindo o seu alimento cultural (Kultur, no sentido que lhe atribui Elias[9]); ela governava a intimidade e o mundo das emoções e corporificava o lar (das Heim) no sentido que este assumiu com a emergência das sociedades burguesas - o lugar protegido e seguro (feminino) em que a família deveria viver as suas relações reguladas pelo afeto, longe das preocupações políticas e econômicas que constituem o mundo (masculino) exterior. A língua alemã era, então, a “língua da mãe” que transmitia/construía os valores culturais e a crença religiosa, modulava os sentimentos mais íntimos e os afetos familiares.

Assim, penso que se pode dizer que, no contexto desse grupo, o sentido da nacionalidade se constituiu, em grande medida, com base em representações do feminino, produzindo uma relação em que o afeto nutre, preserva e faz crescer o sujeito dotado de sentimentos, emoções e valores culturais particulares enquanto que a cidadania se fundiu com representações do masculino e constituiu uma relação em que o afeto provê, disciplina, cobra, pune e premia, no sentido de desenvolver o sujeito político, responsável, racional e útil, produtivo do ponto de vista social.

As representações de gênero que permitiram produzir esse “matrimônio” entre nacionalidade e cidadania fundamentam-se em noções de diferenças naturais e complementares entre mulheres e homens, que foram concebidas e articuladas nos contextos alemão e europeu, em diferentes discursos e processos históricos. Dagmar Herzog (1993) e Andrea Bieler (1994) indicam que foi, sobretudo, o pressuposto iluminista da existência de um sujeito autônomo, unitário e universal que operou o reordenamento das relações de poder que regulavam as relações de gênero, até o século XVIII. A argumentação de Herzog (op. cit.) permite entender que as relações de gênero até então vigentes no contexto europeu, fundamentavam-se em pressupostos em que se representava a mulher como sendo um homem incompleto, um homem a quem faltava algo e este pressuposto localizava a sua inferioridade e subordinação no plano das semelhanças que compartilhavam. O pensamento filosófico iluminista passaria a representar o mundo a partir da operação de dicotomias ou oposições binárias e é no contexto desse pensamento que se instituiu a dicotomia que posicionou homens e mulheres como sendo essencialmente diferentes e, necessária e naturalmente, complementares. A inferioridade e a subordinação passaram, desde então, a estar ancoradas nas diferenças que os separavam. Desta forma, o pressuposto filosófico da diferença essencial e complementar, ironicamente, forneceu argumentos fixados no plano da natureza humana pela oposição natureza/cultura, para delimitar e restringir naturalmente a universalidade da igualdade e liberdade dos seres humanos, que o próprio Iluminismo instituiu como premissa social e política básica. Com estas delimitações, as representações do sujeito humano universal podiam incluir, unicamente, o homem burguês, europeu, branco, heterossexual e cristão que o concebeu. O que estou procurando enfatizar aqui pode, pois, ser entendido como sendo a análise de ações e efeitos particulares da articulação entre representações que esta oposição homem/mulher mobilizou e instituiu, com representações que mobilizaram outras oposições básicas nesse contexto, como as que envolviam as noções de raça e nacionalidade.

Tais ações e efeitos podem ser buscados ainda, no que se refere ao contexto histórico que circunscreve a imigração alemã para o Brasil, na agricultura de base familiar que organizou o sistema de produção nas regiões de colonização, nos discursos científicos que permitiram “biologizar” as políticas de imigração e no discurso religioso do Protestantismo Luterano que regulou e normalizou uma ampla dimensão da vida nas colônias.

Assim, se retomarmos as políticas de imigração brasileiras que, nos séculos XIX e XX, “afirmavam o interesse do País por imigrantes agricultores que fossem assentados em colônias, tendo como base fundiária [e econômica] a pequena propriedade [e o trabalho] familiar” (Seyfert, 1991, p. 166), veremos como estas políticas, que buscavam incentivar a imigração de famílias de camponeses ou artesãos europeus (de preferência alemães, pelas suas qualificações “naturais” como agricultores), articularam gênero com raça e classe social Este argumento pode ser melhor compreendido a partir da análise das representações de gênero que permeavam a organização da família e o processo de trabalho destes segmentos sociais, no contexto dos estados alemães.

Maria Luiza Renaux (1995, p. 8 e seg.), trabalhando com a pressuposição de uma “cultura alemã trazida na bagagem dos imigrantes”, descreve, em linhas gerais, a instituição do casamento e a dinâmica das relações familiares e de trabalho dentro dos principais grupos que compunham essa sociedade no período das migrações. Ela se detém, de modo especial, na descrição das famílias de médios e pequenos agricultores, trabalhadores rurais e artesãos, uma vez que foram estes os segmentos que compuseram grande parte dos contingentes que migraram para o sul do Brasil.

