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Grupo de Trabalho 2
A Criação do Corpo Negro: Classe, Etnicidade e Gênero entre os jovens de classe baixa no Brasil e na Holanda

Livio Sansone[1]

A população negra é freqüentemente descrita como um grupo étnico transnacional formado pela história de escravidão em comum, pela experiência de discriminação racial e, de acordo com os autores afrocêntricos e muitos líderes negros, pelo enraizamento de todas as variações da experiência negra na ‘cultura africana’.[2] Neste processo pelo qual a população de origem mestiça-africana transforma-se em um grupo étnico, com uma sua ‘cultura negra’ específica, e que é o resultado da ação tanto de in- como de outsiders, categorias centradas na natureza como o corpo, o sangue, a sexualidade (geralmente, descrita como algo extremamente natural ou demasiado problemática), a pele, a psicologia, a família e a masculinidade/feminilidade, têm jogado um papel determinante. Elas são importantes na articulação da ‘essência’ do negro, daquelas caraterísticas que, a depender do contexto, o tornam (extremamente) atrativo ou repulsivo no olhar do outro. Nas ciências sociais tem sido quase tradicional adotar as categorias nativas gerida nestes contextos, transformando-as em categorias analíticas. Assim, termos como ‘família negra’ ou ‘masculinidade negra’ (freqüentemente em crise ou intrinsecamente problemática!) tornaram-se ‘realidades’ que definiriam, quase universalmente, o ser negro. Um problema ulterior, no caso da antropologia, é que a evidencia empírica que deveria sustentar a transformação destas categorias de nativas em analíticas, baseia-se quase que exclusivamente em pesquisas realizadas nos EEUU, no Caribe de colonização britânica e no Suriname.

Acredito que olhar para outras regiões do Atlântico Negro nos pode ajudar a desconstruir a suposta naturalidade destas categorias - salientando quanto elas são o produto de contextos e sistemas raciais particulares - e a rever, criticamente, o papel das ciências sociais tanto no processo de etnogênese como na construção do negro com ‘outro’ da e na modernidade (Sansone 1998a).

A fim de avaliar a importância contínua dos contextos regionais na explicação de diferencias entre versões locais da cultura negra e entre sistemas de relações raciais, sem perder de vista o desenvolvimento global da cultura negra, examino aqui duas cidades muito diferentes, Salvador e Amsterdã. Estas cidades foram escolhidas por dois motivos: minha própria experiência de pesquisa nelas, e o fato de se diferenciam em termos de história étnica, tamanho e tendências demográficas da população negra, assim como do lugar que a identidade étnica ou cor de pele ocupa no mercado de trabalho. O foco específico está: a) no sistema de oportunidades e estratificação étnica do mercado de trabalho; b) no papel do estado no sistema de relações raciais; c) na auto imagem do negro e a edificação de estratégias de sobrevivência e d) no papel do corpo e da sexualidade na construção de versões sempre mais estetizadas das culturas e identidades negras. Veremos como esta comparação assinala semelhanças e diferenças [3].

 

Salvador versus Amsterdã: semelhanças e diferenças

A presença negra nas duas cidades é muito diferente. Desde a primeira metade do século XVI, Salvador e sua região (Recôncavo) têm sido uma das principais concentrações urbanas de negros e mestiços de pele escura do Novo Mundo – talvez até mesmo a maior do gênero. Inspirados pela busca de ‘africanismos’ no Novo Mundo ou da ‘origem’ da cultura negra, muitos antropólogos (Herskovits 1941; Frazier 1942; Pierson 1942; Verger; Bastide 1967) consideram que o Recôncavo seja uma área onde as características ‘africanas’ têm sido fortemente mantidas.

            Amsterdã é a principal cidade e capital cultural de um país rico onde a população negra é apenas uma de muitas pequenas e recém chegadas minorias. Em 1994, os afro-surinameses, os antilhanos holandeses e os africanos negros constituíam nove ou dez por cento dos 720.000 habitantes de Amsterdã. Comparado à Salvador – onde as relações entre negros e não negros existem há séculos e fazem parte da estrutura e segmentação da cidade, e onde a imigração estrangeira tem tido pouca relevância nas últimas décadas– Amsterdã é uma sociedade aberta em termo étnicos. As relações interétnicas estão, de certo modo, ainda em formação, e a população negra constitui uma minoria étnica mais bem definida do que a população afro-brasileira na Bahia. Concentro-me aqui no maior grupo negro da cidade, os crioulos surinameses[4], e especialmente nos jovens e adultos de classe baixa. As diferenças de classe entre os crioulos e os antilhanos são acentuadas (Martens e Verweij 1997:37). Dentro do mercado de trabalho e na sociedade em geral, os crioulos estão, de várias maneiras, situados entre o holandês branco e os grupos relativamente grandes de antigos trabalhadores visitantes turcos e marroquinos e seus descendentes.

