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Grupo de Trabalho 4
A Criminologia e a Construção de Gênero, Classe e Raça

 Eleonora Zicari Costa de Brito[1]

 

Introdução

O estudo da literatura criminológica produzida no séc. XIX e início do século XX – momento marcado pelo esforço de seus teóricos em criar para esse campo de estudo um  pretenso saber científico – na França assim como no Brasil, permite o exame de variadas construções acerca do que vem a ser a mulher e o homem do ponto de vista da delinquência. Da mesma forma, é um campo propício para o acompanhamento da construção de estratégias capazes de validar as teses sobre periculosidade e defesa social – pontos básicos das teorias positivistas e neo-clássicas da escola de direito penal. A associação, por exemplo, do conceito de periculosidade às classes menos favorecidas, assim como às raças consideradas por esses teóricos como inferiores, foi uma representação constantemente trabalhada por essa literatura. Quanto ao gênero, tanto homens quanto mulheres foram concebidos a partir de recortes que reforçavam ou mesmo criavam referências mantenedoras de uma ordem social altamente hierarquizada entre os sexos. Para o estudo, principalmente, das representações do gênero feminino na criminologia brasileira, tomo sobretudo a produção de Afranio Peixoto, médico, professor da Faculdade de Direito no Rio de Janeiro e um dos primeiros criminologistas do Brasil, como objeto de análise.

 

A Escola Clássica de Direito Penal

É a partir do século XVIII, com os estudos de Cesare Beccaria, que se assiste ao nascimento do que podemos denominar um  pensamento criminológico. Em 1764 o público italiano toma conhecimento de sua mais importante obra (ainda publicada sob o sigilo de um pseudônimo), Dos Delitos e das Penas, trabalho em que procurou sistematizar seus estudos, abrindo caminho a esse campo de pesquisa.

Representante mais importante da escola liberal clássica, Beccaria entendia que o crime supunha uma quebra do “contrato social”, baseado, segundo acreditava, no livre-arbítrio existente entre os homens. Portanto, o crime era uma entidade jurídica que só existia em virtude da lei. Partindo desse princípio, entendia que

... apenas as leis podem fixar as penas com relação aos delitos praticados; e esta autoridade não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda sociedade agrupada por um contrato social.[2]  

A pena para essa escola distinguia-se entre seu fundamento e seu fim. O fundamento dirigia-se à culpabilidade do sujeito, enquanto o fim, volta-se a impedir que a lei fosse outra vez violada, seja por quem a infringia ou pelos outros cidadãos.

Falando contra a prática da tortura, ainda comum em seu tempo, Beccaria chamava a atenção para a necessidade de adotar-se certos critérios para alcançar-se os efeitos desejados das penas. Como nos mostra Zorrilla, para a escola clássica: “La medida de la pena habrá de ser, pues la proporcionalidad com el daño causado y su utilidad para lograr la intimidación de los individuos.”[3] Portanto, a pena deveria ser escolhida considerando-se a proporção entre ela e o crime cometido, além da igualdade em sua aplicação, assim como seu efeito de eficácia e a impressão duradoura que poderia deixar entre os homens, em outras palavras, ela deveria ser exemplar, e “la menos dolorosa sobre el cuerpo del reo.”[4]    

O que é importante reter para a discussão que aqui proponho é que para Beccaria e a escola clássica em geral os homens são sujeitos de direito, com vontade e liberdade para escolher entre o certo e o errado (livre-arbítrio), salvo exceções como no caso dos reconhecidamente loucos e das crianças, a quem não se poderia atribuir esse direito, visto não serem responsáveis. Portanto, criminosos e não criminosos não são distintos, confundem-se e só se separam pelo desejo de transgressão. Baseando-se nesse pensamento é que se construiu o edifício jurídico explícito nos códigos penais da era moderna, onde para cada crime existe uma pena preestabelecida.

 

A Escola Positivista de Direito Penal

Estudando a produção criminológica do século XIX e início do XX na França, Ruth Harris mostra a existência de diversas correntes médicas que, à época, lutavam por construir um espaço de autoridade junto aos tribunais de justiça, procurando intervir inclusive na legislação. Embora guardassem diferenças entre si, essas correntes identificavam-se pela associação que faziam entre crime e loucura e pela oposição ao sistema clássico, propagador da doutrina do livre-arbítrio.

O sistema jurídico clássico vai viver, portanto, a partir do século XIX, a ferrenha oposição das novas correntes positivistas que, de forma sistemática, condenavam a premissa do livre-arbítrio, baseada, segundo alegavam, em fundamentações metafísicas e morais. A ela contrapunham o saber científico, reivindicando a intervenção do saber médico, o único capaz de alcançar as cada vez mais complexas classificações de estados mórbidos da loucura no diagnóstico dos réus. Segundo nos mostra Harris,

O sistema jurídico clássico – o código penal e sua confiança na doutrina do livre-arbítrio e da responsabilidade moral – tornou-se objeto de críticas e de revisão básicas para este conjunto  variado de médicos, juristas e reformadores penais. Essa nova geração de especialistas sócio-científicos duvidava das rígidas categorias do código penal e sugeria que considerações técnicas, e não morais, fossem utilizadas para favorecer um programa mais eficaz de administração social.[5]

Pregavam então um sistema que deslocasse o foco de atenção do crime para o criminoso. Como explicita Harris, “Os criminalistas sugeriam um sistema que diagnosticaria a extensão da doença de cada criminoso ou criminosa e a possibilidade de conter seus impulsos anti-sociais”[6]

O que propunham, portanto, esses especialistas, era a sua participação efetiva no diagnóstico do réu, visto que a loucura, nem sempre aparente, muitas vezes escondia-se do observador leigo, fazendo-se necessária a sua detecção, a posse de um saber científico. Em nome da injustiça de se condenar um doente, os médicos elaboraram suas teorias “libertadoras”, lutando para impô-las contra o pensamento clássico. Estava sendo criada a criminologia como conhecimento baseado na “ciência”.

Em suma, como explica Zorrilla, para as correntes positivistas

El crimen no es sino la expresión necesaria de una personalidade no libre, sino determinada por factores de orden antropológico, físico, psíquico o social identificables y reconocibles; el fundamento de la reaccón penal no se halla en culpabilidade sino en la peligrosidad del sujeto y su fin há de ser la neutralización de esse peligro.[7]

Assim, o crime se “ontologiza”, convertendo-se em dado objetivo, observável, analisável, preconstruído e natural. Por sua vez, a indistinção clássica entre criminosos e não criminosos desfaz-se, pois, a rigor, alguns são mais criminosos (instinto latente ou personalidade mais propensa ao desejo de transgredir) que outros. Cabe então ao criminólogo, detectar as causas do crime e as características dos criminosos, agindo de forma preventiva sobre eles.   

 

A Construção do Desvio Feminino

Na França do século XIX, uma dessas correntes positivistas, a neurofisiologia, empenhava-se em descrever a insanidade como uma doença física. Era a associação da medicina-patológica à pesquisa neurológica.  No caso específico das investigações sobre a criminalidade feminina, essa corrente era representada pelos estudos que seguiam mais de perto as pesquisas  realizadas por Lombroso, para quem a relação entre prostituição e menstruação era bastante evidente. Como mostra Harris,

Na sua obra La Femme criminelle et la prostituée, (...), os antropólogos criminais italianos, Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, viram a menstruação como um estado que desencadeava o lastro universal e latente de perversidade erótica que havia sob a frigidez característica das mulheres. As prostitutas, principalmente, demonstravam a periculosidade dessa combinação. Elas sangravam precocemente e em grande quantidade, ‘fatos naturais’ que mostravam os elos entre indícios externos e características internas degenerativas.[8]

Este tipo de associação acabou, segundo demonstra a autora, por expandir-se nos estudos subsequentes para além do universo da prostituição. Assim,

... todos os membros do sexo feminino [passaram a ser] considerados com inclinação à loucura e à violência durante o período menstrual. (...) Deduzia-se (...) que todas as mulheres eram potencial e periodicamente loucas, reduzidas à animalidade por suas funções físicas.[9] 

Refém das intempéries provocadas por seu corpo, a mulher não poderia, de modo geral, responder pelos atos mais terríveis que viesse a cometer. Nesse sentido, muitos casos levados aos tribunais e que contaram com o auxílio de médicos ligados a essa corrente, acabaram por garantir a absolvição de mulheres acusadas do assassínio de maridos, filhos, amantes etc, como bem nos mostra o estudo de Harris. Entretanto, isso não era regra geral. Muitas vezes, embora empenhados em garantir a validade de suas teorias em seus argumentos médicos-legais, os médicos não descartavam a hipótese de que algumas dessas supostas assassinas agiam não por impulso fisiológico (insanidade), mas por motivos fúteis que nenhuma relação guardavam com o primeiro.[10]

Outra dessas correntes francesas foi a neurofisiologia evolucionária que distinguia-se da primeira por adicionar ao campo da neurofisiologia experimental, a neurologia clínica e a psiquiatria. É de responsabilidade deste grupo, por exemplo, o estudo das “metades do cérebro” que definia o “hemisfério esquerdo do cérebro como sede material de qualidades ‘civilizadas’ superiores”, e a consequente associação do “lado direito à feminilidade, passividade e emoção, enquanto o esquerdo geralmente correspondia à masculinidade, atividade e racionalidade.”[11], o que acabava por justificar a menor inclinação das mulheres para o crime – quando comparada aos  homens – e, por outro lado, a menor responsabilidade delas frente aos delitos que cometiam. Justamente por serem mais “o lado direito do cérebro”, estavam as mulheres muito mais propensas, por exemplo, aos acessos místicos.