A família que se apresentava nesses extratos sociais, ainda durante o século XIX, não é a família nuclear a que nos referimos hoje, uma vez que ela comportava, muitas vezes, mais de uma geração vivendo sob o mesmo teto e, no caso dos proprietários de terras maiores e dos artesãos, incluía também seus empregados e aprendizes. A par de diferenças temporais, profissionais e econômicas que estiveram implicadas com a produção das especificidades de cada um desses grupos sociais, vamos encontrar, genericamente, uma família que, na Alemanha, esteve legalmente estruturada em torno da (indiscutível) autoridade paterna, a qual englobava/articulava, até fins do século XIX, as decisões que aglutinavam, ao mesmo tempo, as dimensões familiares e econômicas expressas nos conceitos de lar (Heim) e de casa (Haus).

Comentando o Código Civil que entrou em vigor, naquele país, em janeiro de 1900, Renaux (op. cit.) refere que, mesmo frente às profundas mudanças sociais que a industrialização e a entrada formal das mulheres no mercado de trabalho vinha provocando já durante o século XIX, ele deixou inalterado, até 1953, o modo pelo qual se concebia as relações conjugais e familiares desde as sociedades feudais:

O patriarca podia decidir, por si só, sobre todas as questões de âmbito doméstico (...). O cônjuge podia rescindir o contrato de trabalho de sua mulher, mesmo contra a vontade dela. Podia, também, administrar e usufruir da fortuna da esposa e da renda de seus bens, o que eqüivale a dizer que, se a mulher possuísse bens próprios, somente seu marido podia dispor deles (Renaux, 1995, p. 11-2).

Considerando-se, de modo mais pontual, as famílias camponesas e artesãs, vamos encontrar, aí, algumas das razões que devem ter motivado, nas políticas de imigração, a defesa do sistema de produção familiar em pequenas propriedades rurais, que deveria constituir a base do processo de colonização com imigrantes europeus, no sul do Brasil. A autora refere-se ao conceito de “casa global” para definir a unidade de produção em que se agregavam, para morar e trabalhar sob o mesmo teto e para o mesmo “caixa”, a família strictu sensu e todos os que participavam do sistema produtivo doméstico, e a leitura de seu livro permite dizer que este sistema produtivo dependia fundamentalmente das relações de gênero vigentes. A casa global rural era dirigida tanto pelo “pai da casa” (Hausvater) quanto pela “mãe da casa” (Hausmuter), que eram, ambos, responsáveis pela produção, sendo que esta responsabilidade estava delimitada pelo exercício desigual de poder de mulheres e homens, no âmbito da unidade produtiva.

Quando a propriedade rural gerava o suficiente para garantir o sustento da família, o campo de atuação da mulher incluía o cuidado com a casa, a educação dos filhos, o cuidado com jardim, horta e animais domésticos (principalmente as vacas leiteiras), a plantação do linho e a sala de fiação, o beneficiamento do leite, a comercialização dos produtos e o arrendamento das terras, bem como a supervisão de eventuais empregados que estivessem envolvidos com estas atividades. Esta era a concepção de trabalho doméstico “naturalmente” vinculada ao feminino que instituía, aí, uma subordinação de gênero bem diversa daquela que passou a vigorar no meio urbano, com a consolidação da burguesia e da industrialização, exatamente porque nela estavam entrelaçadas as relações afetivas e de reprodução biológica e social com a esfera da produção econômica. Ao pai cabia a autoridade máxima e ele determinava

não apenas o transcorrer de todo o ritmo de trabalho, como também a conduta da mulher, dos filhos e dos empregados [quando se dispunha deles] ...qualquer alteração na rotina doméstica cabia unicamente à decisão paterna. No máximo o que se podia esperar da mulher era um poder indireto, via influência sobre as decisões do marido (Renaux, 1995, p. 19).