É óbvio que os sistemas locais de oportunidades em Amsterdã e Salvador são muito diferentes. Embora a Holanda tenha obtido uma ótima fama pela flexibilidade do seu mercado de trabalho, este processo de flexibilização aconteceu num contexto onde a força de trabalho era relativamente estável e rígida, havia uma informalidade limitada e um sistema de bem-estar social bem articulado. A opção para aqueles que não tem qualificação pode ser o auxílio-desemprego. Em Salvador, o pobre e o desempregado têm menos opções. Portanto, ao passo que para muitos surinameses holandeses a questão seja conseguir um emprego que pague razoavelmente melhor do que os benefícios de um seguro desemprego, a questão principal no Brasil é chegar a obter um emprego decente e conseguir mantê-lo. Os dados oficiais sobre o desemprego e a participação da mão de obra nos dois países são de difícil comparação, porque não foram obtidos de acordo com os mesmos padrões e porque os dados oficiais brasileiros são muito menores que a verdadeira taxa de desemprego.[5] Mesmo tendo isto em mente, a restruturação da economia na última década resultou num conjunto de semelhanças interessantes entre Amsterdã e Salvador – a falência do sistema de status baseado numa posição no mercado de trabalho dos seus pais. Isto se deve em grande parte à diminuição do poder aquisitivo nos tipos de empregos sem qualificação que os informantes poderiam conseguir. Tal tendência é vista em sociedades que, diferentemente da geração passada, estão dando mais valor a estilos de vida que resultam num consumo conspícuo. Além disto, há no momento, um número crescente de pessoas para quem um trabalho fixo acabou tornando-se uma atividade de fato estranha. Tanto no Brasil como na Holanda, o aumento da especialização e a resegmentação do mercado de trabalho estavam de mãos dadas com o estreitamento da distância simbólica entre as expectativas de classes sociais diferentes em termos de qualidade de vida, poder aquisitivo e qualidade de trabalho. Uma conseqüência desta demanda por uma mobilidade ascendente é que, na percepção das classes mais baixas, um número crescente de empregos passou a ser considerado indesejável ou ‘sujo’. Estratégias semelhantes também estão sendo organizadas nos dois países para atingir mobilidade social. O significado do funcionalismo público, do exército e das companhias estatais com caminhos de mobilidade social para as populações negras é um fenômeno comum em todo o Atlântico Negro – e as companhias estatais são de especial importância no Brasil (da Silva 1997; Figueiredo 1998). Possivelmente porque a cor tem relativamente pouco peso nos critérios de contratação e nas perspectivas profissionais dentro do setor público. Outra semelhança relativa entre os dois países é a grande representação dos negros em certas profissões na área de lazer (principalmente esportes, canto, dança e música popular), embora a grandeza e importância destes profissionais nos dois países seja consideravelmente diferente.

Uma grande diferença entre os dois grupos sendo comparados está no grau de intervenção estatal na vida cotidiana do pobre urbano. Tanto em Salvador como em Amsterdã, a marginalidade relativa dos negros de grandes fatias dos mercados de trabalho é um fato que já existe há muito tempo. Sob muitos aspectos, os crioulos de classe baixa de hoje, juntos com outros grupos de imigrantes ‘problemas’, são vistos de forma semelhante como os ‘anti-sociais’, um grupo problemático de brancos e ‘pobres indignos’, eram retratados na literatura holandesa popular e erudita antes da Segunda Guerra Mundial (de Regt 1984; de Swaan 1988). Também no Brasil, construções culturais antigas referindo-se às patologias do ‘pobre indigno’ – das quais a grande maioria se aplicava originalmente à onda de novos pobres urbanos que precederam e seguiram a abolição da escravidão em 1888 – ainda parecem co-prescrever interpretações atuais dirigidas aos pobres urbanos, em grande parte negros e mestiços. Nos anos da Primeira República, logo após a abolição da escravidão, a preocupação com o pobre limitava-se a implantação de medidas de ‘higiene social’ e ao combate de doenças contagiosas (Stepan 1991). Até a ditadura corporativista de Vargas nos anos 30, a qualidade de vida, vida em família e relações e mistura entre grupos étnicos do povo brasileiro desenvolveram-se grandemente fora das operações do estado, e talvez até opondo-se a elas. Dos anos 40 até os anos 70, as tentativas do estado para melhorar as condições de vida, e no processo, ‘organizar’ a vida dos pobres urbanos foram intermitentes e não tiveram como resultado um estado do bem-estar social eficaz e abrangente. Além disso, nos últimos vinte anos, com a retração generalizada do estado e os cortes nos gastos públicos, as condições de vida na cidade têm não obstante se desenvolvido novamente com um relativo grau de autonomia do estado. A começar pela (tardia) abolição da escravidão, este desinteresse por parte do estado uniu-se à falta de qualquer estratégia que associasse a negritude ao pobre (indigno) – pelo menos não por escrito ou em nenhuma declaração oficial. Nos planos de ação pública, questões como pobreza, doenças sociais e higiene pública nunca ficaram explicitamente associadas com ser negro – embora isto sempre tenha ocorrido na prática do policiamento (Chalub 1990).

            De forma generalizada, poder-se dizer que no Brasil a exclusão social das pessoas escuras, e o grande número deles entre os pobres, surgiu em grande parte devido à ausência do estado, ao passo que na Holanda este fenômeno ocorreu apesar das medidas tomadas pelo estado e apesar da existência de um dos estados de bem-estar social mais bem desenvolvidos no mundo. Contrastes sociais bastante diferentes ocorrem nos dois países. Na Holanda, o estado garante os direitos individuais e a satisfação de várias necessidades básicas, mesmo para os pobres. De modo geral, a lei é cumprida. No Brasil, o indivíduo determina de forma dramática a execução da lei. O princípio geral de direito não é tão eficiente e democrático como na Holanda. O estado é uma máquina que o povo costuma ‘neutralizar’ através de ações individuais. Esta relação individualizada com a lei e o estado produziu grandes disparidades nas relações raciais e num processo de negociações injustas entre a população negra e o poder e o estado (DaMatta 1987, Viotti da Costa 1989 e Fry 1997).

            Nos últimos anos, o papel do estado na formação social retrocedeu nos dois países, ao passo que os meios de comunicação de massa e a publicidade estão crescendo. Os não-brancos na Holanda, embora em número proporcionalmente menor, estão cada vez mais presentes nas representações da holandesidade, tanto comerciais como públicas, seja como parte das avançadas estratégias mercadológicas ou porque a publicidade decidiu pintar um quadro da sociedade alicerçada num multiculturalismo emergente. No Brasil, ao contrário, os negros estão representados em número muito menor na publicidade e nos meios de comunicação de massa, principalmente nas telenovelas, embora mais negros estejam sendo vistos nos últimos anos em propaganda de companhias e serviços públicos ou semipúblicos. É possível que a pequena representação dos negros se deva a relativa falta de um discurso multicultural de como o Brasil deve ser retratado pelo mercado, ou talvez pelo fato do consumismo popular ser muito limitado. As estratégias mercadológicas, principalmente para as mercadorias consideradas sofisticas pelos padrões regionais (entre as quais incluem-se mercadorias que seriam tidas como comuns na Holanda, tais como alimento processado, carros econômicos ou telefones portáteis) ainda destinam-se basicamente aos altos escalões da metade branca da população brasileira. Estratégias agressivas para seduzir novos grupos de consumidores são empregadas insuficientemente, e embora o número de afro-brasileiros de classe média esteja constantemente crescendo (Figueiredo 1998), os grupos de consumidores definitivamente ainda não são constituídos com base na sua etnicidade.

