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Grupo de Trabalho 3
Mulheres e Ordenamento Social nas Roças em S. Tomé e Príncipe. Notas Exploratórias Sobre o Caso das Caboverdianas  

Augusto Nascimento[1]

 Tendo presentes as mutáveis noções de raça, género e classe, importa saber em que medida a presença de caboverdianas suscitou um conjunto de adaptações contrárias ou marginais à organização das roças e ao estatuto dos grupos ali presentes, ao mesmo tempo que as próprias noções de raça e género, mais do que a de classe, iam sendo refeitas. No que aos caboverdianos diz respeito, a noção de raça mudou profundamente na primeira metade de Novecentos, acentuando-se os traços racializadores e a indigenização da sua imagem. Nalguma medida, esta representação dos caboverdianos, de resto não consensual, visava resolver o que o seu recrutamento e incorporação nas roças comportava de contraditório com a sua condição jurídica e de diferente face aos demais serviçais. Não subscrevendo nem a ideia de evoluções lineares nem, tão pouco, a de necessárias mudanças nas relações sociais devido à resistência dos serviçais, interessará explorar a forma como as caboverdianas obrigaram a mudanças no ordenamento social nas roças, mesmo tendo presente que se tratou de efeitos porventura efémeros.

Em meados do século passado ressurgiram as plantações em S. Tomé e Príncipe, denominadas localmente de roças. Como noutros casos, um crivo decisivo das plantações era o da diferença étnica entre dirigentes e trabalhadores, designados de serviçais depois da emancipação dos libertos em 1875. As roças nunca constituíram população própria pelo que o recurso à importação de braços perdurou sob diferentes regimes jurídicos e administrativos até ao fim do colonialismo em 1975. Consoante as conjunturas políticas e a evolução económica, as roças incorporaram contingentes de mão-de-obra de diferente proveniência e condição, desde os angolas, maioritários em Oitocentos, a moçambicanos e caboverdianos, estes ingressados com maiores ou menores interregnos desde 1903, depois de uma mal sucedida episódica imigração na década de 1860[2]. Parte substancial da força de trabalho no derradeiro quartel do colonialismo, os caboverdianos tornaram-se uma presença a merecer um profundo estudo [3], desde logo pela sua singularidade, quer por razões culturais quer pelo aparente paradoxo da sua incorporação nas roças, porquanto a segmentação social imposta colidia com a sua condição de cidadãos livres.

Num certo sentido, aqui ficam já esboçadas as balizas de uma experiência social de raça e de género, reportada, por um lado, à arquitectura colonial, às mudanças da política mão-de-obra (pela qual só a espaços se perseguiu o propósito da fixação de braços) e à correlação de força das várias sedes de poder e, por outro, às variáveis demográficas da comunidade caboverdiana [4]. Mau grado os solavancos da sua importação, os caboverdianos formaram um grupo sexualmente menos desequilibrado [5] mas tal não significava uma predominância de casais, porquanto havia mulheres emigrantes de motu próprio, voluntárias, defraudadas ou arrebanhadas para efeitos de emigrar, embora os roceiros, ao contrário do que pretextavam, no fundo preferissem mão-de-obra masculina.

Por entre os parcos dados acerca das mulheres nas roças, de algum modo em consonância quer com o viés dos produtores das fontes, quer com a minoria de mulheres entre os imigrados, propomo-nos esboçar algumas reflexões sobre os respectivos papéis e relações de poder nas roças. As trajectórias e experiências dependeram muito das representações em mutação por detrás do aparente monolitismo das roças, a saber, das mais ou menos implícitas mas nem por isso menos operantes representações de raça e de género aplicadas pelos roceiros aos trabalhadores, das que vigoravam entre estes, e, ainda, das que enformavam as reacções destes e, em particular, das serviçais. Na verdade, pelas suas atitudes face aos roceiros e aos companheiros de condição - especialmente os de outra origem -, as caboverdianas também redefiniam as ideias de raça e de género em vigor nas roças. Por fim, todas as representações em confronto eram tributárias do contexto cultural e político hegemónico e dos imperativos que pesavam sobre as roças.

Consumando uma alteração radical de vida, as roças eram para os importados e, em concreto, para as mulheres, uma realidade contraditória. A liberdade das mulheres, resultante da participação no processo produtivo e dos moldes de recrutamento e incorporação, encontrava limites quer no patriarcalismo vigente (em virtude do qual, por exemplo, se remunerava melhor os homens, apesar de nem sempre o desempenho produtivo confirmar a apriorística concepção da melhor prestação produtiva daqueles), quer nos próprios condicionalismos das roças e do colonialismo à organização, à expressão e à mobilidade social dos africanos. No entanto, mau grado a pobreza, as demandas de ritmos industriais de trabalho e o imobilismo social, as roças abriam espaço à definição pelas serviçais de aspectos particulares da sua condição.

Sendo difícil tipificar as atitudes para com as serviçais, diríamos que, para os roceiros, elas se assemelhavam aos companheiros, isto é, eram sobretudo braços. Salvo precariamente e a espaços, as roças não consideravam a família como unidade social, pelo que as mulheres eram, por regra, contratadas como elementos singulares e unidades produtivas, o que tinha tradução na participação produtiva, no salário e no alojamento. Todavia, pese embora a importação de mulheres estivesse facilitada por sobre elas impenderem obrigações de trabalho, tal não se repercutiu num ratio sexual equilibrado dos serviçais. Os roceiros importaram mulheres ao sabor das conveniências políticas, das oportunidades de recrutamento e, ainda, de alguma pressão no sentido da estabilização de força de trabalho. Este conjunto de circunstâncias demandou delas dois papéis, o produtivo e o de uma sofrível estabilização da força de trabalho.