As representações de mulher e de homem que emergem da análise desta autora têm em comum o “amor ao trabalho” manual e pesado como pressuposto básico de vida, a sobriedade e a honestidade como principais valores morais e a adoção de um rígido código de conduta e divisão social, que “amarrava” de forma quase que definitiva os indivíduos e suas famílias aos grupos sociais em que haviam nascido. Ao homem agricultor cabiam os cuidados mais pesados com a plantação e os pastos e era ele quem detinha a autoridade global sobre a propriedade. O casamento e a maternidade (nesta ordem) constituíam o destino supremo e inexorável das mulheres e não realizá-lo colocava em risco, com o avançar dos anos, a própria possibilidade de sobrevivência. Elas eram representadas como “extensão” dos homens, primeiro de seus pais e depois de seus maridos (ou de um de seus irmãos, quando permaneciam solteiras); tinham jornadas de trabalho ainda mais duras do que as deles, uma vez que estavam profundamente inseridas no processo de trabalho da propriedade rural ou da corporação (o domínio masculino que elas compartilhavam como ajudantes qualificadas), ao mesmo tempo que respondiam, sozinhas, pelo seu “trabalho natural” (casa e filhos). Estas representações de gênero emergem, com freqüência, também do material que examinei:

Os trabalhos mais pesados, como derrubar mato, roçar, lavrar com bois e operar com a carroça eram reservados aos homens e eles os aceitavam com naturalidade. (...) No que se relacionava com a criação de animais, as mulheres tinham sob seu cuidado as vacas. Cabia-lhes ordenhar e desnatar o leite. Tratar os porcos, os bois e os cavalos era serviço dos homens. Os terneiros geralmente ficavam sob o cuidado das crianças. Quando o homem tinha completado o tratamento dos “seus” animais, depois de ter voltado da roça com a mulher que o auxiliara na colheita, na capina ou na plantação, então ele estava “pronto”. Assim, tomava um trago, lavava os pés e ocasionalmente trocava de camisa e sentava para ler o jornal, conversar ou, simplesmente para descansar. Neste tempo, a mulher tinha ainda de preparar a comida; por a mesa; lavar a máquina para o desnatamento do leite; convidar para vir à mesa; lavar a louça; arrumar a cozinha; preparar o café para o dia seguinte e planejar o próximo almoço. Aos sábados, além das tarefas habituais, competia à mulher lavar a casa e a cozinha. (...) Quando completava o serviço da cozinha, a mulher pegava o cesto de roupa para remendar ou lavar. Ela não ficava nunca sem trabalhar (...) eu nunca sentia que tudo isso que minha mãe fazia era trabalho também. (...)Eu nunca tinha visto minha mãe ficar sem fazer alguma coisa (Altmann, 1991, p. 24-5. destaques meus).

Este depoimento autobiográfico do autor permite perceber, para além da descrição de papéis/funções de mulheres e homens no contexto desse grupo cultural, a extensão e a profundidade da generificação do processo de produção agrícola na pequena propriedade rural. Rearticulada para incluir as especificidades da vida cotidiana no novo contexto, a representação hegemônica de “trabalho agrícola do campesinato alemão”, desdobrada em suas dimensões de “trabalho de homem” e “trabalho de mulher”, está em ação aqui e a sua naturalização como “universal” da cultura e da raça, contribuiu muito para construir as idéias em torno da pujança da colonização européia no sul do Brasil.

Tomaz Tadeu da Silva (1997, p. 3) usa esta noção de “universais da cultura” para referir-se aos sistemas de significação cuja pretensão consiste em expressar um determinado grupo humano e social, em sua totalidade. É muito provável, então, que estas representações universalizadas tenham engendrado também, em detalhes objetivos, as políticas que incentivaram e viabilizaram a implementação desta colonização, determinando por exemplo: o tamanho dos lotes e os benefícios financeiros concedidos que, em princípio, não possibilitavam (e não previam) a contratação de empregados ou a posse de escravos; a preferência pela imigração de famílias; os impedimentos legais para a introdução de escravos nas regiões de colonização; a localização das colônias em terras desabitadas e distantes de centros urbanos. Tudo isso dificultava aos imigrantes a adoção de atitudes e/ou práticas que desagregassem o processo de trabalho familiar, como por exemplo, encontrar ou aceitar outras possibilidades de emprego.

Anthias e Yuval-Davis (1995) chamam atenção para um efeito importante da articulação entre gênero e classe social no contexto do sistema de produção, que pode ser considerado também aqui, qual seja, o de que é preciso compreender as formas pelas quais a inserção da família no processo de produção (com destaque para o posicionamento da mulher no contexto dessa articulação) está implicada com “o lugar” que o grupo dos teuto/brasileiros veio a ocupar na economia e na sociedade gaúcha, considerando-se os diferentes grupos culturais que a compunham. Eu diria, ainda, que o emprego da força de trabalho familiar, em primeira instância, deve ter contribuído muito para construir a idéia, bastante difundida, de que este grupo se constituía como uma “sociedade sem divisões de classe”, uma vez que a clássica oposição entre patrões e empregados não se fazia visível, pelo menos nas primeiras décadas da colonização.

