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Grupo de Trabalho 3
“Género e desenvolvimento em Angola: mulheres empresárias em Luanda e Benguela”

Marzia Grassi[1]

Numerosas mudanças estruturais nas dinâmicas das instituições sociais e dos actores económicos que intervêm no mercado mundial acompanham o actual contexto de globalização. Embora algumas destas mudanças não podem ser imputadas directamente à mundialização do sistema capitalista, elas fazem parte, conforme Wallerstein, da actual crise estrutural do sistema histórico da economia mundial que existe desde o século XVI e portanto têm que ser compreendidas.

Na área da economia do desenvolvimento, a exigência da procura de uma nova abordagem torna-se particularmente importante para os países africanos, dada a falência dos modelos de desenvolvimento até agora aplicados, devido, entre outras causas, à coexistência de modelos endógenos e de modelos importados que leva muitas vezes à adopção de estratégias mais ou menos destorcidas que impedem o sucesso dos modelos aplicados.

O questionamento sobre a eficácia das políticas aplicadas nos países em desenvolvimento, leva à difícil tarefa de questionar o “núcleo duro” da disciplina o que impõe a reflexão teórica do conceito de desenvolvimento em todas as áreas. A necessidade de reconhecer a realidade que nos rodeia, percebe-la e nela intervir, impõe uma reflexão de caracter pluridisciplinar porque, no contexto africano, a realidade simplesmente escapa a quem queira capta-la com instrumentos estreitamente disciplinares. É necessária portanto uma reconfiguração do conhecimento que não corresponde ao mapa disciplinar a que os economistas estão acostumados. A complementaridade das várias ciências é um requisito epistemológico pela compreensão dos processos sociais que são complexos. É portanto necessário superar o economicismo e tornar a economia o que era na sua origem: uma ciência que nasceu da ética.

O questionamento sobre o progressivo reconhecimento do papel das mulheres nas economias dos países em via de desenvolvimento tem produzido e privilegiado uma nova chave de interpretação da realidade que focaliza a questão do género na investigação sobre o desenvolvimento. Esta recente abordagem surge de uma evolução de problemáticas recentes. Uma delas é a necessidade de conhecer a realidade social e económica, com o objectivo de evidenciar de maneira sistemática e pertinente os papeis dos actores sociais, dos indivíduos e dos grupos, que constituem o alvo dos projectos de desenvolvimento. Cada sociedade redefine constantemente as normas, os comportamentos e as atitudes que determinam as relações entre homens e mulheres em todas as áreas da vida económica, social e política.

Uma das principais novidades que ajudam à compreensão dos papeis do género é o estudo das diferenças de estatuto características e atitudes que consideram as mulheres uma categoria socialmente construída ultrapassando a análise baseada sobre o determinismo biológico. Este ponto de vista torna indispensável a reformulação de ideias preconcebidas, nomeadamente as que se traduzem na invisibilidade da mulher na esfera económica.

A taxa de actividade feminina no mundo é em continuo aumento porque em todo o lado o trabalho feminino tende cada vez mais a deixar a esfera doméstica para entrar no mercado.

Ao olhar para o mercado nos países em desenvolvimento e às actividades económicas que nele se desenrolam deparamo-nos com a existência de um sector informal in expansão no interior do qual os recursos humanos mais dinâmicos são maioritariamente mulheres. A problemática do género neste contexto surge, portanto, estreitamente ligada à existência do sector informal.

O atraso da teoria e da análise económica em relação à utilização da problemática do género é particularmente grave na investigação dos países em desenvolvimento porque ao estudar estes mercados (dos bens, dos serviços, do trabalho) é muito difícil poder ignorar as implicações do género: elas são simplesmente camufladas das agregações utilizadas.