Voltemo-nos agora para a construção da identidade negra. Tanto no Brasil como na Holanda, a cultura negra está cada vez mais voltada para o aspecto estético através do uso de símbolos associados ao corpo negro e uma suposta sensibilidade negra. Para as pessoas que conseguem usá-los com habilidade, estes símbolos melhoram suas chances de obter acesso à cultura jovem e ao que parece ser um novo nicho sensual na divisão de trabalho dentro da moderna sociedade ocidental urbana. De portador de um estigma, o corpo negro é transformado numa vitrine de uma nova maneira, ‘natural’, e por vezes hedonística de relacionar-se com a modernidade. Este enfoque estético da cultura negra é particularmente evidente no campo da música popular – a interação entre o que é percebido como música negra e a música dominante ou ‘branca’. Esta ênfase hedonística aumenta o grau de ‘naturalidade’ da construção da diferença da ‘raça negra’. Tanto em Salvador como em Amsterdã, este é um processo que opera tanto de fora, através da perspectiva sobre o povo negro, e de dentro, através da auto-imagem de muitos negros, especialmente certas lideranças negras, que sustentam que os negros são de fato biologicamente diferentes do resto – mais próximos à natureza, mais sensuais e sentimentais. A ênfase no consumo é uma faca de dois gumes. O consumismo pode ser visto como um meio de se alcançar a cidadania e de participar na sociedade, mas é também um campo disputado no qual sente-se não somente o sucesso, mas também a exclusão e a frustração – já que é somente uma minoria que consegue adquirir os símbolos de status do consumismo moderno. Entre os jovens negros de classe baixa, as imagens atraentes e globalizadas do sucesso, centradas na situação do negro nos EEUU, principalmente no mundo do entretenimento e dos esportes profissionais, podem tanto estimular um super progresso em certas fatias limitadas do mercado de trabalho assim como podem também espalhar frustração em relação ao que é interpretado no mundo todo como sub-progresso (Cashmore 1997).

            Nas duas cidades existem vários grupos de negros que buscam inspiração cultural nos negros dos Estados Unidos assim como buscam também um sistema de coordenadas – no geral, os Estados Unidos é um país com o qual costuma-se fazer comparações. O modo como a cultura negra é construída nos Estados Unidos é um ponto de comparação necessário para o estudo da cultura negra em outros contextos. Toda a série de ‘verdades’ (ou truísmos) étnicas altamente naturalizadas sobre a personalidade do negro masculino ou feminino, sobre a população negra de classe baixa, sobre a preferência profissional dos negros, sobre a família negra, sobre a sensualidade e sentimentalismo dos negros tornou-se parte essencial da divisão étnico-cultural do trabalho nos Estados Unidos. Tais construções estão freqüentemente refletidas na publicidade, na mídia e nos filmes. Devido ao poder da imagem negra (e branca) dos Estados Unidos dentro das correntes culturais globais – por exemplo, no modo como os negros são representados nas campanhas publicitárias de símbolos populares de status como sapatos esportivos – muitas destas imagens são agora conhecidas no mundo todo. Elas permeiam a imagem que se tem dos negros, assim como a auto-imagem dos negros, mesmo nos lugares mais distantes. Portanto, parece pertinente tirar-se aqui algumas conclusões sobre a especificidade ou universalidade de certas características dos sistemas de relações raciais nos Estados Unidos e sobre a ‘americanização’ de variantes regionais da cultura negra.

            Nos Estados Unidos, assim como em outros países do Atlântico Negro, os negros estão representados em maior número entre os pobres, o ‘pobre moderno’ e a geração sem emprego. Não obstante, a distribuição da população negra na força de trabalho é específica, assim como as estratégias dispostas pelos negros no mercado de trabalho – da classe média até os ‘desclassificados’. Os negros marginalizados nos Estados Unidos tendem a ser mais antagonistas contra as tendências prevalecentes do que os negros baianos e, até certo ponto, que os negros de Amsterdã. Durante as últimas décadas, os negros dos Estados Unidos desenvolveram estratégias de sobrevivência alicerçados no distanciamento da classe média branca. Ocorre praticamente o oposto no Brasil: os negros têm historicamente tentado seduzir e atrair a classe média branca. As expressões culturais afro-brasileiras, tais como rituais religiosos ou criação musical, são essencialmente abertas aos brancos. Os crioulos da Holanda, e principalmente a geração mais jovem, estão no momento passando por um processo através do qual eles estão, por assim dizer, ‘tornando-se negros’ (Sansone 1994). Conforme já aconteceu na Grã-Bretanha e na França, os crioulos estão redefinindo a sua identidade étnica através da sua experiência de migração. A cultura negra dos Estados Unidos é uma fonte de inspiração importante neste processo de redefinição. Afinal de contas, os Estados Unidos têm sido parte do horizonte cultural do Suriname há décadas – primeiro no Suriname, onde os Estados Unidos significava a modernidade sem o colonialismo, e agora na Holanda, onde a cultura negra dos Estados Unidos oferece claras evidências de que a modernidade, consumo conspícuo e negritude podem andar de mãos dadas. Em outras palavras, ser étnico não significa necessariamente ser marginal.