Entretanto, havia entre os franceses uma significativa reserva frente às teorias lombrosianas. A noção formulada por Lombroso de criminoso nato cujas marcas anatômicas previamente detectadas permitiriam uma política de intervenção anterior mesmo à consecução do crime – era vista com desconfiança pela maioria dos especialistas franceses pois, via de regra, estes não acreditavam no excessivo reducionismo anatômico implícito naquele conceito.

Assim, muito mais numerosas entre os franceses eram as teorias que buscavam formular-se contrapondo-se aos determinismos tão presentes no trabalho do italiano. Mas, nem por isso deixaram de criar outros e, muitas vezes – e de forma até surpreendente – reforçar algumas das premissas caras aos lombrosianos.[12]

Uma dessas teorias era a da degeneração. Em meados do século passado a teoria da degeneração e a consequente discussão da hereditariedade tornam-se prioritárias nos debates sobre as causas morais e biológicas da criminalidade. A escola francesa criminológica da degeneração tomará como referência principal, em sua abordagem da questão, as teses de Auguste Morel, que procurava entender o fenômeno como uma síntese da hereditariedade, do ambiente e do declínio moral.

O objetivo de Morel era assegurar, através de sua teoria, a “intervenção preventiva contra indivíduos perigosos e [as] condições deletérias do ambiente”. Para isso ele propunha “um sistema classificatório em que todos os distúrbios mentais eram meras manifestações do substrato patológico de degeneração latente”, o que, como observa Harris, apontava para a observância da transmissão de “tendências patológicas gerais, e não traços específicos[13], posição que aparentemente o afastava das teses lombrosianas. Em síntese, os especialistas franceses não viam correlação direta entre estigmas físicos e morais, muito embora reconhecessem a existência de “alguns sintomas físicos surpreendentes que indicavam automaticamente a degeneração”. No âmbito da sexualidade, por exemplo, “eles demonstravam [que] propriedades sexuais perturbadas como o hermafrodismo ou desenvolvimento excessivo dos seios nos homens[14], representavam alguns desses sinais.

 Como os seguidores franceses da teoria da degeneração trabalhavam também a perspectiva do meio ambiente como influindo decisivamente no processo de criação da delinquência, as questões dos tempos modernos e da nefasta influência da civilização nesse processo tinham lugar de destaque na elaboração de seus tratados. Na explicação dessa trama, não faltou a esses teóricos uma incursão por justificativas eivadas por convenções de gênero caras à época, como explicita Harris no trecho a seguir:

A civilização encorajava variações insólitas, oferecendo uma explicação tanto para o excesso de loucos e criminosos como para a superabundância de intelectuais e artistas. O fato de que as mulheres, menos avançadas que os homens, demonstrassem menos variedades era evidência das consequências paradoxais do intenso desenvolvimento evolucionário que produzia indivíduos excepcionais ao mesmo tempo que criava uma classe de outros anti-sociais.[15]

O “progresso”, portanto, era, nessa perspectiva, uma péssima influência sobre os homens, mais afinados com os elementos da civilização do que as mulheres – muito mais primitivas que eles e, portanto, menos afeitas a sofrerem os males da degeneração.

De todo modo, mesmo quando delinquiam, as mulheres representavam para esses especialistas, uma “meta de reforma mais fácil que os homens”, porque menos propensas às terríveis consequências da modernização. Baseando-se numa suposta “natureza” feminina esses especialistas atribuíam às mulheres uma moralidade mais firme quando comparadas aos homens. Em parte isso devia-se à maior religiosidade delas, assim como à manutenção, mesmo depois da transgressão, de sentimentos maternais. Assim,

‘a mulher decaída’ deveria ser reeducada dentro dos conceitos adequados de moralidade doméstica. Realmente, o sistema de confinamento em celas, a ênfase nas ocupações silenciosas e, acima de tudo, isoladas eram vistos como particularmente propícios à índole feminina.[16]

Todas essas investidas “científicas” não deixaram de encontrar uma forte oposição de juristas mais próximos das premissas clássicas e que, à época, viam-nas como uma invasão a sua competência. Entretanto, alguns juristas mais afinados com as modernas teorias, tomavam-nas sem tanta crítica, alegando tratarem-se de “descoberta científica que não mente” como mostra Harris no relato de um caso estudado.[17] 

Se esse conjunto de teorias buscou constituir-se como resposta humanitária, cujo objetivo mais premente era livrar doentes de penas que poderiam chegar à morte, alegando não ser justo criminalizar aqueles que não possuiam discernimento, com o tempo essa meta cederá lugar à preocupação com a noção de defesa social. “Não se pensava mais em tratamentos humanitários e até em possíveis curas; sobrava apenas uma desagradável tarefa de custódia[18], objetivo esse que com o tempo foi encampado por alguns juristas.    

Essa preocupação fazia-se acompanhar de uma nova estrutura de debate em torno da questão da responsabilidade moral e da idéia, transformada em conceito, de risco criminal,[19] defendido na França por Saleilles, jurista de renome internacional. Asseverando não ser mais possível trabalhar com a noção de responsabilidade individual, visto que a maior parte dos crimes eram consequência de distúrbios causados pelo mundo moderno, “nas quais uma combinação infinita de pressões sociais atuava sobre a autonomia do indivíduo (...) Saleilles instava a sociedade a reconhecer o risco do crime e planejar um sistema de ‘defesa social’ para conter seus efeitos perigosos[20].

A partir de então a criminologia francesa passa a admitir a necessidade de individualização da pena, o que a aproxima da criminologia italiana.

O programa de defesa social conjecturado concentrava-se nas fontes de risco contidas no état psycho-social do infrator. A orientação judicial, portanto, exigia uma avaliação individual para se tratar cada infrator segundo o risco que ele representava, um programa contrastante com o sistema clássico de uma penalidade predeterminada associada a um crime e não a um indivíduo. Enfatizando assim a ‘individualização das penalidades’, os franceses haviam aceitado um preceito básico da Antropologia Penal italiana, sucintamente resumida por Raffaele Garafalo (...): ‘O direito penal reconhece apenas dois termos, o crime e a pena, enquanto que a nova criminologia reconhece três, o crime, o criminoso e a pena’.[21]

A idéia de individualização da pena encontrou acolhida legal no início do século XIX, com a introdução, por exemplo, no Código Penal francês, da consideração das circunstâncias atenuantes e agravantes, o que permitiu a avaliação individual do infrator pelos tribunais. Esta vitória dos criminologistas entretanto, não chegou a garantir a aplicação de todos os elementos de suas teorias, pois encontraram sempre forte resistência a sua aplicabilidade face a permanência nos códigos penais do modelo clássico. Por exemplo, a idéia de periculosidade gerou entre os criminologistas, e mesmo entre alguns juristas, a dúvida sobre como e sobre quem deveria recair a punição: se apenas entre os infratores contumazes ou também sobre aqueles em estado de perigo, propensos ao crime, embora sem tê-lo cometido.[22]

 

A Escola Neoclássica de Direito Penal

Embora sem a aceitação plena dos princípios da criminologia positivista, dita científica – os códigos penais permaneceram baseados no modelo clássico – as práticas dos tribunais acabaram por incorporar alguns daqueles princípios, o que resultou no chamado modelo neoclássico de justiça.[23]