É preciso, no entanto, retomar a tese (já citada anteriormente) de uma homogeneidade cultural construída pelas representações, para pontuar que mulheres, homens e crianças que compuseram os diversos grupos de migrantes não provinham todos dos mesmos estados alemães, não eram todos camponeses ou artesãos, não dispunham dos mesmos recursos financeiros para reiniciar a vida nas terras “além-mar” e nem professavam, todos, a mesma crença religiosa. Isto implica considerar que a generificação das políticas de imigração e do processo de produção agrícola nas regiões de colonização alemã, no sul do Brasil, foi produzida pela articulação de especificidades (regionais, de segmentos de classe, de gênero e religião) e as representações que a viabilizaram passaram a funcionar nesse outro contexto, dentro e fora do grupo e com diferentes efeitos, como sendo extensivamente compartilhadas pelo povo alemão.

Assim, as representações de gênero acabaram por configurar-se como argumentos poderosos tanto da tese da “preservação e transmissão da cultura” quanto da tese da “degeneração social e cultural decorrente da mistura de raças” e estiveram coladas, de forma importante, aos processos de diferenciação/identificação que produziram a cultura teuto-brasileira. Um texto intitulado “Lembra-te de que és alemão”, em que são elencadas as vantagens políticas e econômicas que a preservação da germanidade traria ao Brasil, permite observar como a oposição homem/mulher funcionou produzindo, explicitamente, diferenças, identidades e desigualdades:

O colono [homem] descendente de alemães é uma pessoa extraordinariamente diligente e esforçada e segue seu difícil caminho de forma correta e legítima, plantando suas batatas, milho, feijão, mandioca e saldando seus impostos -- muito consideráveis -- conscienciosa e pontualmente. O que ele pode economizar ele guarda e com o tempo garante um certo bem-estar. Então ele constrói um belo e aconchegante lar e se preocupa em não sofrer na velhice ou tornar-se um incômodo para outros e em garantir que os filhos, quando crescidos, tenham terra suficiente para, a exemplo do pai, trabalharem com sucesso e serem felizes. Ao lado dele trabalha, incansável e competentemente, a mulher, abençoada com a mesma alegria pelo trabalho, pelas mesmas preocupações com o cotidiano. Ela trabalha na casa e no pátio, cozinha, assa, lava, cuida dos animais e, se após esse trabalho em casa ainda lhe sobra tempo, ela está lá fora na roça, ombro a ombro com o marido e com a enxada na mão. E essa colaboração da mulher educada desde a infância para se mexer e trabalhar, é um fator essencial para a conquista da fortuna dos colonos alemães (Dr. M. F., Kalender, 1924, p. 42-3).

Muitos aspectos importantes para a discussão em torno da generificação da cultura podem ser elencados a partir desta citação. Em primeiro lugar, articulam-se nela múltiplas especificidades (de gênero, culturais, religiosas e econômicas) que, combinadas de formas diversas, passam a representar o ser homem e o ser mulher neste grupo de imigrantes. Tal representação descola-se das condições concretas de sua produção (por exemplo, ter estado vinculado ao campesinato alemão e/ou ser e viver no mesmo lugar, na mesma época, da mesma forma e com os mesmos resultados a condição de pequeno agricultor no Rio Grande do Sul) e passa a identificar um jeito particular de viver a masculinidade e a feminilidade como sendo a masculinidade e a feminilidade compartilhada por todos os elementos do grupo. Silva (1997, p. 16-7) permite entender melhor este processo de transformação do particular em marca compartilhada pelo conjunto do grupo, ao acentuar que “aquilo que um grupo tem em comum é resultado de um processo de criação de símbolos, imagens, memórias, narrativas, mitos que ‘cimentam’ a sua unidade, que definem sua identidade (...) esse é um campo atravessado por relações de poder” e esta afirmação reforça a necessidade de se vincular a discussão em torno das representações (já constituídas) ao processo de sua produção.