Quando os jovens negros em Amsterdã e Salvador ‘saem para comprar cultura’ – escolhem entre os símbolos étnicos que são apresentados pelas novas correntes culturais globais – isto é informado pela classe, idade, gênero e circunstâncias regionais. Os símbolos globais negros são tirados principalmente das regiões do Atlântico Negro onde se fala inglês. Através do sucesso mundial da música reggae e da popularidade do estilo rastafari, o pequeno país Jamaica é uma importante fonte de inspiração, juntamente com os Estados Unidos e o Reino Unido (Savishinsky 1994; Sansone 1994 & 1997). Tais símbolos globais negros são reinterpretados seletivamente dentro dos contextos nacionais, e o que não combina com a própria situação do indivíduo é rejeitado. Embora os ícones associados à música e aos estilos jovens terem uma tendência a convergirem-se na mesma direção (a exemplo do que aconteceu com a parafernália da música reggae e hip hop), as preferências musicais e as reinterpretações concretas de tais ícones são firmemente locais. Entre os jovens negros no Brasil, palavras em inglês como black, funk e brother ganharam significados locais muito específicos que inferem associações muito mais com o consumo conspícuo, prosperidade e hipermodernidade do que com relações raciais polarizadas (Viana 1988; Midlej e Silva 1998; Sansone 1998).

 Em Amsterdã e Salvador o relacionamento com o universo de redes negras de falantes do inglês é um tanto diferente. Em Amsterdã, a proporção de negros que pode consumir mercadorias culturais e símbolos de origem no mundo de fala inglesa é muito maior do que no caso de Salvador, onde a grande maioria da população negra não consegue nem sequer suprir suas necessidades básicas, muito menos comprar CDs ou moda inspirada no hip-hop. Amsterdã está também muito mais próxima às correntes culturais ocidentais. Por outro lado, os símbolos e artefatos afro-baianos tem sido fundamentais na construção da imagem do Brasil no exterior, e a música afro-baiana (principalmente a axé music e as bandas de percussão) e outras formas culturais (tais como a capoeira) têm um lugar conspícuo na música étnica (world music) e estão tendo cada vez mais repercussão nos Estados Unidos e Europa. Se Amsterdã é uma cidade de transmissão da cultura negra internacional, um lugar onde a cultura é processada e ‘empacotada’, então Salvador é uma cidade de fonte – um local onde os ‘africanismos’ são produzidos e reproduzidos. Já basta desta divagação sobre a ‘americanização’ das variantes regionais da cultura negra.   

Os moldes que dão um enfoque estético à cultura negra são diferentes nas duas cidades. Isto se deve em primeiro lugar, ao fato deles terem tradições diferentes na incorporação da negritude ou do ser branco e diferentes histórias da moralidade sexual. Existe uma relação muito próxima entre a maneira como os corpos negros masculinos e femininos são vistos numa sociedade e a maneira como estes corpos são nela usados na construção da etnicidade e ‘diferença’ negra. Salvador é uma cidade tropical onde a classe baixa e até grande parte da classe média têm uma vida social muito centrada na rua. A vida na praia e mar são fundamentais nas manifestações de cultura popular tais como festival de música nas ruas e nas praças, carnaval, e dança e música nas ruas e praias. Ser branco, e não negro, é exótico. Os olhos azuis despertam um frenesi no sexo oposto que se compara à chegada das trancinhas de cabelos rasta nas escolas holandesas de classe baixa na década de 70. (Pode-se argumentar que olhos azuis têm um atrativo sexual muito diferente do que as trancinhas de cabelos, mas tal discussão estaria fora do escopo deste artigo.). Em Salvador, muito mais do que em Amsterdã, o flerte acontece em público. Ser um bom dançarino é visto como uma característica de todos os baianos, e não uma qualidade específica do íntimo estranho, o crioulo. [6] O segundo motivo da diferenciação dos modos estéticos é a ‘visibilidade’ diferenciada dos jovens negros nas duas cidades. Em Amsterdã, o simples fato de agruparem-se numa esquina, falando alto em um grupo, bebendo cerveja com os colegas na rua, ou comentando em voz alta sobre as garotas que passam pode ajudar a tornar um grupo de jovens negros em um fenômeno ‘étnico’ aos olhos dos não-negros. Em tais casos, a negritude deles é associada a um comportamento que é considerado altamente sexual, grosseiro e até ameaçador pelos padrões vigentes. Em Salvador, o estigma da negritude – onde ser negro significa pertencer à classe baixa – não é tão associado aos jovens negros que ficam perambulando pelas ruas (seriam muitos deles) como maneiras de estarem exibindo seu corpo negro. Isto deve-se ao fato do corpo negro ter o estigma associado à pobreza e trabalho pesado (aparência não saudável, maus modos, falta de dentes, cicatrizes, calos, varizes, doenças e ferimentos de pele) ou porque o indivíduo se apresenta com uma pessoa indecente ou desempregada. No passado, o malandro[7] exibia com orgulho todos os atributos que demonstravam que ele não estava fazendo nenhum trabalho pesado: unhas cumpridas, mãos bem cuidadas, pele perfumada, camisas imaculadamente brancas. O jovem malandro de hoje se diferencia dos otários através da sua reinterpretação à moda funk da roupa de praia da Califórnia (que tornou-se mais acessível com as etiquetas de primeira classe falsificadas e contrabandeadas do Paraguai). A polícia, que pelo menos no nível das ruas é esmagadoramente negra ou mestiça,[8] reforça a importância destes sinais de diferenciação de classe baixa e negra. Até trinta anos atrás, nas suas freqüentes rotas noturnas, eles teriam prendido um jovem sem calos nas mãos; hoje eles prendem aqueles que vestem roupas de praia funky ‘muito caras’.