Nenhuma noção de género pesou decisivamente numa divisão de trabalho nas roças, onde prevalecia uma maleável divisão sexual do trabalho. Certas tarefas pareciam reservadas aos homens enquanto outras como a quebra e escolha de cacau eram prescritas às mulheres [6]. Já as tarefas cruciais da capina e da colheita mobilizariam todos os trabalhadores. Na organização do trabalho, as considerações relativas ao género submetiam-se à valia produtiva das mulheres [7]. No virar do século, com a expansão das plantações, o crescimento dos contigentes de contratados e a complexificação do processo produtivo e da própria estrutura e vigilância dos serviçais, ter-se-á acentuado a divisão sexual de trabalho, de resto, um critério conjugado com a separação por grupos étnicos com que se articulava uma noção de raça na qual não cabiam todos os africanos, nomeadamente os caboverdianos.

Sem embargo da esboçada divisão das tarefas, devido à inserção e às regras económicas das roças, aquela divisão não terá tido impacto relevante na vida das mulheres. Assim, alguns dos melhoramentos do virar do século, como as creches, mesmo se não empreendidos na perspectiva da mera legitimação das relações laborais nas roças, não deixavam, dado o esquema tutelar de inserção da mão-de-obra, de relevar do investimento do roceiro num desempenho feminino a seu contento. Por regra, os roceiros norteavam-se pela majoração da utilização produtiva das mulheres. Não parece claro que, na luta pela definição das suas condições, estas possam ter fincado pés numa definição de género donde arrancariam concessões aos roceiros, salvo em casos particulares, como veremos. Ora, no que às caboverdianas respeita, tais casos bastaram para ser questionada a sua valia produtiva.

Previamente à abordagem da resistência das caboverdianas ao trabalho nos moldes costumeiros nas roças, diga-se que elas motivaram maior número de queixas, à primeira vista menos insistentes em relação a mulheres de outra proveniência. Para evitar uma visão essencialista das caboverdianas, de alguma forma próxima dos estereótipos, haverá que entrar em linha de conta com o contexto político da sua contratação. Independentemente do carácter mais ou menos forçado do recrutamento e da teia de cumplicidades entre governadores e roceiros no tocante à mobilização de caboverdianos fustigados pelas fomes, a sua contratação não só tinha de se pautar por padrões mínimos de cumprimento dos contratos, por exemplo no tocante ao repatriamento, como se iniciou numa altura em que o recrutamento de serviçais estava debaixo de fogo de sectores da opinião pública em Portugal e no estrangeiro. Sem um racismo cristalizado, jogando, ademais, futuros recrutamentos no destino dos entrementes contratados, os roceiros tinham de usar de parcimónia na coerção dos caboverdianos. Mau grado quer o constrangimento da desqualificação social inerente, quando não ao arrebanhamento, pelo menos à incorporação nas roças, quer o recurso à violência por parte dos roceiros, os caboverdianos desfrutaram de condições menos adversas do que outros segmentos de serviçais para afirmar - com mais ou menos penosas consequências, entre as quais a deportação para Moçambique -, a sua condição de pessoas livres, facto naturalmente extensivo às mulheres.

Seja pelo seu maior número, pelos papéis sociais que delas se esperavam ou, ainda, pelas mais amiudadas queixas dos roceiros em relação aos caboverdianos por comparação com as motivadas por indivíduos de outras origens, as caboverdianas pareceram menos marginais do ponto de vista da sua participação na vida do grupo do que as mulheres de contingentes de outras colónias. Para os roceiros, as dificuldades provinham do facto delas se mostrarem pouco votadas a trabalhos agrícolas em regime intensivo pois que muitas se apresentavam como lavadeiras, costureiras ou com outras profissões. Desmentiam, portanto, a tradicional e localmente enraizada noção da africana capaz de labutar sem fim. Por outras palavras, representavam-se a si próprias de forma diferente da imagem que delas tinham os roceiros. Estes viam-nas sobretudo como mão-de-obra mas não podiam deixar de entrar em linha de conta com outras noções e preconceitos relativos ao género e ao fenótipo, em razão dos quais elas causavam embaraço e perplexidade e, na conjuntura política dos primeiros anos de Novecentos, tolhiam o recurso pronto à violência. Assim, alguns roceiros não conseguiram sujeitar algumas caboverdianas ao trabalho do mato [8], de alguma forma denotando que, em dadas circunstâncias, o poder individual das mulheres, sobrepujava o poder institucionalizado e corporizado nas roças, de que os roceiros eram agentes. Ademais, em termos individuais, as mulheres podiam obter prerrogativas, isto é, soluções menos opressivas, que não podiam ser alargadas ao grupo étnico, menos ainda ao conjunto dos serviçais. Na procura da solução menos opressiva, à pessoa pouco podia interessar a sorte dos companheiros mas, evidentemente, isto tornava qualquer ganho mais precário. Com efeito, se não os roceiros no terreno, já os absenteístas percebiam que as roças não podiam nortear-se por diferenciações resultantes do confronto de micro-poderes, nem podiam consentir na inversão das relações de poder através das relações sexuais ou de género, propiciadoras de concessões corrosivas da disciplina assente na homogeneidade de condição e na previsibilidade do dia a dia nas roças.

No respeitante às caboverdianas pesava a proximidade somática, contrastante com a das serviçais provenientes do continente, assim como se impunha a sua maior europeização, dados que sugeriam um tratamento diferente do dispensado às demais. Nos primeiros anos da importação de caboverdianos, os roceiros tiveram de aprender a lidar com o peso da imagética da raça, com a maior proximidade cultural e consequente diferença de comportamentos relativamente ao grosso do pessoal angola até então contratado. Num contexto de forçosa atenuação da violência, ocorreu em relação aos homens caboverdianos um mútuo ajustamento, seguido, por entre vagas enunciações acerca da necessidade de maleabilidade no trato com tal gente, de uma mudança de opinião dos roceiros acerca do seu préstimo. Já em relação às mulheres, vários europeus referiram causarem mais problemas que os homens [9], enunciando reservas acerca da capacidade coerciva, nomeadamente quanto à remoção de costumes [10]. Para os roceiros, para além de diferentes das outras serviçais, as caboverdianas eram, sobretudo, inconvenientes.