Em segundo lugar, estas representações que se universalizaram passaram a regular e a delimitar, concretamente, as possibilidades que os sujeitos teuto-brasileiro-evangélicos tinham de viver a própria vida, ou seja, elas marcaram instituições e práticas sociais e culturais que foram centrais para a formação dos sujeitos nesse grupo: a família devia constituir-se e funcionar de formas “adequadas”, a escola se organizou em torno de determinados saberes sociais e privilegiou determinados comportamentos e condutas que lhes deviam ser ensinados, a Igreja regulou suas consciências e, com e a partir destas representações, pavimentou os caminhos que podiam levá-los a Deus. Assim, as representações hegemônicas de gênero (bem como as de raça, classe e nação) fixaram os padrões a partir dos quais se instituiu o que é ser homem e mulher, como se educam meninos e meninas e, por extensão, o que podem/devem fazer da/na vida. Essas representações delimitaram seus espaços e posições e com isso operacionalizaram a hierarquização entre ambos e, ao instituírem as normas e inscrevê-las na natureza dos sujeitos, passaram a mobilizá-las como sinais de diferenciação intrínsecos e imutáveis.

Ernesto Niemeyer (Kalender, 1938), discutindo as diferenças entre mulheres e homens e as suas funções sociais, vai buscar em Deus e na natureza os argumentos que explicam o caráter de suas relações:

O homem é dotado de criatividade. Ele elabora idéias novas. Ele descobre novas armas e novos utensílios. Ele descobre novas terras e constrói para si um novo lar. Mas ele é volúvel. Em sua ânsia de criar coisas novas ele não observa suficientemente o que já existe. Então ele precisa da mulher com a sua constância, como mantenedora dos tesouros espirituais da humanidade(...) Com uma memória extraordinária ela conserva tudo que o ser humano conseguiu em termos de boas maneiras, bons costumes e tradições.(...) Sempre haverá homem e mulher, uma parte que gera e outra que concebe. O homem gera e a mulher concebe. Ela cultiva o concebido e lhe dá forma.(...) O que é válido para o corpo, portanto, também o é para o espírito. Também aqui, o espírito do homem dá o conteúdo e o da mulher a forma...(Niemeyer, Kalender, 1938, p. 120-1)

Se, num primeiro momento, nos reencontramos aqui com elementos que se articulavam para instituir o símbolo de mãe da nação, confrontamo-nos, também, com seres que são apresentados como tendo capacidades diversas (inconstância / constância, criatividade / memorização, conteúdo / forma, geração / concepção, produção / conservação). A natureza excludente e, ao mesmo tempo, complementar das capacidades que estruturam estas oposições binárias não esconde a valorização social diferenciada que elas instituem e nem as relações de poder que colocam em funcionamento. A partir desta citação pode-se argumentar que as representações de gênero se articulavam, no contexto deste grupo, em torno de “universais” de distinto alcance: se, por um lado, elas referiam a “todos os homens e mulheres do mundo” e, a partir daí, dividiam o grupo internamente, por outro, elas produziam as figuras do homem e da mulher teuto-brasileiro-evangélico/a, que passaram a ser acionadas como importantes símbolos de diferenciação, na relação com outros grupos culturais. A mulher (descendente de) alemã representou e corporificou, nesse contexto, um elemento central desse processo de diferenciação, uma vez que a oposição mulher alemã/mulher brasileira ou mulher germânica/mulher romana encarnava muitas das características mobilizadas nos discursos em que a laboriosidade, o sucesso financeiro e o caráter escolarizado e religioso do grupo eram contrapostos à indolência, à pobreza, à falta de instrução e de capricho atribuídos, de forma isolada ou em conjunto, aos demais grupos com que conviviam:

Deixar que a mulher trabalhe contradiz o sentimento de cavalheirismo que cada brasileiro desenvolve em relação ao sexo frágil. A mulher é a jóia da casa, mimada pelo marido que se sentiria ofendido se alguém esperasse dela um trabalho sério.(...) elas não só não entendem, de fato, o verdadeiro trabalho como considerariam ofensa à sua honra feminina caso lhes pedissem para trabalhar. O trabalho existe apenas para o homem. A mulher é durante toda a sua vida a senhora, a patroa, a verdadeira filha de um velho povo de senhores. Esse é um valor de todo o povo brasileiro e estende-se até as mais baixas camadas da população. É preferível morrer de fome e ficar em farrapos, mas bancar o grande senhor, do que trabalhar e com isso, um dia, tornar-se realmente um senhor. ( Dr. M. F., Kalender, 1924, p. 43).