Juristas “conservadores” foram enfáticos em suas críticas à pretensão dos criminologistas de, em nome da ciência, desvendar os mistérios que definiam a criminalidade, e denunciaram os perigos que essa abordagem implicava, como bem explicitou Louis Proal, em 1890:

Se, por um lado, os deterministas desejam proteger a vida, a honra e a propriedade de pessoas respeitáveis, o pudor de mulheres e crianças, preservando o direito ao castigo – mesmo com o risco de inconsistência – então ele deixa de ser justo, eficiente ou proporcionado. Ao invés, o castigo torna-se um instrumento cego de terror, arbitrário e cruel ... Impunidade ou barbarismo, estas são as duas consequências contraditórias das teorias deterministas.[24]   

Entretanto, malgrado toda espécie de crítica que recebeu, as representações implícitas nas teorias positivistas construídas no século XIX, responsáveis pela constituição da criminologia como ciência e área de saber, permaneceram, não só naquele século como também neste, influenciando as práticas judiciárias, determinando sentenças, emergindo sorrateiramente ou explicitamente nos discursos dos agentes envolvidos em determinar quem era o criminoso e qual a pena que lhe cabia. Como nos mostra Harris,

. o debate nos tribunais não focalizava o état dangereux explícita e implicitamente; mas, a interpretação de periculosidade social dificilmente era um processo objetivo, baseava-se ao invés na classe social, na política, no gênero, no estilo de vida (manière de vivre) do infrator ou infratora e suas declarações no tribunal.[25]      

Por isso mesmo prevalecerá nas práticas judiciárias um certo ecletismo que fará combinar as representações de periculosidade, e os projetos de defesa social – que se não foram amplamente aceitos também não foram de todo abandonados – e as cada vez mais desacreditadas noções de responsabilidade moral e livre-arbítrio, implícitas no sistema clássico.

 

Construindo a Criminologia no Brasil

No Brasil, os debates que marcaram a constituição da criminologia como área de conhecimento vinham-se desenvolvendo desde fins do século XIX, firmando-se no início deste século com a criação de cadeiras especializadas nas faculdades de medicina e direito e nos vários institutos criados com o intuito de funcionar como auxiliares nas decisões dos tribunais e influenciar nas reformas da legislação.

A trajetória profissional do médico Afranio Peixoto simboliza magistralmente os embates em torno da definição dos parâmetros a serem adotados na constituição da moderna ciência da criminologia no Brasil.

Afranio Peixoto formou-se em medicina em 1897. Segundo Afrânio Coutinho, autor da introdução à obra que reúne a produção romancesca de Afranio Peixoto,

Das amizades entre os mestres da velha Faculdade de Medicina, as de Nina Rodrigues e Juliano Moreira serão decisivas para a sua personalidade intelectual, orientando-o nos estudos de especialização, a medicina legal e a psiquiatria, nas quais escreveu os primeiros trabalhos, inclusive a tese de doutoramento, Epilepsia e Crime.[26]

Formado pela Escola de Nina Rodrigues, Peixoto não fugiu à regra, comum à sua época, de defender um projeto de eugenia capaz de restituir à nação a saúde de sua população, considerada degenerada em função de fatores ligados à herança genética. Era em função do processo de degeneração que ele explicava a presença cada vez maior, não só no Brasil como no mundo civilizado em geral, de criminosos e criminosas. Mas o autor acreditava ser possível enfrentar esse problema:

Para prover a isso há a eugenia, a bôa geração, a bôa criação (Galton) que reune e propaga, depois de investigar para resolver, os problemas biológicos da gestação, para que se produzam sêres sadios e válidos, dotados de todas as qualidades requeridas a um perfeito exemplar humano. É um mundo novo, entrevisto e esperançado ...[27]

Ao recorte racista,  pai de todas as teorias de eugenia, associava-se o de classe –   por mais que o autor o negasse. Em certo trecho do mesmo livro, por exemplo, Peixoto  dirá que a injustiça social afasta dos estudos a maioria da população pobre, com isso excluindo muitos indivíduos capazes; por outro lado, seleciona a maioria de ricos, em grande número “incapazes afortunados”, o que acaba proporcionando um exército de seres de nível inferior, de onde “se recrutam os dirigentes da sociedade, advogados, juizes, militares, engenheiros, médicos, jornalistas, funcionarios ...”.  É assim que, segundo o autor, se forma uma “nata, escol, elite, incapaz, ininteligente, inferior.”[28] Há nesse discurso, sem dúvida, uma ferrenha crítica do autor à elite dirigente. A suposta ausência de discriminação de classe em sua argumentação, entretanto, deve ser vista com reserva, já que, por um lado, é ela que oferece o argumento necessário à crítica que ele deseja elaborar e, por outro, a sucessão de exemplos que o autor toma para comprovar sua tese desmonta a impressão anterior, pois neles é clara a discriminação de classe que fundamenta seus argumentos. Dois exemplos são bastante representativos do uso que ele faz do recorte de classe. Dizendo basear-se em estudos desenvolvidos nos Estados Unidos, Peixoto apresenta dois casos que ilustram a validade das teorias de eugenia que defende:

Max Jukes, nascido em 1720, era um pescador, fraco de espírito, cuja descendencia é de mais de 2000 pessôas. Pois bem, destes, 300 morreram recemnascidos, 600 foram debeis mentais; 60 foram ladrões habituais, 130 criminosos diversos condenados a penas graves; 7 assassinos, 300 prostitutas, 440 vagabundos, maltrapilhos, precocemente inválidos e mortos, 300 finalmente, ociosos, que nunca procuraram ganhar honestamente a vida: apenas 20, em todos êstes, exerceram uma profissão e a metade dêles aprenderam o ofício no cárcere ... .[29]

Como contraponto, Peixoto cita outro caso. Embora sem identificar a profissão do responsável pela descendência, fica claro não se tratar de um pescador, nem de nada parecido.

Jonathan Edwards teve tambem prole numerosa: há dez anos seus descendentes andavam por 1394. Dêstes descendentes 295 formaram-se em universidades, 13 foram diretores de colegios, 65 professores, 60 medicos, 100 padres, 75 oficiais, 60 escritores que produziram 135 obras, algumas de valor, 30 juizes, 3 senadores, 1 vice-presidente da República: nenhum membro da familia foi jamais condenado por justiça.[30]

E finaliza com a seguinte indagação: “Como os Edwards, não haveria vantagem social em só permitir a procriação dos capazes, dos não tarados?[31]

Sua carreira teve início no Hospital de Alienados do Rio de Janeiro (1902), à época sob a direção de Juliano Moreira, onde fez parte do corpo médico e, em 1906, tornou-se professor da cátedra de Higiene e Medicina Legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde permaneceu por 40 anos.  Como nos mostra Mariza Corrêa,

O gradual envolvimento dos professores de Medicina Legal com os gabinetes médico-legais da polícia dos estados poderia ser visto retrospectivamente tanto como uma estratégia de apropriação por parte deles dos serviços policiais – visão preferida por eles – quanto como uma lenta conversão de médicos em criminólogos.[32]  

Este foi o caso de Afranio Peixoto, cujo nome batizou o Instituto Médico-Legal criado no Rio de Janeiro no início deste século, do qual foi um dos mais importantes impulsionadores e onde foram firmadas várias das teses da moderna criminologia no Brasil.

Embora declarando-se partidário das teorias oriundas da escola neoclássica de Direito Penal (ou técnico jurídica, como prefere chamar), Afranio Peixoto não deixa de compartilhar de algumas das representações próprias da escola positivista[33], muito embora não perca uma só oportunidade que se apresente para ironizá-las, principalmente quando se trata de uma leitura dos princípios de Lombroso. Deste, Peixoto dirá tratar-se de um “exagerado e intolerante, como todos os propagandistas...[34] 

Entretanto, segundo Teodolindo Castiglione, que em 1962 escreve um livro cujo objetivo é demonstrar a validade e atualidade das teses lombrosianas, Afranio Peixoto não teria uma postura contrária a Lombroso,

... porque êste admite fatôres existentes antes do nascimento de certos criminosos; o seu antagonismo (...) está no fato de Lombroso supor que êsses fatôres são o atavismo, a epilepsia, etc. Afrânio Peixoto não nega uma biológica predisposição ao crime; contesta apenas se tenha encontrado a natureza dessa predisposição.[35]

Evidência dessa postura, até certo ponto ambígua, é seu entusiasmo com as teorias oriundas da Endocrinologia. Em trabalho voltado à divulgação dos conhecimentos na área da Criminologia, Peixoto apresenta uma série de avanços que os estudos na área de Endocrinologia vinha legando à primeira, na qual era especialista, pois,

... se os hormonios governam corpo e alma, também as ações individuais e sociais, de que se preocupa o Código [são governadas por eles]: o crime pode ser, e será muitas vezes, determinado ‘hormonicamente’.[36]

Mesmo considerando que anomalias hormônicas não são nem suficientes nem tampouco necessárias à constituição da criminalidade, o autor concorda que são condições facultativas a esta e que testes cada vez mais apurados estariam demonstrando a enorme ocorrência/influência dessas disfunções na explicação de vários casos de transgressão.

