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Grupo de Trabalho 2
Concepções Masculinas da paternidade: uma análise dos ideais e das possibilidades proporcionadas pela articulação de gênero, classe e raça

Rosely Gomes Costa [1]

Este texto refere-se à pesquisa que venho desenvolvendo para a elaboração de minha tese de doutorado, onde busco investigar as concepções masculinas da paternidade e o que estas podem revelar sobre a masculinidade e, de uma maneira mais ampla, sobre as formas como são constituídas as relações de gênero. O pressuposto é que, mediando as noções sobre a paternidade estão as concepções sobre gênero e que, portanto, compreender as concepções sobre paternidade é uma via para o entendimento das noções sobre masculinidade.

Selecionei para apresentar neste simpósio as reflexões a respeito das representações sobre as funções paternas, onde discursos relativos às atribuições de gênero articulam-se com discursos que referem-se à condição de classe dos entrevistados.

A pesquisa foi realizada no Ambulatório de Reprodução Humana do Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher da Universidade Estadual de Campinas (CAISM-UNICAMP), com homens que estavam procurando o ambulatório em busca de tratamento para esterilidade ou em busca de orientação sobre planejamento familiar. A idéia é procurar compreender as concepções masculinas sobre paternidade, esterilidade e aborto provocado, independentemente do fato dos homens pesquisados terem passado por essas experiências, uma vez que considero que essas representações são elaboradas ao longo da própria experiência da masculinidade.

Para realizar a pesquisa utilizei dois instrumentos. O primeiro foi um questionário onde coletei os dados sócio-demográficos; e o segundo consistiu em entrevistas abertas e em profundidade. Estas foram feitas seguindo-se um roteiro de perguntas, utilizando-se também a técnica de “estória de vida”.

Foram entrevistados 21 homens. As entrevistas foram realizadas em uma sala privada no próprio ambulatório, foram gravadas e depois transcritas. Os homens participaram voluntariamente da pesquisa e suas identidades foram mantidas em sigilo.

Dos 21 homens que responderam ao questionário, 12 foram ao ambulatório à procura de tratamento para esterilidade e 9 foram à procura de planejamento familiar. Cinco tinham entre 20 e 25 anos de idade; 12 tinham de 26 a 35 anos; e quatro tinham entre 36 e 50 anos. O mais novo tinha 20 anos e o mais velho 50. Doze afirmaram serem brancos, quatro pretos ou negros, um disse ser pardo, um mulato, e três disseram ser morenos. Em relação à religião, 16 disseram ser católicos, quatro protestantes, e um disse não ter nenhuma religião. Metade dos entrevistados (10) tinha o primário completo, cinco tinham completado o colegial, quatro haviam completado o ginasial, um tinha nível universitário incompleto e outro nível universitário completo. Dezenove homens trabalhavam no momento da entrevista e dois estavam desempregados. Em relação ao salário, sete recebiam entre 4 e 6 salários mínimos[2]; quatro recebiam entre 9 e 14 salários mínimos; três entre 3 e 4 s. m.; dois entre 2 e 3 s.m.; um recebia 1 s.m.; um recebia entre 6 e 8 s.m.; e um se destacava por receber mais de 20 s.m.(R$ 4.000,00).

Dezesseis homens eram casados, quatro viviam juntos com a companheira mas não eram casados legalmente, e um era solteiro. Entre os 20 que tinham esposa/companheira, 19 delas haviam freqüentado a escola. Nove possuíam o primário completo, quatro haviam completado o colegial, duas tinham o primário incompleto, duas a universidade incompleta, uma tinha o ginásio completo, e uma havia completado a universidade. Das 20 mulheres, sete trabalhavam fora de casa, sendo que uma recebia um salário mínimo, duas recebiam entre 2 e 3 salários mínimos, duas recebiam entre 3 e 4 s.m., e duas entre 4 e 6 s.m.

A renda familiar total desses homens era a seguinte: de quatro homens variava entre 4 e 6 salários mínimos; de quatro variava entre 8 e 9 s.m.; de três entre 6 e 8 s.m.; de três entre 10 e 14 s.m.; de dois era de mais de 20 s.m.; de um era de 1 a 2 s.m.; de um era de 2 a 3 s.m.; de um era de 3 a 4 s.m.; de um era de 14 a19 s.m.; e um disse não saber a renda total. Quatorze homens tinham filhos, sendo que entre os sete que não tinham está incluído um homem que teve um filho que morreu com dois dias de vida. Entre os 14 com filhos, nove homens tinham 1 filho; dois tinham 2 filhos; dois tinham 3 filhos; e um tinha 5 filhos.

É preciso salientar desde logo que surgiu espontaneamente por parte dos entrevistados a articulação entre questões de gênero e classe, o que não ocorreu em relação à questão de raça, que não foi citada nenhuma vez. No questionário eu indagava sobre cor ou raça, assim como sobre salário, renda familiar e escolaridade. Nas entrevistas não fazia perguntas diretas sobre esses temas, e somente surgiram questões relacionadas à classe, embora tenha entrevistado homens que se declararam brancos, pretos, negros, pardos, mulatos e morenos. Parece-me que esse fato pode ser mais um indício de como a questão raça no Brasil parece ser “invisível”, e se encontra sobrepujada pela questão de classe social.