Nessas representações, a mulher foi posicionada como a salvação ou a perdição do homem alemão, da família alemã e, por extensão, da germanidade. Este posicionamento estava intrinsecamente vinculado à instituição do casamento em que a adequação e a legitimidade era conferida àquele que unia um homem alemão a uma mulher alemã. Quando a mistura ocorria, o casamento menos adequado era aquele que unia um alemão a uma mulher de outra raça, porque nele se perdiam “com certeza” a língua e, provavelmente, também a fé, uma vez que o Protestantismo Luterano era uma religião racializada nesse momento histórico. O casamento chegava a ser qualificado como desastre quando

o jovem leva para casa uma romana. Este vai sozinho para a roça, planta, limpa e capina sozinho, ele se mata de trabalhar e trabalhar, pois com o sangue alemão ele herdou, também, a diligência. Mas, sozinho, ele não consegue nada. Falta a metade. O trabalho o sufoca. Por fim ele se desespera, joga a enxada no chão e abandona a esperança de uma vida melhor. Aborrecido, ele agora planta apenas o necessário para satisfazer um escasso sustento. Dívidas o pressionam. A bela casa com a qual sonhou, com paredes brancas e janelas de vidro, como tinham os seus pais, não é construída. O rancho coberto com grama e com as paredes de argila, que presenciou a alegria de sua lua-de-mel será o asilo de sua velhice, onde ele, consciente de ser um fardo para seus filhos, encontrará o descanso eterno.(Dr. M. F., Kalender, 1924, p. 43).

Uma das diferenças mais acionadas no contexto da oposição mulher alemã/mulher brasileira fundamentava-se, no contexto deste estudo, em concepções que dimensionavam, de forma diversa, o trabalho doméstico “naturalmente” desempenhado pela mulher no âmbito destes grupos culturais. Se, por um lado, a delimitação do que seja doméstico remetia, no caso dos teuto-brasileiros, à concepção de trabalho do campesinato alemão é preciso, por outro lado, buscar entender a sua relação com o Protestantismo Luterano e isto remete à compreensão da articulação de gênero com religião, a última dimensão a ser ainda discutida no âmbito deste trabalho.

A Reforma Protestante colocou em xeque uma ética religiosa medieval católica que estava, fundamentalmente, centrada no pressuposto de uma vida que só poderia tornar-se plena depois da morte e fora da terra e o fez, reposicionando os sentidos que, até então, definiam o que se entendia por sagrado. Com Lutero a idéia de sagrado passa a incluir, de forma importante, também aquilo que está no mundo e isso constitui o que ele chama de dimensão temporal ou regime secular. Este reposicionamento está estreitamente ligado a um princípio teológico importante para o Protestantismo, que se expressa pelo conceito de Beruf e sua tradução mais próxima pode ser vinculada ao termo vocação ou chamado [divino]. Max Weber (1967) explica que esse princípio incorporou ao trabalho secular e cotidiano, independentemente de sua natureza, uma dimensão quase que religiosa (sagrada, portanto) e fixou à noção de cumprimento do dever, no contexto desse trabalho, o mais alto grau de moralidade que o indivíduo podia/devia atingir:

Nesse conceito de vocação manifestou-se o dogma central de todos os ramos do protestantismo (...) segundo o qual a única maneira de viver, aceitável para Deus, não estava na superação da moralidade secular pela ascese monástica, mas sim no cumprimento das tarefas seculares, impostas ao indivíduo pela sua posição no mundo (op. cit., p. 53).

Ocorre que alguns argumentos desenvolvidos por Lutero, a meu ver, generificaram de forma explícita esse conceito de Beruf e isso se pode perceber, por exemplo, em sua “Carta aos Conselhos de todas as Cidades da Alemanha” (1995, p. 318) onde ele acentuava que “o mundo precisa de homens e mulheres excelentes e aptos para manter seu regime secular, para que então os homens governem o povo e o país, e as mulheres possam governar bem a casa, educar bem os filhos e governar a criadagem”. Governar a casa tem, nestes textos de Lutero, um sentido que se aproxima do conceito de economia na filosofia aristotélica, um termo que, aí, se refere à administração doméstica e se contrapõe à política, ou seja, à arte de administração da cidade ou do Estado. Ao associar isto com outras dimensões da Teologia Luterana, como por exemplo as interpretações que o reformador faz dos eventos da criação e da expulsão do paraíso, pode-se entender o governo da casa como sendo um dever, sagrado para a mulher, que implicava em assumir a responsabilidade por todas as tarefas que pudessem impedir o homem de concentrar-se, com todas as suas forças, em seu próprio trabalho. Desta forma, a ressignificação de trabalho como Beruf teve implicações bastante diferentes para mulheres e homens: para elas a sacralidade foi traduzida como a capacidade de providenciar as condições para que os homens pudessem realizar, de forma plena, a sua vocação.