Com relação à delinquência feminina, por exemplo, a Endocrinologia, a se confiar no autor, muito teria a dizer. Citando vários estudiosos da área, Afranio Peixoto faz-nos saber, entre outras coisas que “uma mulher assexual, amenoréica, pervertida e tríbade, curou-se, vindo á normalidade, apenas com uma transplantação do ovario, que lhe fez ENGELBACH.[37]  

A esse, outros exemplos vêm se juntar:  Nos criminosos contra a moral, tanto homens como prostitutas, VODONI observou a preferência pelo tipo brevilineo hiper-vegetativo, com pequena estatura. Nessas prostitutas notou traços de caracter masculino e, em algumas, sinais de mongolismo

BERMAN atesta, em 90% dos delinquentes jovens do sexo feminino, hipertrofia tiroidiana.  

[Segundo Pende] Os delinquentes contra a moral e as prostitutas apresentam hábito hipergenital ou disgenital, com anomalias endócrinas genitais.[38]

Interessante observar como aos delinquentes do sexo masculino associa-se sempre a prostituta. É como se não pudesse existir a criminosa não prostituta, melhor dizendo, mulher criminosa é, necessariamente, nesse discurso, sinônimo de prostituta. Não por outro motivo, os livros de criminologia sempre abrem um capítulo à discussão da prostituição.

Para Peixoto, a maternidade seria uma saída à determinante hormonal da criminalidade feminina:

 O amor, o amor materno, a maternidade, o aleitamento ... são exigências glandulares (...) Ao alívio de um seio vazio, esvai-se, com o leite, a ternura.[39]
E a foliculina? Saberia o leitor o valor desse hormônio na constituição da normalidade/desvio da mulher? Se ele falta, temos mulheres frias, se sobra, temos messalinas. Mas deixemos que o próprio autor nos apresente as propriedade desse “super” hormônio.
A virtude, a castidade, a honra ... Porque não? Uma insaciada e insaciavel Messalina, as “Donas Juanas” de “oestro” permanente, têm apenas foliculina demais, ou hormonio principal do ovario, que já se obtem cristalizado ... Uma impassível Madame Recamier, “glaçons” ou mulheres de gêlo, sem oestro, são sem foliculina ... Uma aplicação desse hormonio, e o dia é noite, a indiferença será provocação, a virtude vicio, mais ou menos hormonio ovariano ... Velhas aposentadas tornam-se eruptivas, meninas impúberes tornam-se explosivas, com a foliculina. As mulheres invertidas, as mulheres estereis, as mulheres obesas, naufragadas na gordura, indireitam-se, curam-se, adelgam-se com a foliculina. Foliculina, és toda mulher! DOISY, MARRIAN, BUTENNANDT, ZONDEK, DEVRAIGNE, SAUPHAR ... não me deixam mentir.
[40]

Ora, a foliculina nada mais é que o hormônio responsável pela fecundação, processo natural da “maquinaria” feminina, pelo qual todas as mulheres devem passar. Por isso mesmo, dirá o autor:  Compreende-se como a castração ovariana da mulher, produza até a loucura, a loucura endócrina que é, tantas vezes, assassina: o cirurgião, suprimindo uma peça importante do maquinismo, deteriora toda a maquina ....

Prova disso é o terrível caso relatado pelo autor: “O Dr. Arnaldo Quintela foi, assim, victima de uma de suas operadas ...[41].   

Em capítulo dedicado à análise dos crimes passionais, Peixoto, mostrando-se contrário à excessiva condescendência com esse tipo de transgressão, imputará ao romantismo tanto o estímulo a tal prática criminosa quanto à atitude geralmente compreensiva de juizes, advogados e do público em geral diante desses crimes.

Após explicar a relação causal entre a mentalidade romântica e os crimes passionais, o autor traça o tipo feminino fruto dessa mentalidade. São mulheres frívolas, que tanto dão motivos para que as paixões tipicamente românticas aflorem permitindo, no limite, o crime passional contra elas próprias, quanto, estimuladas pelo mesmo sentimento romântico, sentem-se autorizadas a praticá-los contra seus parceiros infiéis.

Quem são essas mulheres, segundo o autor fabricadas ardilosamente nos três últimos séculos pela moral romântica?

[São] manequins de futilidades e de joias, trapos caros e cheiros carissimos, que demandam, para servi-las, criados, carruagens, palacios. Estes luxos fazem marchar a industria e fazem viver o comercio, dizem, por justificação: à custa de quem? Dos que trabalham, necessariamente, porque elas não fazem trabalho algum, de nada se ocupam: apenas de serem brunidas nas unhas, penteadas nos cabelos, massadas, duchadas, ungidas, perfumadas, vestidas, adereçadas. ‘Amar, continua o romancista, é sua religião: pensa apenas em agradar a quem ama. Ser amada é o fim de todos os seus actos, excitar desejos o de todos os seus gestos ...’ Foi o que essa civilização fez, da mulher: uma máquina de prazer.[42]

Terrível civilização romântica que tirou a mulher do seu trabalho (!!!) colocando-lhe o desejo no lugar: “Bem feito! Criaram a excitação e dela morrem à mingua. Daí as complicações sentimentais, a furia amorosa, o crime passional ...”[43]

É interessante notar como a caracterização da mulher que comete ou sofre o crime passional é atravessado por um recorte de classe muito preciso: são mulheres ricas, caprichosas, fúteis. O crime passional é, para o autor, um crime de gente rica, pelo menos aqueles que chegam às manchetes dos jornais.

A isso soma-se o culto da masculinidade reafirmada pelo descontrole frente aos avatares da paixão. Está justificado moralmente o crime passional. 

A privação dos sentidos e da inteligencia do nosso artigo 27, [parágrafo] 4, é a derimente de todos os crimes em que entra a mulher. Porque o brasileiro, galanteador, não póde ver ou sentir uma dessas criaturas, sem amor. Principalmente no jure. Nelas não se bate, bem entendido, nem com uma flor. Mata-se logo, e é um encanto retórico ler a imprensa, ouvir os comentários, sentir a compaixão de todos pelo infeliz e simpatico assassino passional. Todos e todas quizeram consolá-lo, casar com ele ou com ela. É ‘exciting’! A mais rendosa e mais segura profissão do mundo é a do criminoso que mate criatura de outro sexo, porque, tendo bom advogado e boa imprensa, além de absolvição, terá emprego, conjuge à escolha, e até benemerencia.[44]  

O mais grave para o autor é que a própria criminologia reafirma esses valores e, nesse ponto, o sistema clássico assim como o positivista não se diferenciam, pois ambos encontram-se sob o jugo da ordem romântica. Carrara, representante do pensamento clássico, admitia, segundo o autor, que “há paixões cegas, violentas, que tiram a razão ao apaixonado, lhe paralizam os freios inibitorios: quase ceder a elas é um merito, pelo menos, merecem a absolvição plena”. Já Lombroso, afirmava, segundo Peixoto, que o “criminoso passional é belo ... [e que] à sociedade para a qual eles não apresentam perigo algum, podem eles ser muito uteis, graças ao altruismo exagerado de que são sempre dotados.”[45]

Para o autor, porém, é preciso por fim à cultura romântica que faz apologia ao crime passional e o caminho indicado para isso é o trabalho, pois o “boemio desregrado” “foi víctim do romantismo”. Numa sociedade onde todos trabalhem (...) não haverá tempo a perder (...) E adeus, amor romantico, obsessivo, e criminoso ... Morreste, perverso amor! Adeus, crime passional glorificado! Paixões, sereis de novo punidas e impedidas e refreadas.