Tendo, ou não, logrado contornar as imposições dos roceiros, as caboverdianas alimentaram o estereótipo do feitio animoso e belicoso dos caboverdianos, base de uma suposta e, decerto, estereotipada predisposição dos caboverdianos para a reacção violenta aos ditames dos roceiros [11]. Entre os episódios que poderiam ter nutrido essa imagética - talvez mais recente do que ela própria faz crer e talvez exagerada em relação ao enraizamento desse traço idiossincrático -, esteve a agressão a um roceiro perpetrada por uma caboverdiana. Na roça Sundi, a serviçal queixara-se repetidamente de doença, faltaria a uma formatura matinal e recusar-se-ia a ir trabalhar, resolução de que não a demoveu o empregado que, talvez por isso, lhe bateria com uma haste de cacau. Em resposta, a caboverdiana tê-lo-á agredido pelas costas com uma cacetada na cabeça, deixando-o maltratado[12]. Tratava-se de uma reacção não necessariamente inédita, conquanto perturbadora por ocorrer num momento crítico para os roceiros por terem de incorporar segmentos diferenciados de mão-de-obra e se verem conjunturalmente menos secundados pelas autoridades no tocante à latitude do seu poder nas roças. A agressão da mulher ficaria impune porquanto o delegado do curador deixou a serviçal sem o menor correctivo, alegando a igualdade do direito de bater. Ou seja, por circunstâncias políticas (eventualmente, por rivalidades pessoais) ou por considerações mais ou menos difusas atinentes ao patamar civilizacional dos caboverdianos, o factor racial não pesou como de costume na penalização dos serviçais.

Aparentemente, a violência - uma característica não só do ambiente das roças quanto do meio local que apelava à intrepidez pessoal - não andava arredia das relações conjugais. Porém, só ulteriores pesquisas poderão validar, ou não, a ideia da violência como um traço marcante das relações de género [13]. Um indício são as menções à violência nas roças, normalmente associadas à aguardente, mas que teriam como motivo a disputa das mulheres [14]. Ora, os roceiros conviveriam algumas décadas com estes agentes corrosivos (aguardente e desequilíbrio do ratio sexual) não só das relações sociais nas roças como da própria mão-de-obra. De alguma forma, admitiam os comportamentos escapistas como a sequela necessária dos empreendimentos económicos embora, no plano ideológico, aqueles comportamentos fossem imputados a atavismos raciais. Este quadro de condicionalismos - desde a anuência tácita do poder ao desequilíbrio sexual nas roças até à aparentemente anódina violência pessoal - moldaria tanto as relações de género no dia a dia nas roças, quanto a sua concepção pelos roceiros e pelo poder, questão sobre a qual adiantaremos algumas notas.

Vejamos, mundos centrípetos, pautados por constrangimentos e maioritariamente masculinos, as roças criavam demandas, mormente no tocante ao relacionamento afectivo e sexual entre os serviçais. Esta foi uma das necessidades sobejamente reconhecidas à mão-de-obra, em especial neste século quando foi gritante o desequilíbrio entre sexos do pessoal [15] e tal afirmar-se-ia como um condicionalismo das relações de género.

As roças podiam provocar a erosão dos padrões de relacionamento sexual e afectivo e mudar substancialmente, por exemplo, a condição das mulheres. Nas roças, onde não se prosseguia de forma pertinaz o fito da reprodução natural da mão-de-obra, ao acasalamento não subjaziam necessariamente funções sociais não reportadas à vontade dos sujeitos ou aos fins dos roceiros que, todavia, por vezes se imiscuíam no campo perigoso das relações entre serviçais. Os ganhos para as mulheres resultantes da gestão da sua sexualidade podiam ser consideráveis, especialmente tendo em conta a situação de privação social. Porém, elas não definiam sozinhas a sua sexualidade e, logo, a sua condição, tendo de defrontar-se com as pressões dos companheiros de origem (os serviçais caboverdianos) e de condição (os outros serviçais) e, por vezes, dos roceiros, umas vezes em litígio, outras de acordo relativamente ao usufruto das mulheres.

Atenhamo-nos, em primeiro lugar, aos casos conflituais. Nas roças, as relações de género cruzavam-se com as demais relações sociais e podiam representar um mecanismo de diluição da hierarquia. Tal não terá sucedido senão esporadicamente mas isso não significa senão que os roceiros precaviam essa possibilidade danosa. De resto, ela foi comprovada por algumas ocorrências, dirimidas pelo quase imediato refluxo da rebeldia e pela reparação da hierarquia - e, de algum modo, da estima própria dos serviçais - através da substituição dos empregados europeus. Em 1904, na roça Terreiro Velho, no Príncipe, o administrador fez perigar a sua vida e a dos demais europeus por, alegadamente embriagado, se intrometer num divertimento de caboverdianos e tentar dançar com uma mulher, na sequência do que aqueles se insubordinaram pondo os vigilantes em fuga e obrigando à intervenção das autoridades e à posterior substituição do administrador [16]. Atinente à preservação da ordem social nas roças, existia uma codificação sumária das relações de género envolvendo pessoas de condição diferente [17]. O particular deste caso não foi tanto o administrador permitir-se romper com essa norma difusa quanto, no contexto do atenuado suporte político aos roceiros, a leitura feita por estes da pronta resposta dos caboverdianos. Refluindo ao cabo de algumas horas, a rebeldia dos serviçais não se mostrou dissonante de um padrão comum de rebelião nas roças, mas a posterior dificuldade de os sujeitar aos ditames das roças sugeriu a construção de uma imagem dos caboverdianos como detentores de uma idiossincrasia mais dificilmente redutível à categoria de serviçal.