É fundamental neste trabalho se a exclusão e a auto-exclusão têm base na etnicidade. Tanto os afro-brasileiros como os crioulos em Amsterdã podem ser considerados como minorias coloniais. Como muitos outros antes dele, que escreveram sobre escolas dos Estados Unidos, Ogbu (1978) mostrou como os jovens de classe baixa, especialmente os homens, de minorias coloniais costumam adotar uma atitude de resistência com relação à educação formal e ao trabalho não especializado. O principal motivo deste antagonismo aos valores prevalecentes, defendeu Ogbu, é que a sua incorporação forçada no mercado de trabalho está de mãos dadas com a sua percepção perspicaz dos limites das suas possibilidades de trabalho. Com relação aos esforços pessoais, os negros tradicionalmente evitam a competição direta com os brancos por medo de represálias’ (1974:180). Ao invés deste medo que eles têm dos limites das suas possibilidades de trabalho estimulá-los a estudar mais, ele freqüentemente os desencoraja de qualquer estudo. Atitudes semelhantes podiam ser encontradas entre informantes nas duas cidades. Em Salvador, no entanto, a autopercepção de exclusão não existe em termos de negro ou branco, nem de etnicidade. Lá a vitimação é entendida em termos dos ‘fracos’ e não da cor ou raça, embora os fenótipos negróides sejam parte da construção de ‘fraqueza’. A maioria dos negros brasileiros de classe baixa acredita firmemente que qualquer mobilidade ascendente é resultado da capacidade e da oportunidade de integrar, juntar-se à principal corrente da sociedade, que eles vêem como ‘brasileiros’ e não ‘brancos’. Os mesmos jovens negros brasileiros que evitam certos trabalhos porque acreditam não ser ‘ideal’ para eles, argumentam de maneiras que poderiam tornar muitos de nós perplexos: embora insistam que tal abstenção não é uma conseqüência de racismo, eles acreditam que se beneficiariam em fazer amigos brancos e estabelecer ‘conexões’ com pessoas brancas influentes. Em outras palavras, no grupo que estudei em Salvador, a sua exposição à discriminação racial e exclusão social, e a suas reações de auto-exclusão à estes fatores não foram acompanhadas de nenhuma atitude com base na etnicidade (cf. Warren 1997), embora eles tivessem de fato resistido à escola e ao trabalho monótono. Conforme escritores como Waldinger e Perlman (1997) enfatizaram, muito desta atitude contracultural, ao invés de estar etnicamente fundamentada, é no geral típica das classes baixas, que têm historicamente inclinado-se a enfatizar a solidariedade de grupo e desprezar tentativas individuais de mobilidade ascendente. Portanto, a auto-exclusão pode estar ligada ao que é comunemente visto como uma atitude antagonista com relação a sociedade em grande maioria branca, mas pode também estar ligada a uma atitude de integração com relação a vida, conforme vemos no Brasil.

            Porque a etnicidade negra é menos importante quando os brasileiros explicam suas próprias posições sociais? Eu sugeriria tentativamente quatro motivos interrelacionados. Primeiramente, a história das relações raciais no Brasil difere notavelmente de Suriname e da Holanda. O Brasil é um campeão da variante ibérica de colonialismo e relações raciais (Hoetink 1967), o que é caracterizado pelas coligações e limites étnicos relativamente fluídos, uma ênfase universalista sobre lei e estado, a institucionalização de um grupo de mulatos, e a presença do catolicismo romano como a religião de facto do estado. A igreja católica ‘acolheu’ almas tanto brancas como negras, mas ofereceu, nas suas manifestações populares, espaço para uma interpretação seccional da palavra de Deus e da liturgia. Os escravos eram obrigados a converterem-se ao catolicismo assim que chegassem às costas brasileiras. No Suriname, em contraste, a conversão à fé cristã era desencorajada quando não proibida. Depois da abolição da escravidão, a experiência religiosa permaneceu diferente nos dois países porque o pluralismo era aceito no Suriname. Eu concordaria, juntamente com Hoetink (1967), que a tradição religiosa foi especialmente importante. O universalismo da sociedade afro-latina (um país, uma lei, um povo/raça, uma religião) teve sua origem na tradição católica. A tradição protestante, talvez por estar acostumada a ter igrejas diferentes para pessoas diferentes, coincidiu e até fortaleceu uma atitude liberal com relação à diversidade étnica na sociedade. Hoje o Brasil é uma república federal com um poder estatal central forte. Ele opera num contexto de dogmas estritamente universalistas, uma história de mistura racial, um sistema de classificação racial não polarizado, uma antiga tradição sincrética dos campos de cultura e religião popular, uma tradição de intolerância com relação à diversidade étnica na vida política, uma aversão geral à etnicidade e, mais recentemente, uma considerável dificuldade em permitir qualquer multiculturalismo na educação (Veja Souza 1996; Sansone 1999). No Brasil ‘heterofóbico’[9] o direito a diversidade cultural é efetivamente negado nas variantes tanto intelectuais como iletradas do discurso de democracia racial. Ambas não só abominam o racismo, como também prestigiam a mistura biológica e cultural nos rituais públicos de miscigenação em atividades de lazer (e.g., criação e consumo de música tradicional e popular) e na religião popular. A Holanda, por outro lado, é um país onde o povo negro é relativamente pequeno, uma minoria que imigrou recentemente e cujos limites étnicos são mais acentuados que no Brasil. O país tem também uma tradição conhecida como pilarização, que havia previamente determinado uma segregação de amplas conseqüências dentro das orientações políticas e religiosas. Apesar desta tradição ter se enfraquecido consideravelmente nas últimas décadas, ela estabeleceu a base para o surgimento, numa proporção maior do que na maioria dos outros países de imigrantes europeus (Vermeulen 1997), de muitas novas escolas religiosas que atendem aos descendentes dos imigrantes. A maioria destas escolas, mas não todas elas, são muçulmanas. A etnicidade e o direito à diversidade cultural e religiosa são exaltadas na Holanda como bens– como algumas das melhores características do país.[10] Juntamente com esta celebração de diversidade, no entanto, a Holanda também observou altos níveis de miscigenação nas últimas quatro décadas, que resultou principalmente das uniões de holandeses brancos com os cidadãos holandeses de origem indonésia, crioula, antilhana e moluca. Embora o desenvolvimento de uma identidade étnica ‘misturada’ seja ainda limitado, esta mistura étnica já está trazendo desordem ao sistema de classificação étnica estabelecido, o qual é fundamentado na polaridade allochtoon/autochtoon (estrangeiro/indígena), ou as vezes branco/não-branco (van Heelsum 1997).[11]