Amor sem paixão, dessexualizado, eis a outra receita:

O homem amará, amará a mulher, simplesmente, decentemente, sem luxo, sem punhal, sem perversões, sem morfina, sem revolveres, sem adultérios, sem profanações, sem crimes passionais. Será uma função da vida, como as outras. Comer, beber, dormir não têm sua dignidade? A domesticidade dos afetos, a maternidade, a paternidade, a fraternidade, a amizade, tem os seus encantos, dedicações, sublimidades, discretas, justas, honestas ...[46] 

Seguindo a tradição lombrosiana que associava inapelavelmente os crimes femininos à prostituição, Peixoto abre em seu manual um capítulo específico para discuti-la a partir de um aporte oriundo da criminologia. Sempre rodeado de dados estatísticos (seus e de outros estudiosos da área) o autor demonstra que a prostituta nata, ou de índole considerada doente, bem à moda lombrosiana, equivale a uma minoria dos casos estudados, sendo os fatores sociais e econômicos os que mais contribuem na formação desse exército de “degeneradas”.

Apoiando-se em diversos autores, Peixoto dirá que as prostitutas natas são, em geral, “fracas de espírito”, “débeis mentais”, ou, como afirma Vidoni, possuidoras de “taras endócrinas”, tais como:

... estados adiposos por hipo-função ovariana, devida (sic.) á blenorragia; caracteres viris, dos pêlos, da laringe, das nadegas, mongolismo, por hipo-função ovariana que dá hormonios ‘virilgeneticos’; hiper-função que exagera o oestro ou o apetite sexual, a menstruação precoce, prematuridade sexual, ou (...) utero infantil, seios pequenos. Na realidade são estes os tipos mais procurados, e dão as mais infatigaveis profissionais.[47]   

Já a imensa maioria, fruto da exclusão social e econômica, “mantida pelo egoismo masculino, que obriga á concurrencia (sic) de trabalho para comer e subsistir, á mulher, naturalmente mais fraca e gravada (sic) pelo onus da procriação, gestação, maternidade, aleitamento, criação e educação dos filhos ...”[48], sofre de males bastante conhecidos. São em grande número filhas de famílias desestruturadas – pais  alcoólatras, mães de “procedimentos não ilibados”, famílias numerosas – instrução ineficiente, vítimas de sedução, abandono após gravidez, “divorciadas, que se casaram muito cedo”, não exercem ofício algum ou, apenas “ofícios de passagem”, tais como: cantoras, empregadas do comércio, domésticas, manicures, cabelereiras, professoras, mesmo normalistas” .... . O autor admite que em relação a essas “a inferioridade dos salários e a amoralidade dos patrões ou clientes, entrou, como determinante do descaminho.”[49]

Evidentemente quando se refere à necessidade da mulher se ocupar com o trabalho, já que a frivolidade é um dos males geradores das paixões, mãe dos crimes passionais, o autor provavelmente refere-se ao trabalho doméstico, já que, ao que parece, qualquer outro representa uma porta aberta à prostituição.[50] Da mesma forma é evidente que em sua análise sobre a prostituição feminina o autor acaba por produzir mais uma vez um recorte de classe, pois o trabalho fora de casa – “para comer e subsistir”, como bem lembra o autor – à época praticamente restrito às mulheres de classe menos favorecida, seria o principal responsável pelo fenômeno. A prostituição, portanto, seria para o autor, um crime feminino típico de mulheres pobres.

Enfim, a cidade, com seus prazeres, é outra grande responsável pelo fenômeno da prostituição. A vida noturna,

... os passeios e jardins, o cinema, o dancing, o luxo, as ceias,  automóveis, bebidas, prazer ... conduzem as raparigas inexperientes e sequiosas de gozo, joias e vestidos, ao prostibulo. O nosso Carnaval inicia, cada ano, novas sacerdotizas do amor á retalho ...[51] 

Contrariando a tese de que as mulheres, embora mais “infantis e primitivas” que os homens, possuiam menor tendência à criminalidade, o autor afirma que

... as mulheres não são menos criminosas que os homens; na criminalidade doméstica elas nos igualam (OETTINGEN) e ainda muitos crimes ha que lhe são proprios (DURCKHEIM): infanticidios, abortos, envenenamentos, que ficam ignorados, desconhecidos, impunes; isto compensa que, na rua, onde as relações delas são menores e menos ativas, pratiquem menor número de delitos.[52]

Se não sabíamos ainda como se constrói “naturalmente” a divisão dos crimes pela diferença sexual, uma última passagem exemplifica magistralmente essa “arte”:

O sexo impõe, dados os costumes, crimes especiais: se o infanticídio e o lenocínio são quasi exclusivamente feitos por mulheres, os crimes contra a obrigação militar e o estupro só podem ser feitos por homens (L’ADISLAU TROT).[53]

Portanto, o crime tem sexo e a criminologia tem como prescrever os remédios necessários à prevenção dos crimes femininos: agir sobre a família desestruturada e pobre, assim como, sobre a mulher considerada “livre”.

Afranio Peixoto defende as teses que lhe são simpáticas tendo por referência o  Código Penal então em vigência.[54] Por ele a situação da mulher é ainda de extrema desigualdade em relação ao homem. Por exemplo, considera-se como circunstância agravante da pena o delinquente ter superioridade em sexo (art. 39), o que pressupõe a inferioridade de um sexo sobre outro. Matar um recém nascido implica em pena de 6 a 24 anos (art. 42), entretanto, se “o crime fôr  perpetrado pela mãe, para ocultar a desonra propria”, conta-se com circunstância atenuante e a pena cai para 3 a 9 anos. Já o Código Civil em seu art. 6º estabelecia que as mulheres casadas, “enquanto subsistir a sociedade conjugal”, são consideradas incapazes relativamente a certos atos  (art. 147) ou a maneira de os exercer.

Lutando, como todo criminologista de sua época, pela incorporação do conhecimento produzido em seu campo de saber na reforma do novo Código Penal, assim como no Civil, Afranio Peixoto procura dar sua colaboração, apresentando novos  limites e modificadores de direitos e deveres, com relação a capacidade e responsabilidade de homens e mulheres nos códigos.

A questão do sexo como limite ou modificador da imputabilidade penal é explicitada em capítulo de outro trabalho do autor.[55] Nele Peixoto mostra-se desfavorável à manutenção da idéia de inferioridade da mulher em relação ao homem no que se refere à situação que determina circunstância agravante em caso de o delinquente ter superioridade em sexo (art. 39) pois, segundo defende,

Se de facto o sexo feminino é relativamente mais fraco do que o outro, (...) o caso concreto póde não dar razão á diferença, póde até ser dela inviezado, quando se trata de uma mulher robusta e sã e de um homem fraco e definhado.[56]   

Já a circunstância atenuante no caso do aborto ou infanticídio praticado para resguardar a mulher da desonra, é aceito pelo autor como válido. Assim ele explicita seu ponto de vista:

A mulher grávida, a mulher mãe, são degradadas na sociedade, quando não justificam, antecipadamente, pela lei civil ou religiosa, a geração. As resultantes desses erros sociaes são os danos a que os violentados recorrem, infelizmente com frequencia crescente: as fraudes prévias á concepção, e, se elas não bastam, o abôrto, e até o infanticidio. (...)
Sem ironia, poder-se-ia dizer que a atenuante representa, neste caso, a contribuição, injustamente negada, do homem, no crime de que foi, moral e materialmente, cumplice.
[57]

 

Dos Tratados de Criminologia às Páginas da Literatura

As atividades intelectuais de Afrânio Peixoto não se limitaram à criminologia. Ele foi também um romancista de certo sucesso, membro da Academia Brasileira de Letras, tendo conseguido “emplacar”, entre 1910 e 1925, sete romances, todos reeditados, de modo a atender o interesse que sua “obra” parecia alcançar principalmente entre o “público feminino”, como diria um crítico por ocasião do lançamento de um dos seus romances.

Está em pleno triunfo o autor de A Esfinge. Mal chegado às livrarias do Rio de Janeiro, já o livro está esgotado. Disputam-se com avidez os raros exemplares. Os críticos mais em evidências dedicam-lhe artigos admirativos. Da primeira investida, conseguiu êle coisa extraordinária no Brasil, conquistar o público feminino. Que não há hoje mundana de certo tom que, à hora dos chás elegantes, ou nos intervalos do Municipal, não pergunte, num sorriso admiràvelmente malicioso ‘que me diz da Esfinge?’.[58]

Sua produção romancesca, como nos mostra Afrânio Coutinho, esteve sempre centrada em dois eixos: a questão do regionalismo e a do universalismo:  ao “conflito entre cidade e campo, através da sedução exercida pelas ‘frutas do mato’ sôbre a mentalidade dos homens civilizados da cidade” somou-se sempre a preocupação com o universal “o que o faz encarar o mito de Helena de Tróia em diversas figuras de mulher, com o propósito de decifrar o ‘eterno feminino’”.[59] Ou seja, a pretexto de debater as questões concernentes ao regionalismo e ao universalismo, o autor investiga a atração exercida pelo feminino nos homens, transformando as mulheres em metáfora daquela dicotomia. 