A análise económica utiliza, por exemplo, o esquema do fluxo circular das despesas e receitas para estudar os grandes agregados da procura e da oferta. No fluxo circular os actores são: os mercados (dos factores e dos produtos); os governos, as empresas, as instituições financeiras e os agregados. Todas as actividades e as decisões destes actores têm implicações do género. Ao considerarmos, por exemplo, as empresas africanas elas têm sido, em geral estudadas sem ter em consideração casos concretos de empresários africanos considerados no contexto sócio - económico em que eles operam. Mesmo assim, pode-se afirmar que os empresários africanos, tal como os empresários ocidentais, têm tendência a se adaptarem às mudanças sócio políticas estruturais do ambiente em que estão inseridos. A seguir Hopkins (1995) “os empresários não constituem uma classe ou uma casta, mas provêem, em todas as épocas, de categorias representativas da ordem social: homens, mulheres, jovens e menos jovens, ricos e pobres.... as religiões muçulmanas ou cristãs, levam a um modelo de comportamento eficaz que permite conciliar os valores materiais e espirituais e favorecem a realização de ambos...”.

A actividade dos empresários é o resultado de decisões e opções de indivíduos (homens e mulheres) que têm aspirações, objectivos e constrangimentos diferentes. As desigualdades que existem não são captadas a causa da agregação das numerosas funções de utilidade das empresas. De outro lado, a macroeconomia é em geral considerada insensível ao género embora isto não queira dizer que ela seja também neutral em relação a esta problemática. Na determinação da Contabilidade Nacional das Receitas e Despesas são excluídas, por exemplo, uma série de actividades económicas como: - as actividades ilegais, devido à dúvida se elas podem ser consideradas actividades que produzem bens e serviços vendidos no mercado e capazes de gerar rendimentos. São incluídas na categoria as actividades relacionadas com as drogas, a prostituição, o mercado negro e muitas outras actividades de mercado paralelo. São também excluídas as actividades de não – mercado, como as actividades de reprodução dentro do agregado e todas as actividades do sector informal. As famosas actividades de fabricação e venda da cerveja, as instituições informais de crédito e do seguro, as cooperativas informais no sector agrícola e as actividades comerciais informais nas áreas urbanas são só algumas das numerosas actividades geradoras de rendimentos nos países em desenvolvimento do continente africano. A omissão destas actividades torna-se importante conforme o objectivo que está subjacente à medição da realidade económica. Se o objectivo é medir o fluxo geral de bens e serviços que estão disponíveis para satisfazer as necessidades dos indivíduos e a individualização do seu lugar de origem, a omissão torna-se muito grave e é susceptível de ter graves consequências. E não é por acaso que são estas omissões que atraíram a atenção das feministas desde os anos ´50: a actividade da maioria das mulheres, especialmente nos países em desenvolvimento, caem nestas categorias “esquecidas”.

Adoptar uma abordagem do género em economia significa remediar ao escasso valor atribuído à actividade das mulheres. Em algum caso, a avaliação correcta desta actividade poderia duplicar o PIB de um país ou de uma região (Locoh, T., 1996). A actividade feminina é mal medida porque é mal definida enquanto é viciada pelas representações sociais do masculino/feminino do estatuto das mulheres. A baixa avaliação da actividade feminina é devida também à invisibilidade da pluralidade de actividade das mulheres. As mulheres de facto dividem o próprio tempo de trabalho em três sectores: económico, familiar e social. Alem disso, a actividade feminina encontra-se sobretudo no sector informal que é por definição mal medido .

A actividade económica das mulheres dos países em desenvolvimento continua portanto a ser fortemente subestimada pelo menos por duas razões:

  • nos países em desenvolvimento, as mulheres exercem as próprias actividades, na maioria no sector informal e portanto uma melhor avaliação da sua contribuição passa pela melhoria dos métodos que medem as actividades informais;

  • as mulheres desenvolvem, mais frequentemente que os homens, uma pluralidade de actividades que são ainda pouco conhecidas e mal medidas.

O género é um conceito sociológico que distingue as diferenças sociais das diferenças biológicas entre os sexos e que apresenta a vantagem de se diferenciar da dimensão física da palavra “sexo” (Lécuyer, 1995). Na sua forma anglo - saxónica o termo “gender” consente distinguir o “sexo biológico” do “género cultural”. Esta definição cultural demarca-se da abordagem naturalista do masculino e feminino (Farges e Perrot, 1993) e introduz uma dimensão social historicamente construída sobre as distinções segundo o sexo. Alem disso, a relação do género, insistindo sobre o aspecto relacional, subentende que as duas categorias de sexo definem-se uma em relação à outra, o que implica que a informação sobre as mulheres é necessariamente uma informação sobre os homens. O interesse conceptual desta abordagem, nas palavras de Bisilliat (1992, pag. 21), é de não eliminar “a metade da realidade social, quer se trate de mulheres quer de homens”.