            O segundo motivo para a ênfase diferencial na etnicidade negra é que as divisões etnoculturais de trabalho têm sido historicamente bem diferente nos dois países. No Brasil, o discurso sobre trabalho pesado é em grande parte associado ao corpo negro (desrespeitado e malnutrido). Na Holanda, uma divisão étnica de trabalho não surgiu até os anos 60, e aí foram os trabalhadores imigrantes vindos dos países mediterrâneos e não os crioulos que ficaram associados ao trabalho pesado e indesejável. A posição dos crioulos no mercado de trabalho holandês é um resultado de dois fatores: a segmentação etnocultural do mercado de trabalho no Suriname (Veja por exemplo van Lier 1971) e a incorporação problemática dos imigrantes surinameses que chegaram na Holanda depois de meados dos anos 60. No Brasil, a divisão etnocultural de trabalho é fundamentada no legado da escravidão, na baixa posição historicamente designada ao trabalho manual, e na distribuição e status de trabalho de acordo com uma combinação de cor, classe, status e comportamento. Funciona como um mosaico mais do que uma polaridade.

            Terceiro, a maioria dos negros brasileiros considera-se parte da classe baixa – embora saiba que o racismo também existe nas classes baixas, por exemplo na hora da escolha de parceiros para se casar (Poli Teixeira 1988). Eles agem da mesma maneira nas associações de bairro de classe baixa, nos sindicatos e nos seus padrões eleitorais – não há distintamente quase nenhum voto ou ponto de vista negro nas pesquisas de opinião (Datafolha 1995). Os crioulos na Holanda estão, na maioria, numa posição de classe baixa, e sentem-se excluídos e em desvantagem. Eles têm votado tradicionalmente no partido socioldemocrata , mas não parecem inclinados a identificarem-se com a classe baixa nativa. Na verdade, meus informantes pareciam enxergar isto como grosseiro e feio (Sansone 1992:42-44).

             Quarto, no Brasil os negros são uma parte integral da construção da imagem nacional e da representação pública de brasileirismo. A mídia não costuma interpretar as tensões sociais ou culturais em termos de preto e branco, embora exista uma certa interpretação racial da diferença, principalmente na personificação que a mídia faz da pobreza. Como conseqüência, o apego à ‘nação’ é mais forte na população negra no Brasil do que na Holanda. Isto está refletido em primeiro lugar no fato de que os recordes de vendas de sucessos musicais nacionais não estão ligados à cor – a exaltação do brasileirismo freqüentemente se expressa através da música popular. Os símbolos holandeses nacionais são ainda predominantemente brancos – o que não significa necessariamente que os crioulos não possam reconhecê-los como sendo deles também, como é o caso da monarquia. Na Holanda, a negritude ainda simboliza o estrangeiro, embora isto possa estar agora mudando. No Brasil, a negritude é um símbolo de pobreza. Muitos negros holandeses entendem os crioulos como vassalos coloniais transplantados, ao passo que a maioria dos brancos brasileiros vêem os afro-brasileiros como descendentes de escravos.

 

Conclusões

Importantes diferenças surgiram entre a Holanda e o Brasil no que se refere à distribuição, posição e participação da população negra no mercado de trabalho. As duas populações também diferem em termos da ética de trabalho, espírito empreendedor, distribuição da população urbana-rural, taxa de empregos em cargos de governo, grau de dependência da assistência social, e as ‘alternativas’ que eles têm disponíveis nas economias informal e criminal. Identificamos técnicas usadas nos dois grupos à medida que as pessoas lutam para conquistar mobilidade social, e vimos os mecanismos através dos quais eles se excluem daquelas posições do mercado de trabalho e sociedade que eles consideram menos apropriadas aos negros. Tais técnicas e mecanismos são moldados pelos sistemas de oportunidades regionais. As estratégias de sobrevivência podem incluir táticas contrastantes tais como tentar seduzir os brancos ou manter distância deles. Podem enfatizar a miscigenação e as contribuições que os negros dão à cultura popular ou até ao país, ou podem almejar a construção de uma comunidade negra enfatizando a etnicidade negra. Outras construções etnoculturais que são influenciadas por situações nacionais ou regionais específicas, e não só por estereótipos ou imagens internacionais, envolvem o corpo negro e a sensualidade negra, o ‘homem negro’ e a sua ‘ameaça’ à principal corrente de brancos, feminilidade negra como uma força natural, uterina e mágica, e a noção de que os negros são melhores em dança ou esporte – noções identificáveis tanto nas variantes negrofóbicas e negrofílicas (Gendron 1990). Os casos de Amsterdã e Salvador mostram que não há tal coisa como estratégias de sobrevivência ‘tipicamente negras’.

            Ao passo que devemos lembrar-nos todas estas diferenças, precisamos ainda refletir sobre uma série de semelhanças extraordinárias entre os jovens negros nas duas cidades. As semelhanças entre contextos nacionais podem ser tradicionais, ou podem ser produtos de uma nova fase de internacionalização. As misturas de classe e fatores étnicos, havendo freqüentemente uma rixa entre eles, podem ser vistos em ambos períodos. Isto levanta a questão sobre a real existência de uma cultura negra universal – uma cultura específica que difere das culturas e subculturas gerais de classe baixa. Se este for o caso, qual é sua origem e significado?