Em seu primeiro romance, de 1900, Rosa Mística, o mote de sua produção romancesca já se encontra formulado. Nele, o autor conta a “história de um pai que mata a própria filha para que ela não se conspurque com o amor (...).”[60]

Sobre A Esfinge (1911), seu segundo romance, assim o próprio autor o situa: “A Esfinge seria a mulher, que decifrada ou não decifrada, pelo encanto ou pela incompletação do sonho, daria a todos os homens a miséria.”[61]

Já nesse romance o autor toma o mito de Helena de Tróia para justificar sua tese sobre a natureza maligna da mulher. Assim seu comentarista define essa idéia:

A beleza é a origem de todos os flagelos e infelicidades do homem. Helena de Tróia foi a causa de uma guerra monstruosa. Bela e bondosa, casta e pura, modesta e doméstica sem que nada fizesse para provocá-lo, foi, contudo, a origem de uma calamidade, exclusivamente pela presença maligna de sua beleza. Nenhuma desgraça maior do que a dessa mulher, que, pela fatalidade de sua formosura e feitiço, arrastou os homens, durante dez anos, a se destruírem mutuamente.”[62] 

Toda a sua obra se construiu em torno do mito da beleza causadora, inconsciente ou deliberadamente, da loucura dos homens, ou da beleza geradora do mal. Pelas páginas de seus romances desfilam as personagens que encarnam esse tipo: Lúcia, Maria Bonita, Joaninha, Salvina, Gracinha, Luizinha, Bugrinha, Sinhàzinha, a Bageense.  Tôdas são ‘frutas do mato’ pois as próprias ‘civilizadas não são menos instintivas’”, diz Afrânio Peixoto.[63]

Para encarnar a sua idéia de que a beleza é um mal, imprimiu-lhes um sentido diabólico, emprestou-lhes almas complexas e perversas, que exercem uma ação dominadora e fascinante sôbre os homens, ao mesmo tempo hipnotizando-as como serpentes. Sua técnica revela um psicólogo profundo e arguto da alma feminina. Houve quem lhe criticasse nos tipos femininos uma certa semelhança entre si, o que não deixa de ser em parte verdadeiro. É que a idéia central é, nelas, a mesma: a do caráter aniquilador  pela beleza. Mas essa idéia o autor explora por diversos ângulos, como se fôsse uma só alma, cujos arcanos se mostrassem diferentemente, como num caleidoscópio, em seus mistérios e delicadezas, sutilezas e incoerências. Êle mesmo o disse, pela bôca de um personagem da Fruta do Mato: ‘Elas não são iguais, não senhor, cada mulher é uma. E há cada uma!’.[64]

Afranio Peixoto transpõe para as páginas da literatura os tipos criados nos tratados de criminologia. Há, em todas, a presença atávica do mal, deliberadamente colocado em prática por umas e inconscientemente por outras. Em suma, toda mulher representa um perigo e toda vigilância é pouco frente a esse poder arrasador e incontrolável. Suas personagens femininas são todas portadoras do mal, da mais recatada – Maria Bonita é exemplar – à mais pervertida – a Bageense de Uma Mulher como as Outras, talvez a que melhor simbolize esse tipo.

A primeira, Maria Bonita, figura central do romance do mesmo nome,  é uma moça interiorana de sentimentos puros e extraordinária beleza. É justamente sua beleza a responsável pelas enormes desgraças e infelicidades que acontecem a sua volta. Cobiçada pelos homens, faz com que aqueles que a cercam sejam levados à tragédia,  irmão, pai, marido e o grande amor de sua vida, independente de sua vontade. “Todos arrastados pela fatalidade que está dentro dela e [que os faz transformarem-se em] assassinos ou miseráveis.[65]

  Helena Vaz é a Bageense, mulher fatal, que tem os homens que quer sem, contudo, se entregar a nenhum deles. Até que conhece Vergílio, o narrador, e sente por ele um “legítimo” sentimento de amor. Ciente de sua natureza irremediavelmente ruim, Helena o repele, abdicando de seu amor em nome desse mesmo amor.

Pergunte por mim, aí em torno. Mulher diabólica. Vampiro ... Circe ... que se repasta no sangue, na ruína, na humilhação dos que a amam. Sem coração! ... [Mas tudo o que dizem] É falso ... Ainda tem coração, para dizer, uma vez na vida ... ‘afaste-se de mim, fuja ... olhe a perdição!’ [66]  

Como se vê, ela própria assume seu irremediável poder de destruição, pois tem plena consciência de que o carrega dentro de si.

Tudo muda, entretanto, quando Vergílio “cai” na armadilha de outra mulher que o arrasta para um compromisso cujo futuro, antecipa  Helena, seria a ruína de seu amado. Uma das três filhas do comendador Serpa, para quem Vergílio trabalhava, e cuja licenciosidade da família é constantemente lembrada pelo narrador, Adelina (Lili), a pretendente, mantém, conscientemente ou não, uma estranha relação com o padrinho, que passa a investir no futuro casamento de fachada da afilhada. Nas palavras de Helena:

... eu o precipitei num casamento, numa família sem moralidade ou de fácil moralidade, e casava-o com alguém que o ia fazer infeliz. Fôsse você digno ou fôsse condescendente. Êstes julgamentos por mim podem parecer cômicos. Eu não entro em conta e não me iludo a ninguém. Posso não desejar isso para os que estimo. O risco que você corria era pelo bem que eu lhe queria. Sim, agora que você corria perigo, é que eu sabia o bem que lhe queria ... .[67]

Descoberta a trapaça por Helena, esta declara seu amor por Vergílio e compromete-se a “matar” a Bageense e viver honestamente, trabalhando num atelier de chapéus, desfazendo-se de sua fortuna, morando num convento e vestindo-se modestamente, purgando-se assim da vida mundana que até então levara. Ao final de um ano de sacrifícios – tempo determinado por ele para a expiação de todos os pecados cometidos pela Bageense, ou como ela própria dissera, “expiação necessária” que ele lhe propusera – “a cada pequeno sofrimento, sacrifício, humilhação, sinto-me melhor, porque pareço menos indigna do meu objetivo”[68] – nos quais se incluiu até mesmo uma relação não carnal com seu amado, este mostra-se pronto a casar-se com Helena como retribuição ao sincero sacrifício que ela lhe oferecera. Mas eis que ela o surpreende recusando-lhe a proposta. Helena, “regenerada”, mostra-se disposta a viver com Vergílio sem “regulamentar” a situação, o que, segundo ela, seria sua derradeira prova de amor e, ao mesmo tempo, garantia de sua independência.

- Porque sou senhora de mim, e trabalho para isso, dei-me inteiramente a êste senhor, sem condições, enquanto me quiser
- Eternamente, continuou Helena ... isto é, enquanto nos agradarmos um ao outro. Se daí sobreviver ... .
[69]

O romance acaba repentinamente, acentuando a perplexidade do narrador frente a atitude da amada, dando a entender que pairavam dúvidas no ar. Como poderia se explicar que uma mulher abdicasse do papel de esposa? Seria isso uma prova de amor ou uma estratégia para deixar aberta a porta para o retorno no futuro da Bageense?     

 A essa imagem de mulher junta-se, nos romances de Peixoto, uma outra  tão recorrente quanto aquela: a do homem eternamente encantado e enganado pelos estratagemas femininos. São homens frágeis, tolos mesmo, pois só depois de sofrerem toda sorte de desgraças é que tomam consciência da malignidade que, afinal,  toda mulher traz consigo.

Em sua autobiografia, Afranio Peixoto dirá sobre sua produção romancesca:

Procurei estudar a mulher, com fidelidade e ternura: é o maior encanto da vida. Para mim, até a arte é mulher: não se pode ser fraco com ela – só a dominação traz a posse.[70]

 

À Guisa de Conclusão (ou para onde nos conduz este olhar)

Como se viu, a Criminologia constituiu-se em saber apoiando-se em teses marcadamente centradas em pressupostos racistas, de classe e de gênero, construíndo-se a partir de recortes altamente hierarquizados.