            Este episódio de rebeldia releva também da noção de propriedade (patriarcal ou grupal) das mulheres pelos homens do grupo (ou da roça) que o imobilismo social perpetuava, não obstante as roças poderem, como vimos, conferir às mulheres maior liberdade em certas circunstâncias, mormente em resultado do primacial interesse dos roceiros na prestação produtiva. Em todo o caso, as mulheres eram entendidas como um bem pelos serviçais, que nutriam esse sentimento afirmado quer em relação aos elementos de fora da roça, quer mesmo em relação aos europeus. Nas condições de privação social, a partilha do dia a dia como do destino comum tanto podiam suscitar laços de solidariedade como imaginadas obrigações recíprocas. Daí, por exemplo, as disputas por causa do envolvimento, forçado ou voluntário, das serviçais com outros que não os companheiros de condição na roça [18]. Como se disse, em vista da pacificação social nas roças vigoravam mais ou menos imperiosos interditos sobre o acesso dos empregados brancos às serviçais. Evidentemente, tais interditos não impediam as relações com as serviçais, não necessariamente pautadas pela violência ostensiva, pois que podiam passar pela coacção, pela negociação mais ou menos coacta ou pela escolha. Deixe-se dito que, em consonância com o clima ideológico racista, a redução ideológica dos africanos a mão-de-obra assinalava de antemão a inexistência de lugar na sociedade local para os filhos espúrios dessas relações num contexto de dominação e preparava os europeus para a usura das africanas, a solução menos perturbadora socialmente.

Foquemos, agora, as situações de tácita convergência entre roceiros e serviçais, que podiam desembocar na instrumentalização das mulheres. Para os roceiros, bem como para a generalidade dos europeus, a chegada a territórios coloniais equivalia à libertação de peias morais de origem. Por causa da interferência do factor racial, nem a ideologia patriarcal nem a herança cultural os impediam de assistir com desprendimento às relações maritais, à promiscuidade, à poligamia, à poliandria ou a qualquer outro padrão de relacionamento entre os serviçais, sustentado por factores tão diversos como a persistência das molduras culturais de origem ou a oferta e a procura devida à desequilibrada proporção entre os sexos. Mais, a instrumentalização das mulheres africanas ter-se-á afigurado um domínio possível aos roceiros. Assim, o relacionamento de caboverdianas com companheiros de origem - cujo patamar civilizacional era genericamente tido por superior ao dos demais trabalhadores - ou de condição, em confronto com o que delas esperavam os roceiros, revela uma possível articulação de preconceitos raciais, de classe e de género na gestão dos papéis sociais em microcosmos centrípetos e hieráticos como as plantações. Pelo seu individualismo, as caboverdianas podiam aparecer como as que mais facilmente prescindiriam de regras morais ou de entendimentos tradicionais dos laços familiares. Mais significativo, diluída a comunidade caboverdiana, eram elas que os roceiros intuíam poder pressionar ou mesmo forçar ao relacionamento com serviçais de outra origem, assim se materializando uma casuística mas, em todo o caso, operante definição de género, pela qual os roceiros investiam na sexualidade das caboverdianas a preservação dos seus capitais, mais em termos de re-contratação dos homens a quem elas eram prometidas do que em termos da procriação [19]. Nesta eventualidade, a recusa das caboverdianas podia, então, não ter que ver apenas com preconceitos de ordem social e racial aplicados à sua própria representação da hierarquia e do posicionamento nas roças - hipótese que, vista a história do colonialismo e dos arquipélagos, não se pode descartar -, mas com uma reacção de salvaguarda própria contra a monetarização da sua vida e, sobretudo, contra a perpetuação de quaisquer vínculos à roça.

Mau grado o enraizamento da diferença sexual na cultura, a percepção de mulheres, sexo e género foi mudando, pontificando, já em meados de Novecentos, visões instrumentais acerca dos papéis do pessoal nas roças. Com maior ou menor calculismo, alguns roceiros assinalariam às caboverdianas uma dada função enquanto mulheres, não necessariamente por um doentio entendimento do seu poder de patrões e de homens, mas porque na intervenção em matéria de demandas sexuais se jogaria parte da estabilização da força de trabalho e, assim, do futuro das roças. Das inúmeras possibilidades de constrangimento de serviçais, à imprensa local chegaram naturalmente os ecos de uma situação em que, por via da apriorística classificação civilizacional dos serviçais à luz do seu fenótipo, a violência parecia mais flagrante. Tal seria o caso de nalgumas roças se coagirem caboverdianas ao intercurso sexual com moçambicanos [20]. O relacionamento sexual mais ou menos forçado configurar-se-ia como um expediente pelo qual os roceiros (com o assentimento tácito dos serviçais) usavam do seu poder para tentar reverter o maior poder de escolha que a escassez dava a cada mulher. Para isso, escoravam-se nos preconceitos raciais, pouco importando, se revertendo a hierarquia dentre os serviçais dedutível dos paradigmas da ideologia racial dominante, desqualificavam as caboverdianas, uma desqualificação adicional à já consumada indigenização simbólica e social dos caboverdianos para os fazer emigrar e incorporar nas roças [21]. Os roceiros tentavam fazer valer o seu poder contra o delas [22], acobertados pela ideia da indiferença das caboverdianas, bem como das africanas em geral, à observância de padrões morais, mormente no tocante à sexualidade.

Já na reacção pública contra o curso sexual forçado nas roças, mormente por se tratar de caboverdianas, entrava em linha de conta, para além da difusa oposição à escravização enquanto elemento da luta política local, a maior proximidade cultural e a diferente visão do papel e dos direitos das caboverdianas [23]. Para a chicana política, que tomava casos destes como pretexto, o escalonamento racial e, logo, civilizacional constituía-se como uma medida da arbitrariedade dos roceiros. Neste ponto, aflorava o jogo de equívocos prenunciador dos estereótipos que rodeariam as caboverdianas nas roças. Diga-se que não seria por se tratar de caboverdianas que elas eram forçadas pelos roceiros mas por serem as mulheres disponíveis nas roças. Porém, para a crítica aos roceiros contavam premissas acerca do nível civilizacional de caboverdianas, por um lado, e de moçambicanos e angolanos, por outro. Com efeito, nunca se contestaram os acasalamentos nas roças tutelados pelos roceiros enquanto estes se tinham circunscrito a estes últimos grupos. Deve dizer-se que, infundadas ou não, as acusações de se forçarem as serviçais ao intercurso sexual revelavam que a condição das caboverdianas vinha em perda desde o início da respectiva importação.

Põe-se, então, a questão de saber em que medida as caboverdianas lograram, ou não, reverter tal situação, para o que se distinguirão dois planos de análise, um relativo à condição social em geral, determinada pelo recrutamento compulsivo de caboverdianos, outro respeitante aos pequenos ganhos conseguidos por elas nas roças, em parte associados à sua condição de mulheres. Seria, aliás, sobre essa condição que se desenhariam certos desígnios dos roceiros que viriam a pesar na condição e acção das caboverdianas.