Na verdade, o que se depreende da leitura de autoras como Barbara Stolze (1995), Andrea Bieler (1994) e Hannelore Erhard (1993) é que o próprio casamento é profundamente ressignificado com a Reforma Protestante. Lutero teria representado (e vivido) este sacramento como um mecanismo que possibilitava o controle do caos social e individual porque ele instituía um lugar para o qual se canalizavam, de forma segura e ordenada, as emoções e a satisfação de todas as necessidades básicas espirituais e biológicas (inclusive a satisfação dos instintos sexuais). A instituição da casa pastoral conferiu ao casamento e à família um estatuto sagrado e anulou, ao mesmo tempo, o princípio de que o celibato e a castidade (os fundamentos da vida monástica católica) constituíssem instâncias privilegiadas de exercício da fé. A interpretação que Lutero fez das escrituras, a partir da qual elaborou sua perspectiva teológica das relações entre os sexos, articulada a esta ressignificação do matrimônio, acabou por produzir a representação de que casamento e maternidade biológica constituíam a vocação (Beruf) natural e abençoada da mulher, uma perspectiva que esteve profundamente implicada, por exemplo, com a produção das especificidades da identidade docente que se construiu no contexto desse grupo cultural.

É Hannelore Erhard (1993, p. 77-8)) quem refere que o princípio básico que fundamentava o matrimônio luterano, qual seja, o de um organismo cuja cabeça era constituída pelo homem e cujo corpo correspondia à mulher, foi elaborado a partir de uma interpretação particular de várias passagens bíblicas, destacando-se, em especial, duas delas. O evento da criação teria fornecido o argumento de que, no mundo, apenas o homem havia sido criado à imagem e semelhança de Deus e isto lhe conferia uma posição de domínio sobre a mulher, criada a partir de uma costela retirada de seu corpo. Nesta argumentação, a relação da mulher com Deus era mediada, justamente, por sua subordinação ao ser que, na terra, mais se assemelhava a Ele. O evento da expulsão do paraíso teria acrescentado a estas concepções acerca da relação de mulheres e homens, a dimensão de formas distintas de expiação do pecado original: Deus teria destinado ao homem o trabalho e a responsabilidade pela sobrevivência e à mulher a reprodução e o cuidado da espécie.

A autora refere que o conjunto destas interpretações forneceu as bases da hierarquização que se fortaleceu, em outros contextos históricos, com a oposição entre produção/reprodução, trabalho remunerado/ não remunerado e, ainda, entre público e privado. Uma hierarquização cuja inscrição na estrutura teológica do Protestantismo Luterano se deu de forma tão poderosa que seus efeitos ainda puderam ser visibilizados na luta que as mulheres protestantes travaram, na Alemanha e no Rio Grande do Sul, pela conquista de espaço profissional tanto no magistério quanto no pastorado, desde o século XIX até meados do século XX; um processo cuja discussão não cabe neste artigo mas que analisei extensamente em minha tese de doutorado.

 

Algumas considerações finais

Talvez fosse importante começar estas “considerações finais” pontuando que este trabalho não foi norteado pela pretensão de descobrir e/ou descrever as “verdadeiras” características ou “a essência” da cultura teuto-brasileiro-evangélica e das representações de gênero que nela se produziram e/ou se fizeram circular. Trabalhei com um referencial teórico que aponta, justamente, para a impossibilidade da existência de verdades e/ou de essências universais e transcendentes. No entanto, ao sujeitar-me a esse referencial teórico, que coloca noções como pluralidade, contingência, instabilidade, diferença e desigualdade no centro dos processos de produção de culturas e de suas identidades sociais, foi possível explorar, exatamente, a heterogeneidade e a diversidade de interesses e de conflitos que permearam a produção de representações de gênero em sua articulação com outros importantes marcadores sociais, no contexto desse grupo cultural, no período estudado e esse é, em minha avaliação, um dos pontos fortes desse trabalho.

Nessa perspectiva, a discussão feita aqui tornou possível, então, entender alguns dos mecanismos e estratégias que estiveram implicados com a produção de representações de gênero específicas, no âmbito desse grupo cultural. No processo de produção destas representações determinadas especificidades parecem ter sido universalizadas e passaram a funcionar como se fossem “atributos”, naturais e imutáveis, compartilhados por todos os homens e mulheres do grupo. Foi possível perceber, também, que as representações hegemônicas de gênero, em ação no contexto estudado, tanto foram produzidas pela articulação contingente de vários marcadores sociais e no interior de diferentes processos históricos e políticos quanto estiveram imbricadas na constituição dos sistemas simbólicos, das instituições e das práticas sociais e culturais que produziram (e modificaram), ao longo do tempo, esta cultura teuto-brasileiro-evangélica e as identidades sociais que ela colocou em circulação, no contexto e no período estudado.