            Em primeiro lugar, as semelhanças na cultura negra e etnicidade além dos limites nacionais podem ter resultado de uma história de trocas internacionais pelo Atlântico Negro. O termo ‘cultura negra’ em si é um resultado da diminação e de dramáticos choques internacionais. A escravidão, deportação e a sociedade de colonização estabeleceram as bases para a internacionalização da condição negra no Novo Mundo. Como conseqüência, o povo negro costuma ser encontrado no patamar mais baixo das escadas sociais tanto em Suriname como no Brasil. O racismo, quer perpetrado pela população não-negra no Brasil ou pelas práticas do governo colonial no Suriname, tem co-determinado as oportunidades do povo negro. Na fase histórica, os contatos internacionais vigentes eram poucos, e eram estabelecidos na maioria das vezes por cientistas (Herskovits, Verger, Bastide), viajantes ou missionários.

            Tais semelhanças internacionais tradicionais têm sido ditadas pela história e pela experiência de diáspora. Entretanto, nas últimas décadas, foi dado um impulso à internacionalização da cultura negra pelas condições estruturais convergentes e uma nova infra-estrutura técnica da era pós-fordista, assim como por novas oportunidades de criação cultural que o processo de globalização está possibilitando. A crise mundial das condições de emprego que acompanha a atual fase da sociedade deu início a um processo de declínio geral na importância do status de trabalho para a auto-definição individual e para a construção da personalidade, promovendo ao mesmo tempo a centralidade do consumismo. Estes fenômenos globais têm surgido em diversos países diferentes nas últimas décadas, quase que independentemente do estágio econômico em que um país encontre-se, ele tendo ou não um sistema de assistência social articulado, tendo ou não uma população negra.

            Ademais, as populações negras tanto no Brasil como na Holanda estão historicamente super representadas nas classes pobres e especialmente na classe do ‘pobre desmerecedor’ (tais como presidiários, prostitutas e jovens problemáticos). No Brasil, os negros estão também desproporcionalmente muito presentes na classe operária. Isto explica porque, em todas as suas variantes regionais, a cultura negra tenha muito em comum com a cultura de classe baixa e às vezes com a ‘cultura de pobreza’, e porque no Brasil esteja também intimamente ligada à cultura da classe operária. Entretanto, se fôssemos simplesmente igualar a cultura negra com a cultura de classe baixa ou alguma variante dela, estaríamos cometendo dois erros. A cultura negra é muito freqüentemente compreendida como antagonista aos valores prevalecentes – esquece-se que muitos negros querem simplesmente ter seu devido lugar. Por outro lado, formas de identidade negra têm freqüentemente emergido entre os negros de classe média e com melhor nível de escolaridade, mesmo aqueles que normalmente não praticaram a cultura negra tradicional.

            Existe ainda um outro fator que produz características comuns nas variantes regionais da cultura negra – a experiência do racismo e da caracterização racial do corpo negro. O último é o motivo da ênfase dada por muitos jovens negros à sua suposta musicalidade e sensualidade inatas ou à sua força física, com a certeza de que isto será a melhor maneira do indivíduo com poucas qualificações ganhar status – não somente na esfera de lazer, mas no mercado de trabalho também. Muitos informantes tanto em Amsterdã como em Salvador sugeriram em algum ponto que seria através de uma destas ‘qualidades negras’ que eles conseguiriam finalmente vencer no ‘mundo do branco’. As organizações e líderes negros das duas cidades têm argumentado em várias ocasiões que os negros deveriam receber um lugar ‘cultural’ especial no mercado de trabalho. Poucas pesquisas entretanto foram feitas sobre o tamanho e possibilidade de tal espaço cultural ou sobre o potencial econômico da indústria da cultura negra na sociedade ocidental[12] (embora o Brasil se qualifique somente parcialmente para o termo super abrangente ‘ocidental’). Pesquisas feitas nos Estados Unidos e Grã-Bretanha costumam ser muito polêmicos com relação à potencialidade da indústria da cultura negra (Veja principalmente Frazier 1962 e Cashmore 1997). O que é geralmente aceito, entretanto, é que as qualificações intelectuais e técnicas são uma fonte muito maior de status numa sociedade tecnológica do que a musicalidade, sensualidade e força física.

            A globalização da cultura urbana ocidental criou novas oportunidades para a distribuição mundial de vários símbolos associados à cultura negra, a maioria deles originados nos países em que se fala inglês. A globalização significa não somente um novo conjunto de meios técnicos de comunicação mais rápidos e poderosos, mas também sugere uma fase na sociedade moderna de uma nova paixão pelo exótico, o puro, o natural. Isto está ajudando a criar um espaço novo (comercial e não comercial) para aquelas formas de cultura negra que estão mais relacionadas com a cultura juvenil e com a manipulação estética do corpo negro, assim como as formas que enfatizam ‘pureza’ e ‘tradição africana’. Atualizando as antigas imagens da suposta naturalidade do povo negro, as correntes globalizadas de símbolos estão essencialmente ligando os jovens negros ao lazer, agilidade, habilidade sexual, musicalidade e naturalidade, contrapondo-os ao mesmo tempo com o trabalho, racionalidade e tecnologia moderna. Isto tem gerado um tipo de hedonismo negro global moderno que é tanto uma causa e uma conseqüência da racialização. Tal hedonismo infiltra-se nas distante variantes regionais de culturas negras através da indústria da música e lazer, cultura jovem e propaganda. Entre estes jovens negros, as diferenças de gerações e a crise de emprego estão gerando descontentamento com a geração dos pais, com sua cultura e etnicidade negra, e incentivando a popularidade deste hedonismo negro como uma interpretação moderna de um estilo de vida do negro de classe baixa. Embora a popularidade deste hedonismo possa variar, é certamente um fator cada vez mais importante tanto na escolha da carreira profissional e no processo de auto-exclusão de certas zonas do mercado de trabalho e da sociedade. Para um número crescente de jovens negros nas duas cidades, a cor é a lente através da qual eles interpretam e experimentam sua própria posição de classe. A proporção com que a cor é vista como uma explicação de sucesso ou fracasso depende da popularidade da ‘classe’ como uma explicação alternativa. Depende também das circunstâncias regionais, que são mais favoráveis à ‘cor’ em Amsterdã do que em Salvador. Não há nenhuma cultura e etnicidade negra sem racismo – a lembrança da opressão brutal do passado e o conhecimento das práticas mais sutis atuais. Através dos processos de internacionalização antigos e novos, os símbolos e discursos ligados a esta relação causal entre a cultura e etnicidade negra e racismo estão ficando cada vez mais parecidos uns aos outros no mundo todo, embora as articulações políticas e os resultados regionais ainda variem muito.