À contratação de caboverdianos - homens e mulheres -, sugerida pelas fomes de inícios de Novecentos, não tinham presidido considerações atinentes à estabilização e reprodução da força de trabalho [24]. A ausência de alusões ao lugar das mulheres nas plantações e nos esquemas de recrutamento e de trabalho migratório indicia da nula vontade de mudança na política de mão-de-obra [25]. Em S. Tomé e Príncipe, parecia pequena a importância da mulher nas roças e nula a intenção dos roceiros em apostar na reprodução natural da força de trabalho. As referências a mulheres na documentação oficial apareceriam já apenas no quadro dos propósitos de estabilização da força de trabalho masculino. Com efeito, o curso da política de mão-de-obra e uma nova oportunidade de recrutamento aberta pela conjuntura política na Europa e por novas fomes em Cabo Verde viriam a fixar os roceiros nesse desiderato em meados deste século, pedindo então de forma inédita e expressa centenas de caboverdianas, pedido atendido pelas autoridades de Cabo Verde nos anos 40. Ou seja, ao fim de décadas, perante o impasse no recrutamento noutras colónias, aquela demanda significava o reconhecimento da necessidade de estabilização da força de trabalho. Assim, na década de 30, o governador Vaz Monteiro, um incondicional dos roceiros, defendia que a inserção e a acomodação nas roças era tão somente prejudicada pela falta de mulheres [26]. Nesta asserção transparecia uma preocupação com aspectos básicos da vida social e familiar dos serviçais que nos anos 30 preocupavam as autoridades em vista, sobretudo, das dificuldades apostas ao recrutamento, em especial em Moçambique, e da insatisfação em vista da protelação do repatriamento. A constituição de um contingente de mão-de-obra era, ao tempo, uma preocupação que resultava das dificuldades da importação de braços. Tratava-se, portanto, de recorrer a estereótipos sobre as necessidades - as da natureza - da força de trabalho africana para provar uma disponibilidade de acomodação a que nem sempre os roceiros se tinham disposto.

Dito de outro modo, a política de mão-de-obra afunilava no sentido do reconhecimento de uma necessidade básica que não ia contra o patriarcalismo reforçado pelo conservadorismo do regime que, incapaz de cumprir com o legislado em matéria de repatriamento, cedia o passo à satisfação infrene da natureza, na circunstância a natureza africana. Tal passo dos roceiros e do poder político significava também a taxativa depreciação no plano jurídico e social das caboverdianas, pois que - quer nas investidas nas roças, quer na ideia de que elas serviriam aos moçambicanos e angolanos que ao cabo de anos à espera de repatriamento se arrastavam pelas roças - operava, como se referiu, a ideia de uma imaginada predisposição para uma sexualidade despida da moralidade atribuída às europeias. Para sedimentar esta visão, os roceiros tinham ocasião de confirmar os preconceitos desqualificadores dos africanos, gradualmente extensivos aos caboverdianos, uma vez que em virtude das condições nas roças, a sexualidade se dissociava do casamento, um dado de forma distorcida imputado, não às condições nas roças, mas a propensões raciais [27].

É por enquanto difícil avaliar em que medida as caboverdianas corresponderam, ou não, ao desiderato dos roceiros e em que medida foram oprimidas por isso, para além da opressão inerente ao ingresso nas roças Em alternativa, elas poderão ter majorado a sua condição nas roças a partir de uma posição privilegiada (mais não fosse pelos próprios preconceitos) no mercado de afectos e de favores como que esborratado pela aparente rotina e imobilismo das relações nas roças, sobre o qual, de resto, as indicações não são unívocas. Afora a intentada manipulação das caboverdianas no sentido de as forçar ao acasalamento em meados do século [28], outras indicações vão no sentido da raridade das ligações de caboverdianas a homens de outras paragens [29], um dado à luz do qual os traços culturais seriam algo de caro para as caboverdianas. De alguma forma, a hierarquização dos serviçais implícita nesta recusa teria como que uma redobrada prova na preferência do angolano ou do moçambicano pela união com a caboverdiana para quem desempenhariam as tarefas ou obrigações diárias das roças [30]. Na verdade, à ideia da renitência ao acasalamento com angolanos ou moçambicanos, porventura assente na segmentação cultural, opõem-se as indicações acerca da mobilização pragmática da sua condição de mulher para minorar aspectos opressivos da rotina laboral. Assim, os favores no plano do relacionamento sexual eximiriam as caboverdianas de caçar ratos, obrigação que moçambicanos e angolanos cumpririam para elas [31]. Pese embora a ideologia patriarcal das relações de género e de outros constrangimentos nas roças, nestas conferiam-se possibilidades às mulheres. Não estamos perante casos de nichos de ascensão social mas, ainda assim, perante ganhos eventualmente prezados. Vale a pena, contudo, salientar a fluidez das relações pessoais (fosse pelas contingências da vida nas roças, fosse, até por isso mesmo, pelo desinteresse do poder em ver consagradas as uniões mais ou menos duradouras) para ao menos matizar a importância de comportamentos que, afinal, estariam dependentes da oportunidade - desde inopinados repatriamentos até ao saldo entre homens e mulheres caboverdianos -, talvez mais do que de traços culturais particulares.