O conceito do género constitui um a nova área de investigação que tem as suas especificidade em relação aos trabalhos feministas, na medida em que o que interessa é sobretudo a dinâmica socialmente construída das relações entre homens e mulheres a todos os níveis na sociedade: político, social, económico, cultural e doméstico. O que indica um campo diferente da “paridade” em que as feministas têm particularmente avançado.

A génese do conceito do género tem as suas origens na evolução da abordagem feminista e deve-se sobretudo a sociólogos e historiadores anglo saxónicos que foram os primeiros a explorar o conceito.

Os numerosos colóquios sobre as mulheres que antecederam e seguiram a 4ª Conferência mundial sobre as Mulheres organizada em Pequim em Setembro de 1995 pelas Nações Unidas, permitiram também na literatura francófona de iniciar a reflexão nesta área e de legitimar este novo caminho de investigação. Nos anos ´80 a reflexão origina-se no interior do feminismo militante e estrutura-se sobre as relações de poder entre os sexos. A ruptura epistemológica projectada no início transforma-se numa corrente menos secessionista que ambiciona a mobilização de investigações pluridisciplinares. É a teoria feminista que serve como base de referência enquanto considera o género uma dimensão da organização social, ao mesmo título que a classe e como uma categoria socialmente construída, quer no mercado do trabalho, quer na família, quer na escola quer na esfera económica, política e cultural (Lécuyer, 1995).. As expressões utilizadas para traduzir o conceito anglo-saxónico de “gender” são várias. A substituição da abordagem “integração das mulheres no desenvolvimento” (WID)- que dominava desde os anos ´70 - com a abordagem “género e desenvolvimento” (GAD) marca uma mudança de preocupações e um novo interesse pelas relações entre homens e mulheres (relações do género) e não simplesmente pelas mulheres.

Antes da Conferência de Pequim a Agência Canadiense para o desenvolvimento internacional (1995) elaborou um “Léxico da mulher e do desenvolvimento” . Neste período a noção “gender” já tinha sido tratada em 37 títulos em inglês enquanto na literatura francófona a noção de “genre” era sempre associada especificamente à expressão “genre et developpement”. A variedade das expressões utilizadas mostram não só a dificuldade de traduzir o termo inglês mas também a confusão que ainda domina esta área do conhecimento.

Na nossa opinião o conceito do género (assim como o conceito de desenvolvimento, raça, classe.. ) é um conceito transversal que se situa no espaço de intersecção entre o científico e o político e origina uma abordagem que permite analisar as estruturas políticas, psicológicas, económicas e sócio –culturais que constituem a complexidade social. É neste sentido que cada área disciplinar deve, a nosso ver, estimular a pesquisa nesta área de maneira que as ciências sociais no seu conjunto possam contribuir a uma melhor compreensão da realidade que nos rodeia.

A problemática do género constitui uma dimensão da identidade colectiva de um grupo social, as mulheres, que detêm menos de um por cento da riqueza mundial e que ganha menos de dez por cento do rendimento global, embora execute dois terços do trabalho mundial. Trata-se portanto de uma problemática que incide sobre as causas das desigualdades entre grupos sociais e questiona a redistribuição da riqueza. É necessário questionarmos sobre quanto do que aparece “natural” é de facto culturalmente imposto e pode, portanto, provocar conflitos. A aparente baixa conflictualidade da sociedade neste fim de milénio é justificada pelo pensamento liberal com o bom funcionamento do mercado e com a eficácia da ideologia dominante. Na realidade os conflitos existem embora latentes e bem manipulados. A atenção dada, nos últimos anos, por parte de organismos internacionais às políticas identitárias do género (pensamos, por exemplo, às abordagens políticas para os países africanos em desenvolvimento da corrente WID) não é que uma tentativa do sistema de manipular os conflitos criando no seu espaço empresas e/ou empreendimentos humanitários que permitem a sua reprodução. Tudo isto denuncia a dificuldade, também a nível académico, de questionamento teórico e conceptual sobre a crise do sistema e a falta de vontade política de por em causa o “status quo”.