 

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[1] Sociólogo. Doctor en Antropologia, Universidad de Amsterdam. Temas de trabajo: antropologia de la etnicidad y de culturas juveniles y negras en Londres, Amsterdam, Paramaribo, Salvador y Rio de Janeiro. Coordinador del programa Afro-Brasil del Centro de Estudios Afro-Asiaticos de la Universidad Candido Mendes. Profesor visitante de antropologia urbana en la Universidad Estadual de Rio de Janeiro. Tema de inbvestigación actual: “El Negro en la policia militar de Rio de Janeiro”.

[2] Uma definição de cultura negra que pode ser válida no contexto de vários sistemas de relações raciais diferentes é a seguinte: a cultura negra é uma subcultura específica de pessoas de origem afro-americana dentro de um sistema social que enfatiza a cor da pele como um critério importante para diferenciar ou segregar as pessoas. A principal força unificadora da cultura negra é o senso de um passado comum como escravos e pessoas desprivilegiadas. A África é usada como um ‘banco de símbolos’ de onde os símbolos são retirados com criatividade. Outra característica específica da cultura negra é o seu alto grau de interdependência com a cultura urbana ocidental. Especifico à cultura negra, principalmente nas suas formas contemporâneas, é a sua maneira de lidar com a aparência física. Conforme a terminologia aqui usada, a cultura negra no singular é um conceito taxonômico básico que se refere às características comuns na produção cultural de populações negras em contextos diferentes. ‘Culturas negras’ refere-se ao lugar ou às variantes de subgrupos da cultura negra.

[3] O argumento deste trabalho baseia-se sobre um projeto de pesquisa mais amplo comparando relações raciais em cidades de países diferentes da área do Atlântico Negro. Ver a esse respeito Sansone 1999, 2000 e 2000a.

[4] Um Creool (plural Creolen) é uma pessoa surinamesa de descendência africana – pura ou mista.

[5] Por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registra como trabalhador qualquer pessoa com mais de 10 anos que esteja envolvida com algum tipo de atividade na economia informal por pelo menos 20 horas por semana.

[6] É curioso que em alguns bairros freqüentados por turistas europeus, a negritude é ‘desempenhada’ de maneiras que me lembravam Amsterdã. Jovens atraentes, principalmente as mulheres, que desenvolveram uma estratégia de sobrevivência acompanhando turistas brancos durante suas férias na Bahia, são chamados de comedores de gringo (papagringo) ou negros de carteirinha por outros jovens negros.

[7] Entre os crioulos de classe baixa em Suriname (Brana-Shute 1978), e depois na Holanda, pode-se encontrar o personagem popular do wakaman (literalmente, o homem que anda). Sua habilidade em evitar trabalho trivial o torna muito semelhante ao malandro. O malandro e o wakaman, com seus estilos de vida hedonísticos e sua habilidade de esquivarem-se do trabalho monótono, foram figuras fundamentais na construção da atitude em relação ao trabalho dos informantes nas duas cidades. No Brasil, embora a maioria dos malandros seja negros, eles não são celebrados como personagens negros nas letras e samba e nos romances populares, mas sim como protótipos de um personagem nacional e da ‘brasileirice’ popular. Pesquisas sobre o malandro resultaram em várias publicações (veja, por exemplo, DaMatta 1979).

[8] Não há disponibilidade dos números exatos sobre a cor dentro da polícia baiana. A título de referência, no estado do Rio de Janeiro, de acordo com as estatísticas oficiais do Departamento de Estatística da Polícia Militar, apenas cerca de 30% dos 28.000 homens do corpo policial identificam-se como brancos. Cerca de um terço deles relatam ter cabelo crespo, o que significa que na verdade eles são brancos da terra, mestiços de pele clara.

[9] Desde os meados do século XVIII até os anos 30 deste século, o Brasil absorveu grandes quantidades de imigrantes, principalmente da Itália, Espanha, Japão, do Império Turco e da Alemanha. A integração e miscigenação foi motivada por lei, ao passo que a formação da minoria étnica foi desencorajada e até banida – nos anos 30 o governo Vargas até baniu o ensino de idiomas que não fossem o português.

[10] Fernando Rosa Ribeiro (1998) apontou que um padrão semelhante enfatizando a separação e identidade étnica prevaleceu na maioria dos países que foram parte do império holandês ou que foram uma colônia holandesa por um longo período, tal como a Indonésia, África do Sul e Suriname. Por exemplo, por volta de 1900 até 1930, alguns grupos étnicos importantes no Suriname, tais como os Hindustanis e os Javaneses, tiveram julgamentos especiais, nos quais pequenas e grandes ofensas foram julgadas sob seus próprios direitos étnicos. Para os crioulos urbanos, por outro lado, foi imposta uma política de assimilação aos costumes holandeses (Van Lier 1971). Na realidade, da metade do século XVIII em diante, o Suriname foi o protótipo de uma sociedade pluralista, onde os crioulos urbanos (stadscreolen) coexistiam com vários outros grupos étnicos.

[11] Embora menos do que no caso do Brasil, o sistema holandês de classificação racial é ambíguo e permite um grau de manipulação da identidade étnica. Há também uma defasagem entre as estatísticas oficiais e o uso diário. Um crioulo poderia ser um allochtoon nas estatísticas oficiais e um zwart, Surinamer, donker, Creool ou até o pejorativo neger na vida cotidiana.

[12] Um passo nesta direção é o livro editado por Livio Sansone e Jocélio Teles dos Santos (1998), que contém vários artigos sobre os aspectos da indústria da cultura negra na Bahia.