Tal não invalida que estes traços particulares ou a afirmação identitária neles assente não laborassem num sentido da afirmação de um simbólico posicionamento face aos demais grupos de serviçais, como, de resto, em relação aos próprios ilhéus e europeus. Serve esta nota para deixar indiciada a complexidade de que se terá revestido a presença caboverdiana, não só relativamente ao que de contraditório com o regime de contrato a sua contratação comportava, mas também para apontar complexidade semelhante na relação com os ilhéus. Na verdade, no virar do século não foram só os roceiros europeus a contratar braços caboverdianos. Também pequenos empreendedores europeus e ilhéus se contaram entre os empregadores, originando não só a diversificação de relações sociais, mas implicando, por certo, uma versatilidade da noção de raça, na definição da qual o fenótipo e as relações sociais, incluindo os micro-poderes, entravam como componentes. É provável que, além da cumplicidade da autoridade e de europeus nelas interessados, o viés europeu da hierarquização racial baseado na epiderme tenha sido um trunfo na recusa de patrões ilhéus por algumas caboverdianas que se juntariam àqueles na qualidade de lavadeiras. Sem arredar a ideia de, mau grado a similitude formal, aquele viés não ganharia coloração racista como entre os brancos, antes admitindo que funcionaria como um recurso semelhante a outros critérios económicos e sociais em geral associados à estratificação social [32], nem por isso se poderá asseverar que os caboverdianos não olhavam os ilhéus com as interiorizadas noções racializadoras dos europeus, até porque isso poderia ser uma eficaz forma de combater a secundarização social face aos ilhéus que os contrataram em inícios de Novecentos [33]. Afinal, esta visão dos caboverdianos acerca de si mesmos, mobilizada contra os ilhéus - que constituíam uma pequena e secundária fracção dentre os roceiros -, poderia servir para de forma sinuosa contestar as condições em que viviam ou em que eram integrados nas roças.

 

Conclusões

O estudo das relações de género permite realçar facetas contraditórias das roças em S. Tomé e Príncipe e perscrutar a sua eventual influência em certos traços da actual sociedade são-tomense. Na verdade, dentro de estreitos limites do imobilismo social, as roças conferiram às mulheres oportunidades de independência (sendo necessário lembrar que a avaliação à posteriori do minimalismo das mudanças sociais pode não dar conta do enorme relevo que para os protagonistas se terão revestido as pequenas mudanças). Contraditoriamente, à primeira vista parece ter cristalizado nas roças um padrão familiar nuclear conforme aos padrões europeus, o que, em todo o caso, poderia relevar menos da influência ideológica e social das roças do que dos padrões culturais do grosso da população braçal das roças no derradeiro quartel de Oitocentos, precisamente caboverdiana. Trata-se, em todo o caso, de uma problemática a merecer ulteriores estudos e que não pode ser retroprojectada. A experiência do derradeiro quartel colonial antes de 1975 pode e, cremo-lo, deve ter representado uma mudança significativa relativamente às experiências sociais anteriores, uma pequena parte das quais nos ocupou neste excurso sobre as caboverdianas.

Entre inícios e meados de Novecentos ocorreu uma velada mudança de perspectiva dos roceiros ou seus porta-vozes acerca das caboverdianas, que deixaram de ser consideradas meras unidades de trabalho para passarem a ser valiosas para a estabilização e acomodação da força de trabalho, efeito para que passaram também a ser contratadas [34]. As relações de género (em cuja definição participaram não só homens e mulheres serviçais como os próprios roceiros, para referir tão somente os agentes mais directamente envolvidos) pesaram nas roças, embora devam ter tido uma repercussão menor em termos de mudança sociais. Tal não relevará tanto da pequena importância das relações de género no devir social, quanto da circunstância dos roceiros terem desfrutado de uma ampla hegemonia (um dado a contribuir de igual modo para uma conclusão similar a respeito do peso de outras categorias analíticas - experiência, consumo, identidade, produção e resistência - e da evolução noutros domínios da vida social nas roças de S. Tomé e Príncipe). Por isso, os roceiros puderam lidar com as questões postas pela redefinição dos papéis decorrentes das vias escolhidas para a obtenção e incorporação da mão-de-obra. Mas, indício das diferentes conjunturas e da sua hegemonia, tiveram dificuldades em lidar com a inédita presença de caboverdianas - e de caboverdianos - que os obrigaram a redefinir a sua imagem das mulheres e o seu ascendente sobre elas. Mais tarde, ensaiariam manipular a sexualidade, com o que afirmavam o seu poder e uma dada condição das mulheres nas roças.

Sob o aparente imobilismo - vivido de modo diferente por diversos segmentos de serviçais -, as roças constituíam universos contraditórios. Para algumas das caboverdianas, também de condição social diversa na origem, a experiência representou uma libertação, se não pela base material para a independência de suas escolhas, pelo menos e, aparentemente de forma paradoxal, pelos horizontes fechados que tendiam a colocar, pese embora o patriarcalismo, homens e mulheres numa igualdade relativa no tocante às suas escolhas (ao invés, a diferenciação resultante da mobilidade social poderia traduzir-se num recuperado patriarcalismo, aparentemente visível na actual comunidade caboverdiana). Da mesma forma, para outras caboverdianas a inserção nas roças terá representado o perpetuar de dependências do meio de origem, porquanto o horizonte social fechado das roças lhes vedava a iniciativa e actividades, como o comércio, que noutros meios as guindaram a melhores posições sociais.

Se à luz da noção de raça, para os roceiros as caboverdianas não seriam mais do que trabalhadoras africanas, ao invés, para elas, raça deveria querer dizer caboverdianas, o que equivalia a um forte vínculo identitário, eventualmente potenciador de posturas pouco consentâneas com a desejada docilidade dos serviçais, como, de resto, reconheciam os roceiros que não misturavam caboverdianas com mulheres angolas.

Por sobre aspectos culturais, enraizados na mentalidade dos intervenientes e não consciencializados, as roças produziriam uma sexualidade e relações de género específicas ? Não é líquido mas nem tais relações nem a sexualidade devem ser dissociada das relações de poder, extensível, afinal, às relações entre os serviçais.

Conquanto aparentemente subalterna relativamente às noções difusas de raça (mais do que de classe) para a compreensão de poder, a noção de género deverá ser tida em conta para o entendimento da diferente experiência de homens e de mulheres imigrados e mesmo das relações de poder nas roças, pelo menos em determinadas conjunturas.

 

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[1] Mestre  e doutorando pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Investigador do Centro de Estudos Africanos e Asiáticos - Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa.

[2] Vejam-se alguns elementos em NASCIMENTO 1999; para uma visão de conjunto da migração de caboverdianos para S. Tomé e Príncipe consulte-se CARREIRA 1983 e OLIVEIRA 1993:244 e ss.