Evidentemente o campo de debate da Criminologia sofreu, e vem sofrendo, enormes transformações, sendo comum hoje encontrar entre seus especialistas críticas contundentes a essa disciplina, entre elas algumas que chegam ao limite de negar a existência de um objeto de estudo à área (o crime ou o criminoso), já que este teria sido forjado pela tradição nos moldes aqui apresentados.[71]

Entretanto, nunca é demais lembrar a permanência de muitas daquelas teses em nossas práticas cotidianas. Seja nos tribunais, na mídia, ou no senso comum, a presença de referências deterministas e biologizantes no entendimento do fenômeno da delinquência tem se mostrado constante e assustadoramente atual. Alguns exemplos ajudam a ativar o olhar dirigido a esse problema. 

Em plenos anos 90 um fantasma teima em nos espreitar: é Lombroso que, de forma sempre surpreendente, retorna das catacumbas onde parecia definitivamente  enterrado, como mostram alguns rumorosos casos de homicídio fartamente noticiados na mídia.

Os casos protagonizados por dois diferentes jovens, que em 1994 assassinaram seus pais e, num deles, a irmã e os avós, são exemplares. A reportagem da revista Isto/É assim apresenta a matéria: “Assassinos dentro de casa”.[72] Logo na primeira entrada a reportagem estabelece quais seriam os limites para o entendimento do fato pois, muito à vontade, decreta o seguinte diagnóstico: “Distúrbios neurológicos e psicológicos levam Carlos Alberto e Gustavo a se tornarem os algozes dos próprios pais.” De temperamentos absolutamente diferentes – Carlos Alberto, nascido em Porto Alegre numa família abastada, sempre fora o filho rebelde, enquanto Gustavo, filho de uma família classe média do interior de São Paulo, mostrara-se sempre um filho amável – os protagonistas dessa história de terror têm seus comportamentos esquadrinhados por médicos, criminalistas, advogados que, num esforço de compreender o incompreensível, ou, melhor dizendo, no intuito de achar “a causa” de algo marcadamente atravessado por complexas variantes, produzem a aproximação dos dois pelo diagnóstico mais que batido: ambos foram movidos por um determinante, a loucura. Como mostra a reportagem, Os especialistas em esquadrinhar o comportamento humano não duvidam de que eles sejam assassinos. Mas no lugar do adjetivo frio colocam a etiqueta de doentes mentais ou vítimas de distúrbios psicológicos graves, pessoas incapazes de discernir o certo do errado. (grifos meus)        

Nada poderia ser mais significativo da permanência das teorias positivistas do século XIX do que esse pequeno fragmento, caprichosamente escolhido por representar muito bem o tom de toda a reportagem.

Um mês depois, outra reportagem na mesma Isto/É[73] ainda trata do assunto, agora para mostrar a polêmica que os primeiros diagnósticos, alardeados inclusive por aquele veículo, causaram entre os especialistas. É a guerra entre peritos. De um lado, o psiquiatra Guido Palomba, segundo a matéria “especialista a quem cabe dizer em nome do Estado se um criminoso é ou não mentalmente são”, de outro, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo.

Palomba foi o responsável, embora não atuasse no caso, pelo diagnóstico de epilepsia condutopática atribuído a Gustavo, o paulistano bom filho que matou os pais, a irmã e, em seguida, após uma viagem de ônibus até a cidade onde moravam seus avós, assassinou-os. Segundo Palomba, a epilepsia condutopática é uma doença que pode levar as pessoas a matar. Acusado triplamente pelo CRM/SP de conduta anti-ética por manifestar-se em caso onde não atuava, por divulgar tese sem embasamento científico – a doença jamais teria sido catalogada pela Organização Mundial de Saúde – e por não se manter atualizado – segundo alegam, “Palomba teria estacionado seus conhecimentos nos primórdios da criminologia e da psiquiatria forense” -  o psiquiatra defende-se com a seguinte explicação: “É absurdo dizer que a epilepsia não representa surtos de agressividade e psicoses e que, durante esses surtos, o paciente não possa cometer crimes.” Dividindo a epilepsia em três tipos – a neurológica, a psicótica e a condutopática ou comportamental – Palomba afirma que as duas últimas são promotoras de condutas que podem levar à prática do homicídio. Alega que esses conceitos foram desenvolvidos no Brasil a partir de estudos realizados na década de 50 pelo psiquiatra Walter Maffei e que isto é “o que há de mais moderno na área.” Seus críticos lembram que nada há de novo nesses conceitos que muito devem “ao médico e criminalista Césare Lombroso – que chegou ao ponto de afirmar que através de traços fisionômicos seria possível prever a periculosidade de um homem”. Pelo encaminhamento dado pela reportagem ao assunto, desta vez parece vencer a tese dos opositores de Palomba: “Não existe doença que transforme o indivíduo num criminoso”.

No mesmo ano de 1994, outro caso, agora envolvendo um casal de namorados, ganhou as manchetes de jornais e revistas do país. Trata-se do assassinato cometido contra os próprios pais pela estudante de Direito Andréia Gomes Pereira Amaral, de 20 anos, para o qual contou com a ajuda do namorado Daniel, três anos mais novo que ela.

Diferente do caso citado anteriormente – que ocorre poucos meses depois deste – o psiquiatra chamado a opinar sobre o assunto para o Correio Braziliense, embora ressalte não  possuir uma boa base para suas afirmações, já que só conhece os envolvidos pelas páginas da mídia, acredita que Não se pode dizer que os assassinos sejam psicóticos, uma vez que não têm delírios ou alucinações, não romperam com a realidade. São pessoas lúcidas que, no caso do garoto, desde os 14 anos queria matar alguém porque encontrava prazer nisso. Esse tipo de doente é semi-imputável, uma vez que tem capacidade de discernimento.[74] (grifos meus).

Segundo o delegado responsável pelo inquérito policial, Andréia planejou o duplo assassinato “por dinheiro”. Mais algumas linhas adiante e já vemos levantar-se contra ela novas suspeitas: era muito namoradeira, já teria feito aborto, “era uma vagabunda”, como afirmou uma vizinha. O comportamento de Andréia choca pela frieza. Descoberta, ela é presa e pousa rindo para as fotos dos repórteres. Mas o caso ganha maior complexidade frente ao depoimento prestado pela estudante quando de sua prisão. Ela teria sido estuprada duas vezes pelo pai (aos 15 e 17 anos) e a mãe – pairam dúvidas sobre se seria mesmo sua mãe – teria se submetido, por exigência do pai, a pelo menos 8 abortos. Diante desse drama a repórter questiona: “quem é mais monstro?  o pai ou a filha?”.  Não parece o retorno às teses apresentadas por Afranio Peixoto que vê no desvio feminino um determinante familiar? Aqui o caso parece não ser fisiológico, mas sim, estritamente ligado à condição de mulher da protagonista.

Bem mais próximo de nós, os casos do motoboy, “assassino do parque”, e do estudante de medicina, “assassino do cinema”, mostram a pertinência de nos mantermos atentos à presença de teses bastante próximas àquelas desenvolvidas no âmbito da criminologia positivista pois, mais uma vez, a associação entre crime e loucura entra na pauta de discussão da mídia e põe em alvoroço os especialistas das áreas envolvidas em desvendar o porquê desse crimes.[75] 

Discutir sobre as práticas e representações presentes nas práticas da justiça nos dias de hoje, implica necessariamente voltar-se a uma reflexão que considere a força das construções próprias daquelas teorias que se encarregaram, no passado ainda recente, de dizer quem eram os delinquentes.

 

 

[1] Professora do Departº de História da Universidade de Brasília – UnB, onde trabalha na Área de Teoria da História. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UnB, na Linha de Pesquisa História: Discurso, Imaginário e Cotidiano. O presente trabalho é uma versão de parte de um capítulo da tese que desenvolvo sobre a forma como os agentes da justiça constróem imagens que buscam significar as jovens e meninas, consideradas delinquentes, com passagem pela Justiça de Menores de Brasília.

[2]Cesare Boccaria. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Bushatsky, 1978, p. 109.

[3] Carlos González Zorrilla. “Para qué sirve la criminología? Nuevas aportaciones al debate sobre sus funciones.” in  Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 2, nº 6, Instituto Brasileiro de Ciências Sociais, abr./jun. de 1994, p. 8.

[4] Idem, ibdem.

[5]Ruth Harris. Assassinato e Loucura. Medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p.24.