O desenvolvimento económico afecta o comportamento dos actores económicos e das relações do género e favorece a manifestação de racionalidades locais cuja governabilidade torna-se difícil a causa da globalização que tende a acentuar as diferenças. É importante questionarmos sobre como as mudanças nos papéis do género influenciam a evolução das instituições sociais e dos actores económicos e a sua relação com o mercado.

A globalização capitalista talvez tenha chegado a um ponto em que, incidindo na cultura e nos costumes dos povos, possa provocar movimentos de ruptura com a cultura global e assimilada que revendicam a essência cultural que se exprime também nos actos económicos e torna as categorias de análise globalizante inaptas a explicar os comportamentos dos agentes sociais e económicos. Fenómenos como as diferenças do género, quando incidem sobre recursos humanos tradicionalmente dinâmicos, como é o caso das mulheres nos países em desenvolvimento, podem provocar a ruptura do equilíbrio do sistema e o “empowerment” de grupos identidários.

De outro lado, se a identidade é um conceito complexo que compreende múltiplas intersecções de classe, raça, género e sexo que fazem o indivíduo reagir de maneira diferente, as mulheres terão atitudes políticas não simplesmente com base no género mas também conforme a raça, a classe, o sexo, numa interacção complexa.

Esta problemática é susceptível de ser estudada em qualquer contexto específico enquanto diz respeito a algo de estrutural nas relações entre homens e mulheres que corresponde a uma dimensão complexa que é estruturante e estruturadora de todas as relações sociais e que varia conforme o contexto histórico considerado.

Várias razões motivaram-me a reflectir sobre a questão do género e desenvolvimento no contexto africano:

1.      o trabalho de campo a Angola contribuiu a fazer emergir um questão sobre o poder das mulheres a partir da observação das práticas e estratégias de comércio e sociais.

2.      a motivação nasce também de uma insatisfação teórica sobre a maneira em que habitualmente é tratada a questão que me interessa que se resume a duas constatações contraditórias: a subordinação das mulheres e ao mesmo tempo a enumeração das mulheres célebres e das suas grandes acções o que nos parece ser as duas faces do mesmo “impasse” que demonstra a incapacidade de pôr realisticamente as bases de uma reflexão.

3.      O comércio feminino a distância na África do oeste é um fenómeno antigo nos países da costa (igbo, Yoruba, Gouro). ( Emmanuel Terray, Gregoire, E. ....)

4.      As mulheres africanas são excluídas da história de maneira dúplice: como mulheres e como africanas na medida em que as sociedades do continente têm sido consideradas durante muito tempo sem história, sem estado, autárquica e não ligadas a um espaço sócio- económico que as ultrapassa. É esta negação da história que permitiu legitimar a dominação colonial e, mais tarde, a antropologia nostálgica do paraíso perdido (Amselle J.L. 1979 “Le sauvage à la mode” ,Paris, Le Sycomore).

Sendo o empresariado feminino um fenómeno muito pouco estudado há uma quase ausência de dados quantitativos e também de uma tipologia concreta e empírica de referência.

Acreditamos importante o desenvolvimento de trabalhos de campo aprofundados que poderiam dar informação sobre a existência de uma identidade social de grupo que une as mulheres empresárias do sector informal: o que é que une estas mulheres? Idade? Estratificação social? Será que existe ou que está em formação uma identidade de grupo (colectiva) das mulheres que intervêm no mercado? A identificação da posição de classe de uma mulher em África é difícil porque elas em geral identificam os próprios interesses com os da família a que pertencem. A classe social de uma mulher define-se em relação ao próprio pai, marido ou outro homem da família. As viúvas ou divorciadas perdem a própria posição de classe e com base em considerações do género não têm o acesso directo à terra ou outros recursos e bens socialmente valorizados. Na África subsaariana as mulheres necessitam de um intermediário masculino para ter uma existência social. É esta dependência que determina os investimentos que as mulheres fazem para manter a própria posição de classe.

O sucesso das mulheres empresárias depende em larga parte da capacidade em conciliar as estratégias económicas no domínio da actividade mercantil e ao mesmo tempo no domínio da reprodução.