[3] À primeira vista, S. Tomé e Príncipe apresenta-se como uma sociedade com um baixo grau de pluralismo (EYZAGUIRRE 1986; SEIBERT 1999). A actual presença dos caboverdianos em S. Tomé e Príncipe - em parte devedora à presença de mulheres e, logo, à organização familiar, pois que de outro modo talvez tivesse sido maior a pressão no sentido do repatriamento por ocasião da independência - releva de traços interessantes, a saber, uma aparente incapacidade de articulação para efeito de uma afirmação da sua identidade social, incapacidade que coexiste com uma fidelidade à terra natal, aos seus parâmetros culturais e, ainda, com uma auto-representação da sua valia. Em correspondência com a subalternidade do grupo, mantida por estrangulamentos políticos formais e informais, também o papel das caboverdianas não parece actualmente revestido de influência social visível, pelo menos para o observador casual que constatará a primazia dos homens, um dado diverso da notoriedade que, por diversas razões, as caboverdianas tiveram em inícios de Novecentos.

[4] Por exemplo, a par de mudanças económicas relacionadas com uma eventual diferenciação social, mesmo se mínima, associada à fixação, interessará saber qual o regime de uniões endogâmico ou exogâmico (não descartando, por exemplo, o peso de factores ideológicos como o da associação entre fenótipo e escalonamento social que os caboverdianos poderiam, ou não, adoptar) e o respectivo impacto tanto na afirmação social da comunidade quanto nas relações de género no seu interior.

[5] Reportando-se às cifras resultantes do surto imigratório iniciado nos anos 40, TENREIRO fala de uma elevada proporção de mulheres e de crianças entre os caboverdianos, sendo mesmo as mulheres em maior número. Tratava-se, segundo ele, de uma emigração de tipo familiar ou de miséria, do ponto de vista produtivo e económico uma emigração nociva para os patrões (1961:192) ou, pelo menos, assim representada por eles.

[6] Ver situação paralela em SHEPERD 1995:243.

[7] Com referência às sociedades onde existia escravatura, ver SHEPERD 1995:235-236.

[8] Em 1903, numa carta para Lisboa na qual claramente racionalizava a derrota no confronto com uma caboverdiana, um administrador de uma roça no Príncipe dava conta de ter montado uma oficina de alfaiate e costureira com óptimos resultados. Uma preta recém-chegada, segundo as suas palavras, de tipo fino, chorava durante todo o dia, facto por ele entendido como uma doença moral devida ao meio muito diferente para que passara rapidamente. Como se dissera costureira, mandara-a então costurar, tendo a doença passado. O roceiro dizia-se contente com a venda do vestuário feito por ela aos demais serviçais, cf. Fundo Francisco Mantero (doravante FFM), carta de 19 de Maio de 1903, de João Maria da Silva a Francisco Mantero.

[9] Em 1903, um roceiro reportava para Lisboa as dificuldades da acomodação das caboverdianas à roça, maiores do que as apostas pelos seus companheiros de origem. Concretamente, revelava-se mais difícil arrancar delas uma prestação produtiva satisfatória. Meses depois, dizia que as mulheres tinham já entrado no bom caminho com muita paciência e bastante custo (FFM, cartas de 30 de Abril, 19 de Maio e 1 de Agosto de1903, de João Maria da Silva a Francisco Mantero). No ano seguinte, um administrador de uma das mais importantes roças em S. Tomé lembrava as dificuldades de condução dos serviços da dita roça, citando entre os óbices as dificuldades de lidar com os caboverdianos, mormente com as mulheres, que ele considerava uma verdadeira peste, cf. FFM, carta de 9 de Março de 1904, de Claudino Faro a FM. Em termos comparativos, atente-se na imagem de demónios aposta às mulheres que contrariavam os vigilantes europeus no campo, cf. BUSH 1984:222.

[10] Em 1903, o administrador de uma roça prescindiu do concurso de seis caboverdianas para não ter de destacar um caseiro só para elas, pois não se podiam misturar com as angolas, visto terem costumes que não era fácil tirar-lhes, FFM, carta de 2 de Abril de 1903, de Manuel dos Santos Abreu a Francisco Mantero.

Ademais, é possível que os roceiros pretendessem evitar as tensões derivadas da condução de grupos de mulheres por homens que, em casos passados, como que constituíra um motivo adicional para a rebeldia daquelas, cf. NASCIMENTO 1992:381.  

[11] Segundo EYZAGUIRRE, era lendária a prontidão com que os caboverdianos respondiam violentamente aos abusos nas roças (1986:270); acerca desta visão ver também NASCIMENTO 1999.

[12] Cf. Arquivo Histórico de S. Tomé e Príncipe, Série C, Reservados, M.6, of. s/ nº, s.d. [posterior a 23 de Julho de 1904] do governador do distrito do Príncipe, Manuel Ferreira Viegas Junior, ao governador de S. Tomé e Príncipe.

[13] O assassínio por uma caboverdiana do seu companheiro era, afinal, o quarto no mês de Novembro, facto este que trazia inquietos os roceiros. Todavia, o assassínio não se repercutira na disciplina laboral nas roças, cf. FFM, carta de 7 de Dezembro de 1904, de Manuel dos Santos Abreu.

[14] HODGES e NEWITT falam de violência entre os serviçais, mormente pela disputa de mulheres, como mais frequente do que a violência contra os europeus, cf. 1988:64.

[15] Por exemplo, em Agua-Izé em 1928 existiam 10 homens para 1 mulher, cf. NEWITT 1993:6.

[16] FFM, carta de 4 de Abril de 1904, de Francisco José da Silveira a Francisco Mantero.

[17] Num certo sentido e contra a rígida segmentação social que se queria manter a todo o custo, sem dúvida que as relações sexuais constituíam um possível campo de inversão das relações de poder (BUSH 1981:246). Cumpre precisar que se tratava de efeitos mínimos do ponto de vista da trajectória social dos envolvidos embora de risco no tocante à ordenação social nas roças, como, aliás, decorre do referido in NEWITT 1993.

[18] Por exemplo, NASCIMENTO 1992:223.