[6]Idem, p.25.

[7] Carlos González Zorrilla. Op. cit., p. 9. (grifos meus)

[8] Ruth Harris. Op. cit., nota 31, p.85.

[9] Idem, p. 46/47.

[10] Esse foi o caso por exemplo de Marie C., ama de leite que tentou envenenar o filho de seus patrões. O médico responsável pelo diagnóstico da acusada “procurou determinar se o ato fora devido a um ‘impulso mórbido’, a um caráter instável ou a alterações fisiológicas produzidas durante a lactação.” Nesse caso o médico concluiu que a causa do crime fora o antagonismo (embora a autora não esclareça, deve tratar-se de antagonismo de classe) e não a insanidade.  Idem, p. 45.

[11] Idem, p. 54.

[12] Embora procurassem se afastar da idéia de “criminoso nato” dos italianos, também os franceses estavam preocupados em detectar e definir tipos de estados mentais e físicos que predispusessem o indivíduo ao crime. Como mostra Harris, “como os italianos, eles cada vez mais viam o crime como uma patologia social e não como uma fraqueza moral do indivíduo ...”. Entretanto, como fugiam ao determinismo biológico implícito nas teorias dos italianos, os franceses – cujas análises reservavam importante papel também para a ação do meio ambiente nos processos de degeneração – acabaram por garantir uma aceitação mais tranquila de suas teses junto às práticas dos tribunais,  provando ser “uma adversária da jurisprudência clássica mais flexível, e finalmente mais eficaz, do que o atavismo biológico dos italianos.” Idem, p. 100.

[13] Idem, p. 62.

[14] Idem, p. 77.

[15] Idem, p. 75 (grifos meus).

[16] Idem.

[17] Segundo a autora “Embora uma substancial maioria de juristas resistisse à criminologia, os ‘progressistas’ entre eles a apoiavam em graus variantes de entusiasmo (...) e até admitiam que o problema da degeneração tornava o modelo clássico de administração da justiça cada vez mais difícil.” Idem, p. 109. O caso citado encontra-se na página 104.

[18] Idem, p. 106.

[19] Cf. Idem, p. 117 e 119. O conceito de “risco criminal” foi, como nos mostra Harris, uma adaptação do recém criado sistema sobre a responsabilidade dos patrões nos acidentes de trabalho sofridos por seus empregados. Deste sistema resultou, por exemplo, a idéia de um seguro que garantisse o pagamento pelo dano sofrido sem ter que necessariamente definir um culpado, já que o trabalho industrial, segundo Saleilles, implicava sempre em algum risco.  Nesse sentido, a discussão sobre “risco criminal” inseria-se num debate mais amplo que buscava definir o lugar do Estado como árbitro na resolução dos problemas sociais.

[20] Idem, p. 122.

[21] Idem, p. 124.

[22] O criminologista francês Prins perguntou por ocasião de um Congresso de juristas: “O delinquente deve ser punido pelo que fez, pelo pelo que quis fazer, ou pelo que ele é?”. A mesma consideração aparece na fala de um jurista, assim explicitada: “não deveríamos considerar perigosos os réus primários ou mesmo aqueles que não cometeram crime? ” Idem, p. 125.

[23] “... uma das características mais impressionantes desse período foi a notável elasticidade do sistema clássico de jurisprudência que aguentava firme os ataques e emergia ainda mais forte no controle de muitas de suas tarefas nos tribunais, usando preceitos criminológicos porém jamais se submetendo totalmente a eles.” Idem, p. 128.

[24] Louis Proal. “Le Déterminisme et la pénalité” in Archives d’anthropologie criminelle. nº 5, 1890, p. 391. Apud  Ruth Harris. Op. cit., p. 129 e 130.

[25] Ruth Harris. Op. cit., p. 131.

[26] Afranio Peixoto. Romances Completos. Organização, introdução e notas de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora José Aguiar, 1962, p. 13.

[27] Afranio Peixoto. Criminologia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1933, p.31. Primeira edição também de 1933, p. 276. (As citações respeitam a ortografia original do texto).

[28] Idem, ibidem, p. 278.

[29] Idem, p. 276.

[30] Idem, p. 277.

[31] Idem.

[32] Mariza Corrêa. As Ilusões da Liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista: EDUSF , 1998, p. 221. (grifos meus)

[33] O que não é de se estranhar se lembrarmos o ecletismo que marcou o nascimento dessa escola, caracterizada, tanto pela crítica quanto pelo amálgama de posturas advindas tanto da escola clássica como da positivista.

[34] Afrânio Peixoto. Op. cit., 31.

[35] Teodolindo Castiglione. Lombroso perante a Criminologia Contemporânea. São Paulo: Saraiva, 1962, p. 285.

[36]Afranio Peixoto. Criminologia. Op. cit., p. 62.

[37] Idem, p. 63.

[38] Idem, p. 65 e 66.(grifos meus)

[39] Idem, p. 58.

[40] Idem, 59.

[41] Idem, p. 60. À página 202 o autor volta a se referir ao assunto, explicando ter-se tratado de um caso de menopausa cirúrgica gravíssima o que acometera a paciente assassina. Trata-se, segundo Afranio Peixoto de uma doença “às vezes criminal: o saudoso cirurgião Arnaldo Quintela foi victima de uma cliente ovariotomizada. 

[42] Idem, p. 123.

[43] Idem.

[44] Idem, p. 124 e 125.

[45] Idem, p. 119.

[46] Ambas citações foram retiradas da p. 124.

[47] Idem, p. 212.

[48] Idem. (grifos meus).   

[49] Idem, p. 213.

[50] Esse problema, assim como outros concernentes ao que o autor considera o comportamento adequado a uma mulher, pode ser acompanhado ainda em outra “obra”, escrita em 1936, onde o autor, sempre muito preocupado com a questão e os mistérios do mundo feminino, trata do assunto. Nesse manual cujo título diz bem a que veio – A Educação da Mulher – o autor louva iniciativas no sentido de se proceder ao esforço voltado à educação formal da mulher; envereda por explicações biológicas definidoras, segundo enfatiza, não de uma inferioridade do sexo feminino em relação ao masculino, mas das diferenças entre eles; e, não satisfeito com o que vem sendo feito pelas feministas resolve falar no lugar delas, atribuindo-se um discurso feminista autêntico. Cf. Afranio Peixoto. A Educação da Mulher. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1936.  

[51] Afranio Peixoto. Criminologia. Op. cit., p. 214.

[52] Idem, p. 211 e 212. (grifos meus)

[53] Idem, p. 212.

[54] É apenas nos anos 40 que o novo e ainda vigente Código Penal será promulgado. Suas teses portanto, são anteriores e tomam por base o antigo Código Penal.

[55] Afranio Peixoto. Medicina Legal. Psico-patologia forense. Vol. II, 4ªed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1935. (As citações manterão a ortografia original do texto)

[56] Idem, ibdem, p. 124.

[57] Idem.

[58] Afrânio Peixoto. Romances Completos. Op. cit., p. 31. Trata-se do comentário de Sousa Bandeira a respeito do romance A Esfinge, lançado em 1911 e citado por Afrânio Coutinho na Introdução da “obra”.

[59] Idem, ibdem, p. 12.

[60] Idem, p. 14.

[61] Apud, Idem, p. 16.

[62] Idem, p. 18. (grifos meus)

[63] Apud, Idem, p. 19.

[64] Idem, p. 18 e 19. (grifos meus)

[65] Idem, p. 22.

[66] Afranio Peixoto. “Uma mulher como as outras”  in  Romances Completos. Op. cit., p.770.

[67] Idem, ibdem, p. 814.

[68] Idem, p.827.

[69] Idem, p.846.

[70] Apud, Idem, p. 33.

[71] Para uma leitura a esse respeito ver o trabalho já citado de Zorrilla.

[72] Revista Isto/É. nº 1307, 19/10/94, p. 106 a 111.

[73] Revista Isto/É. nº 1313, 30/11/94. p. 45 e 46. De título sugestivo (Convulsão Médica) essa reportagem corresponde a uma espécie de mea culpa da revista pelo tom alarmista que empregou na anterior.      

[74] Jornal Correio Braziliense. “Os jovens matadores da rua Pedro Aleixo”.10 de abril de 1994.

[75] Os dois casos foram, no ano de 1999, a sensação da mídia voltada à discussão da criminalidade, juntamente com os aparentemente intermináveis casos de assassinatos em escolas nos Estados Unidos.