Esta dupla focalização das relações do género e de classe na produção e na reprodução contribui a determinar os tipos de relações patriarcais dentro da família e da linhagem sobre as quais o sistema capitalista dominante apoia-se para manter a sua supremacia. Tudo isso permite a medição dos efeitos diferentes nos homens e nas mulheres da penetração do capital na economia local, da introdução das culturas de renda e dos produtos manufacturados no mercado local, da industrialização, da urbanização. As diferenças são visíveis a nível da divisão sexual do trabalho, do acesso aos recursos, à terra, à tecnologia, ao crédito e a nível de migrações assim como ao nível do poder do género.

Na ASS podem existir estratégias femininas a nível de casamento, residenciais e comerciais que se elaboram no interior e/ou a margem de estratégias dos grupos familiares. Isto determina o desenvolvimento de meios femininos particulares para resistir, contornar ou se adaptar à pressão dos agentes do Estado e dos grupos de empresários que dominam o circuito.

É ao mesmo tempo importante averiguar as condições de reprodução das empresárias, i. é. quais são as lógicas sociais e económicas subjacentes que favorecem a sua reprodução.

Para o que diz respeito à metodologia de recolha de dados é importante privilegiar uma análise qualitativa através de entrevistas ao grupo alvo e a observadores privilegiados, observação o mais possível participante e utilização de histórias de vida.

A escolha de uma análise qualitativa surge da necessidade de repensar a ideia de trabalhar sobre dados estatísticos representativos constituídos de unidades individuais. Trata-se de aprender a lógica social no seu conjunto e não de efectuar um corte transversal e de efectuar uma relação de variáveis extraídas do seu próprio contexto e portanto sem pertinência.

É portanto oportuno privilegiar um trabalho de observação directa que poderá permitir individualizar a lógica social da actividade desenvolvida pelo que se pretende estudar. Quanto às histórias de vida que desempenham há longo tempo um papel central na recolha de informação em outras disciplinas das ciências sociais elas têm o objectivo de recolher informação sobre a expressão pessoal da experiência de um quotidiano vivido. De um ponto de vista teórico, o método biográfico “revaloriza o ser humano como sujeito de estudo, em contraste com as excessivas abstracções do cientificismo positivista” (Pujadas Muñoz, 1992). Segundo este autor a utilização do método biográfico permite romper com o positivismo tanto a nível teórico como epistemológico. De facto, ao recuperar o ser humano subjectivo as ciências sociais afastam-se definitivamente da ideia de objectividade subjacente à procura da construção disciplinar à imagem das ciências naturais, que concebia como dados analíticos os factos sociais e os indivíduos como meros informantes. Esta técnica de recolha permitirá conhecer uma série de informações normalmente arredadas da informação publicada sobre o grupos sociais, e que é fundamental para a compreensão dos processos sociais.

Além disso esta técnica satisfaz a necessidade de demonstrar o processo da mobilidade social através do qual a mulher torna-se comerciante. Segundo Bertaux (1988) bastam poucas histórias de vida para alcançar a “saturação “ da compreensão de um dado processo social o que torna os estudos qualitativos úteis para a generalização.

Torna-se assim importante a recolha de histórias de vida sobre a personalidade das empresárias, da sua vida, da sua história pessoal, as motivações da actividade, os problemas e as dificuldades encontradas, as praticas colectivas utilizadas, a maneira de conciliar a actividade económica com o papel de reprodução, etc.

Os homens são um grupo distinto das mulheres e crianças no que diz respeito à redistribuição dos rendimentos, ao acesso aos recursos e à tecnologia moderna, ao mercado de trabalho e à educação, portanto seria um erro tomar como base a unidade doméstica para estudar fenómenos económicos porque as unidades domésticas de que a literatura fala, quando usadas como categorias de análise, negligenciam o diferente impacto dos homens e das mulheres na sociedade. Por este motivo também é necessário ouvir o ponto de vista dos homens sobre as empresárias.

Estudo de caso: As Empresárias de Luanda e Benguela.