[19] Sem subscrever a assunção da propensão natural para a rebeldia daí derivada, vale a pena considerar a ideia do agravo materializado no investimento na sexualidade e noutras facetas da vida da mulher, tornando-as função da contabilidade dos empreendimentos económicos, cf. BECKLES 1995:137.

[20] A Desafronta, nº4, 6 de Março de 1924, p.1.

[21] Ou seja, a noção de raça era operante do ponto de vista da dominação nas roças - porque o era no conjunto da sociedade -, mas o exercício concreto dessa dominação requeria a subdivisão da noção de raça em representações referentes a vários segmentos de serviçais, nomeadamente para possibilitar o seu ingresso nas roças e para acerto dos métodos de condução dos homens (no caso dos caboverdianos, para matizar o recurso imediato e, quiçá, contraproducente à violência).

[22] Esta é uma perspectiva que elucida a experiência das mulheres à luz das relações de poder. Outra, complementar, respeitaria à eventual mobilização de imagens e discursos ideológicos do patriarcalismo dominante para legitimar a agressão contra as caboverdianas ou para explicar a preferência dos moçambicanos ou angolas por elas, quando não se trate de uma projecção dos aa, que se referiram a tal temática. Com efeito, a preferência pelas caboverdianas podia resultar da escassez de mulheres e de serem elas as únicas disponíveis e não de qualquer traço particular - mormente relacionado com a miscigenação - que se pode entrever na referência de BARATA 1965 e de EYZAGUIRRE 1986.

[23] O reverso desta proximidade civilizacional era a consideração do pouco préstimo produtivo das caboverdianas que não devia ter qualquer fundamento sociológico mas que compunha os discursos acerca do valor da mão-de-obra. Por exemplo, em meados do século as caboverdianas eram referidas como não servindo para o trabalho de campo, da mesma forma que em relação aos caboverdianos perdurariam os estereótipos negativos.

[24] Desiderato ao tempo alvitrado por autoridades em Cabo Verde a braços com as dificuldades resultantes das secas e das fomes. Com efeito, em 1904, o governador Barjona de Freitas considerava que, dado o saldo positivo de mulheres, a emigração feminina só se afigurava inconveniente quando elas abandonavam os filhos menores em Cabo Verde. Já no arquipélago equatorial, poderiam talvez tornar-se úteis caso se fixassem como elementos de colonização, não fazendo falta em Cabo Verde onde havia mulheres em excesso (Arquivo Histórico de Cabo Verde, Livro de registo de ofícios expedidos ao Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, of. nº334, de 13 de Outubro de 1904, do governador de Cabo Verde António Alfredo Barjona de Freitas). Tal alvitre foi deixado de lado, fosse pela conveniência da sua repatriação, fosse por não lhes poder extorquir a soma de trabalho julgada adequada, fosse, ainda, por a perspectiva de usura da mão-de-obra e de incorporação social diferenciada dos serviçais colidir com projectos de fixação por que os caboverdianos se poderiam tentar, com as consequências políticas adversas para os roceiros daí decorrentes.

[25] A este propósito ver SHEPERD 1995: 245

[26] AHU, Gabinete do Ministro, relatório confidencial nº8, de 31 de Julho de 1935 do governador Vaz Monteiro.

Os dados mostram a inversão de opções dos roceiros nos primeiros anos da década de 40 quando da retoma da importação de caboverdianos. Na altura, fosse pelas facilidades de recrutamento - uma vez mais resultantes de secas em Cabo Verde -, fosse por acolher a possibilidade de fixação dos caboverdianos, os roceiros intentaram obter uma proporção equilibrada de homens e de mulheres ou mesmo uma maioria de mulheres (cf. AHU, Gabinete do Ministro, missiva de 15 de Janeiro de 1942, do Centro Colonial ao chefe de gabinete do ministro das colónias) com que tentavam compensar o desequilíbrio entre os serviçais de outra origem. O súbito interesse dos roceiros nessa política de estabilização significava também que eles compreendiam que chegara ao fim o tempo do recrutamento sem peias em Angola e em Moçambique.

[27] A perspectiva enviesada dos roceiros, como dos europeus em geral, não deve elidir a possibilidade da importação, juntamente com os sujeitos, de diferentes normas culturais a respeito da sexualidade entre os africanos. Aqueles sentir-se-iam tão mais tentados a aproveitá-las quanto maiores fossem o seu poder e, facto que a consideração social devida à fortuna acumulada amiúde fazia esquecer, o alheamento das suas regras morais.

[28] Segundo CARREIRA (1983:216) o governador Gorgulho teria enveredado pela instrumentalização de caboverdianas para resolver as fricções derivadas da imposta abstinência sexual dos serviçais.

[29] TENREIRO 1961:192-193.

[30] Cf. CARREIRA 1983:216.

[31] EYZAGUIRRE 1986:256-257 e 253.

Na verdade, interessaria indagar da extensão deste expediente, eventualmente empolado tanto na imposição dessa obrigação quanto na troca de favores entre os serviçais.

[32] Ou seja, o valor do fenótipo não derivava de uma ideologia de superioridade biogenética, mas da sua importância para determinar as chances de uma pessoa numa sociedade onde raça era usada para justificar a escravatura, cf. SIO 1987:178.

[33] Evidentemente, a evolução da política colonial fez mudar as relações entre grupos muito e é possível que, nos derradeiros decénios do colonialismo, os caboverdianos tendessem a aproximar-se dos são-tomenses, com quem partilham o desprezo pelas roças, e a separar-se dos angolanos e dos moçambicanos com quem só forçadamente conviviam (cf. TENREIRO 1961:193), o que, afinal denotaria da prevalência e mobilização de desdobradas categorias raciais, mais não fosse em razão de uma desejada inserção fora das roças.

[34] Nesse sentido, era equívoca a crítica às caboverdianas dengosas e nada boçais, como se os roceiros, por suposto plenos de virtudes morais, não estivessem interessados numa tal contratação. Como amiúde acontecia, os discursos morais ficavam a cargo de zelosos porta-vozes que assim ocultavam as caladas conveniências dos roceiros.