Desse modo, também procurei colocar em funcionamento, nesta análise, uma afirmação que, em nosso meio acadêmico, ainda tem ficado bastante no plano das intenções ou das recomendações, quando trabalhamos com conceitos como gênero, classe, raça e/ou nação, dentre outros. Ou seja, procurei fazer, aqui, uma análise que buscou compreender a produção de determinadas representações de gênero num determinado tempo e lugar, pela sua articulação/confronto com diferentes marcadores sociais: nação, raça, religião e classe social. Mesmo que tivesse ampliado o grau de dificuldade do trabalho, esse desafio acabou por se transformar, para mim, em um de seus atrativos especiais.

Considerando-se, pois, que o referencial de análise aqui adotado ainda não tem tido grande penetração nas áreas em que se têm desenvolvido grande parte das pesquisas acerca da imigração alemã no Brasil e, em especial, no Rio Grande do Sul, penso que meu estudo pode gerar debates interessantes e profícuos e apontar para outras possibilidades de investigação nesse campo. Além disso, no campo específico dos estudos acerca da imigração alemã no Rio Grande do Sul, as relações entre os diferentes marcadores sociais que analisei foram, até aqui, pouco exploradas e isso faz dessa temática um tema instigante, sobre o qual ainda há muito para ser investigado. Assim, ao fim e ao cabo, estudos como este que apresentei, aqui, permitem ampliar o debate em torno das potencialidades e dos limites analíticos que uma aproximação crítica entre os Estudos Feministas, os Estudos Culturais e a perspectiva Pós- Estruturalista colocam para a teorização social contemporânea.

 

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[1] Este trabalho é parte de minha tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do sul, em maio de 1999.

[2] Professora Adjunto na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação e pesquisadora do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero.

[3] Para uma leitura mais detalhada do referencial teórico-metodológico que fundamenta minha análise neste trabalho, cf.  Meyer, 1999 (2º capítulo).

[4] Cf. a discussão acerca das implicações teórico-metodológicas da adoção desta definição em Louro, G. Gênero, História e Educação: construção e desconstrução. Educação e Realidade, v. 20, n. 2, jul/dez 1995 e em Meyer, D. Do poder ao gênero: uma articulação teórico-analítica. In: Lopes, M. et al. (orgs.) Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

[5] Os termos colônia e colonização serão usados, neste trabalho, com o sentido que lhes é atribuído nesse contexto histórico. De maneira genérica colônia remete à designação do rural em contraposição ao urbano e, de maneira mais específica, designa a pequena propriedade rural e as benfeitorias nela consideradas essenciais: casa, estábulo, animais e plantações. (Cf. Seyfert, 1985 e 1993). Colonização refere-se ao processo de assentamento das famílias de imigrantes europeus, nas terras delimitadas e divididas em lotes coloniais, nos estados do sul do País.

[6] Os excertos de textos retirados das fontes de pesquisa e transcritos neste trabalho serão apresentados, aqui, em português. A traduções foram feitas por Rita Dolores Wolf (vinculada ao PIBIC UFRGS/CNPq)  Para ter acesso aos textos originais, em alemão gótico, cf. Meyer, 1999.

[7] Cf. Meyrer, M. Evangelisches Stift: uma escola para “moças das melhores famílias”. São Leopoldo: Unisinos, 1997. Dissertação. (Mestrado em História).

[8] Ver, por exemplo, o poema de Wolfgang Ammon intitulado “Hino do teuto-brasileiro”, em que ele inicia a estrofe em que fala da relação com o Brasil dizendo “Heil dir Brasil, du Vaterland” e a estrofe em que fala das relações com a Alemanha, dizendo “Heil Deutschland dir, du Mutterland”(Kalender, 1936, p. 97).

[9] Elias, em “O processo Civilizador” (1989, p. 44 -5) distingue o conceito de Kultur alemão, do conceito de civilização francês e inglês, dizendo que o primeiro vincula-se, basicamente, a movimentos/valores intelectuais, artísticos e religiosos e exclui, nitidamente, a política, a economia e a organização legal e social. A produção deste conceito está profundamente imbricada no contexto histórico e político alemão dos séculos XVIII e XIX.