Com o objectivo de recolher dados qualitativos sobre a realidade empresarial feminina em Luanda e Benguela, fui a Angola em 1996. Foram entrevistadas cerca de 50 mulheres empresárias no sector formal e no sector informal. A maioria neste último. Se à partida pensávamos que seria mais difícil o contacto com as mulheres do sector informal, devido aos conhecidos problemas de segurança, desconfiança e outros, resultou ao contrário mais fácil este contacto que a aplicação das entrevistas às mulheres empresárias de empresas formalizadas. Tive a possibilidade de aceder ao Roque Santeiro com uma equipa de trabalho já estruturada que fazia parte de um projecto de uma ONG canadiense que estava a ser desenvolvido naquela altura naquele mercado. Em Benguela tive acesso ao mercado do Caponte com facilidade, devido ao apoio de uma funcionária de uma ONG portuguesa que serviu também de interprete uma vez que a maioria neste mercado só fala umbundo.

As características comuns das empresárias do sector informal entrevistadas podem-se resumir desta maneira: trata-se em geral de mulheres pobres, a grande maioria deslocadas de regiões vizinhas, devido à guerra. Solteiras ou com maridos desempregados, separadas ou divorciadas, todas com mais de dois filhos, de idade entre 19 e 44 anos tinham começado a própria actividade, na maioria depois de 1992. Os rendimentos que elas conseguiam era, na maioria dos casos o único da agregado familiar que garantia a sobrevivência de todos os membros. Todas elas se deparavam com uma série de problemas. O mais sentido era o da segurança no trabalho devido à presença de comandos (ex militares armados e desempregados) que praticavam sistematicamente roubos e ameaças. Um problema muito sentido pelas mulheres era o de conjugar o papel no mercado e o papel de reprodução e cuidado diário com os filhos. Para resolver os problemas de assistência às crianças existia uma forte rede de solidariedade dentro do parentesco ( a maior parte das vezes a cargo dos filhos mais velhos) e com a vizinhança (as escolas na altura estavam fechadas há muitos meses). Outra expressão de solidariedade presente neste grupo de mulheres empresárias é expresso na existência da “quixiquila”, circuito de ajuda mútua que as mulheres praticam e que compensa em parte a falta ou a escassez de capital inicial.

No que diz respeito à motivação para iniciar o negócio era, em todos os casos entrevistados, a sobrevivência do agregado familiar. O circuito económico era neste contexto tão simples que tudo o que a mulher empresária conseguia como rendimento num dia servia para as despesa em bens de sobrevivência naquele dia.

As características das mulheres empresárias do sector informal, parecem adaptar-se à definição de Shumpeter (1961) no sentido em que tentam maximizar as receitas num meio incerto e precário sendo, ao mesmo tempo, capazes de introduzir inovação explorando todas as oportunidades. E se acreditamos, como os clássicos acreditam, que a inovação shumpeteriana tem que ser procurada nas pequenas empresas, então a atenção a todas as formas (“culturas”) empresarias torna fundamental, em Angola, a atenção às mulheres que dirigem a maioria dos pequenos e micro negócios. Este é o mercado real, independentemente do facto de acreditar ou não que as empresas do sector informal constituem uma expressão (distorção) do modo de produção capitalista. 

A existência de discriminações e preconceitos em relação ao género resulta bem evidente nas entrevistas que esclarecem a divisão do trabalho dentro da família e no mercado, e na falta de qualquer tipo de apoio por parte do Estado.

Quanto às mulheres empresárias que gerem empresas legalizadas, elas foram contactadas através da ASSOMEL. Era nossa intenção aplicar um questionário, tarefa que resultou difícil devido sobretudo à diferente gestão do tempo de um ponto de vista cultural e sem dúvida da minha falta de experiência do terreno. Conseguimos, contudo, recolher dados suficientes que nos consentem identificar alguma característica comum destas empresárias que chamaremos de “elite”.

A maioria delas vêm da função pública e começaram esta actividade graças ao apoio da elite política e administrativa com que, em geral, têm ligações de parentesco. Elas gerem pequenas e médias empresas legalizadas que actuam num espaço de mercado que se situa entre o sector formal e o informal, aproveitando as oportunidade que ai surgem. Têm associações de apoio através das quais podem fazer chegar aos órgãos superiores do Governo as suas próprias necessidades. Os agregados familiares a que pertencem não são pobres e a sua actividade não é justificada pela sobrevivência que está normalmente assegurada à partida. Os problemas do género que elas relatam parecem-se mais com os das mulheres ocidentais, embora todas elas reivindiquem o próprio papel de reprodução, sobretudo para o que diz respeito às decisões em relação aos filhos. Elas relatam uma série de dificuldades em diferentes áreas como o acesso ao crédito, ao direito de propriedade e às novas tecnologias. Graves dificuldades com que se deparam resultam da situação política nacional, como a falta de serviços mormente a electricidade e de acesso às matérias primas, o que dificulta a actividade das empresas e que são comuns a tudo o sector privado. Trata-se de um fenómeno bastante comum nos países que viram a aplicação de programas de estabilização e ajustamento, a emergência de pequenas empresas que permitem compensar os cortes nos salários e oferecem uma alternativa ao desemprego.

Conclusões

Em relação aos assuntos do género, existe uma falta total de organização a nível do Governo, o que parece resultar essencialmente da falta de vontade política para questionar as relações de poder histórica e culturalmente definidas entre homens e mulheres. Assunto este que não é específico da realidade angolana, tendo uma dimensão global.

A escassa informação qualitativa e quantitativa sobre as mulheres empresárias, a falta de um apoio concreto do Estado que introduza reformas nos códigos sobre a propriedade, sobre o acesso aos recursos e as novas tecnologias, dificulta a percepção dos comportamentos dos actores reais existentes no mercado angolano e a compreensão das características específicas da economia angolana.

Em conclusão, falar de desenvolvimento económico no contexto angolano significa fazer algumas adaptações do pensamento convencional sobre os problemas económicos. Um dos factores chave parece ser a aceitação da existência de um sector informal que controla, em parte, o desemprego e que contribui em larga medida para a melhoria das condições de vida da maioria da população. As unidades domésticas produzem uma parte substancial dentro e para a economia de mercado e é importante olhar para as relações económicas do ponto de vista da unidade doméstica, dentro da qual a mulher desempenha um papel predominante, que se torna mais visível no sector informal.

Se de um ponto de vista económico-produtivo a mulher está sempre mais presente, ao mesmo tempo existem discriminações baseadas no género que resultam em desigualdades no acesso ao mercado de trabalho, à educação, aos recursos e aos rendimentos.

Um dos caminhos a seguir poderia ser a introdução no modelo da economia de mercado das variáveis necessárias à eliminação das diferenças de rendimentos e de riqueza entre homens e mulheres. A participação das mulheres no mundo do trabalho tem sido grandemente afectada pela estratificação do género e sexual quer dentro da família quer no mercado , que se justifica principalmente com assuntos ideológicos sobre os papéis sexuais e com a resistência à mudança mesmo quando esta é economicamente racional.

As mudanças nas motivações das mulheres em relação ao trabalho não têm sido analisadas de maneira satisfatória pelos economistas, assim como as consequências das mudanças económicas necessárias aos indivíduos dentro da família. Trata-se, portanto, de injectar o género na análise teórica da disciplina económica.

Há muitas razões para a aparente inércia na introdução do género na análise económica. Quando não existia a economia do desenvolvimento a abordagem do género era vista como não científica. Havia uma tendência generalizada e um esforço pela cientificidade que excluía “a priori” a análise de comportamentos de actores e a análise das actividades de não mercado. Foi na microeconomia que se iniciaram as pesquisas do género na análise do mercado do trabalho.

Se consideramos o problema do emprego, neste contexto, temos que fazer as contas com uma realidade que nos apresenta um vasto panorama de actividades e actores que influenciam o fluxo das despesas e receitas da economia: os agregados familiares, os mercados, as empresas, os governos, outras instituições. Portanto, introduzir variáveis como o género na macroeconomia torna-se fundamental à compreensão da realidade do mercado angolano onde as mulheres constituem, a meu ver, uma estrutura de intervenção na sociedade, enquanto grupo de identidade em formação, e um grupo de pressão potencial que poderia ameaçar o neo-patrimonialismo do Estado angolano e favorecer o desenvolvimento.

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[1] Mestre em Estudos Africanos, doutoranda em Economia do Desenvolvimento no ISCTE de Lisboa.