A idéia dos entrevistados sobre o que significa ser um bom pai está articulada, principalmente, em torno da educação, atenção, e sustento material que este deve dar aos filhos. Um bom pai deve estar presente nos momentos bons e nos maus; deve orientar, ensinar o que é certo e o que é errado; deve dar uma boa educação. Deve expressar amor e carinho pelos filhos, assim como ser o provedor, aquele que sustenta material e economicamente o filho. Por seu lado, a boa mãe é representada como aquela que se ocupa do cuidado dos filhos tais como limpá-los, dar-lhes comida, colocar para dormir, etc. Se em um primeiro momento as representações dos entrevistados apontam para funções que usualmente são esperadas de pai e mãe, ao longo das entrevistas percebemos que os homens também cuidam dos filhos, e as mulheres também os educam e sustentam. Entre os homens sem filhos essa “mistura” de funções também esteve presente quando falavam de suas expectativas em relação aos filhos que desejavam ter.

Ao tematizar sobre a paternidade, os homens com mais baixa renda e nível de escolaridade enfatizaram que queriam dar para os filhos tudo o que não puderam ter, o que incluía bens materiais e educação formal. Entretanto, manifestaram uma consciência de não ter condições financeiras para dar tudo o que os filhos queriam:

“Porque eu sempre trabalhei, eu com oito anos de idade eu já trabalhava, ajudando meu pai, porque não tinha condições. Eu com 12 anos de idade eu não sabia escrever meu nome, vim fazer a primeira série com 12 anos, porque lá onde eu morava não tinha, né? Tinha assim uma escolinha igual você vê  essas caatingas aí do norte. Então eu quero tudo nos conformes pra minha filha, e o outro que nascer principalmente. Fazer o pré agora com seis anos, com sete já está na escola.”(E6)

Para este entrevistado, a migração para a cidade grande acarretou uma melhoria na sua condição de vida que permite que ele planeje que seus filhos estudem, o que  não foi possível no seu caso.

Por outro lado, a preocupação com os estudos e com o conforto material não foi tão enfatizada por parte de um entrevistado que se diferia dos demais por ter uma renda familiar muito mais alta e curso superior completo. Esse entrevistado enfatizou a importância de se dar amor aos filhos, pois “sem amor a parte material nada vale”. O que leva a pensar que, por não se constituir um problema para esse entrevistado a questão do sustento material dos filhos, esta não foi sublinhada. Já para os entrevistados que temem não conseguir sustentar os filhos, essa questão é um tema premente.

Entretanto, para todos os entrevistados, o trabalho do homem apareceu como ponto de referência ao se falar em paternidade, seja através da afirmação da necessidade do trabalho para sustentar os filhos, ou na visão do trabalho remunerado da mulher como secundário. Nesse sentido, muito se falou sobre o medo do desemprego, a importância de ter saúde para poder trabalhar, e à “ajuda” que pode representar o trabalho da mulher fora de casa.

Entre os entrevistados existia a idéia de que prejudica na criação da criança a mulher trabalhar fora de casa. A justificativa dada era a de que a criança precisa do cuidado e da presença maternos, que deixá-la em creche ou com avós ou parentes não é o ideal. Se há a possibilidade da família se manter sem a remuneração trazida pelo trabalho da mulher, acredita-se que ela não deve trabalhar fora de casa, pelo menos enquanto os filhos são pequenos. Alguns homens disseram que seria bom se o pai pudesse ficar mais tempo também junto com a criança, mas uma vez que ele tem que trabalhar para sustentar a família, é a mãe que deve ficar cuidando dos filhos:

“Prejudica porque a criança fica sendo cuidada por outra pessoa e eu acho que o direito e o dever de estar com a criança tem que ser da mãe. A mãe que tem que estar do lado dela. O pai não pode ficar grudado todo dia, toda hora, todo segundo, porque se ele deixar o serviço pra tomar conta dele, quem vai dar de comer em casa? E a mãe, a mãe não, a mãe casou pra cuidar da casa e cuidar das crianças e não pra ficar trabalhando.”(E17)

A noção de que o homem deve trabalhar fora de casa para prover a família parece ser algo tão óbvio para os entrevistados, que alguns não compreenderam minha pergunta quando lhes indagava se prejudicava na criação da criança o pai trabalhar fora de casa. O “fora de casa” foi entendido como “longe de casa”:

“Você fala trabalhar fora, longe da cidade? (...) O homem acho que não (prejudica), o serviço do homem sempre mais é fora. Difícil a pessoa que tenha o serviço dentro da própria casa.”(E9)

Entretanto, um dos entrevistados acreditava que a mulher deveria trabalhar fora de casa porque era bom para sua independência, para sua auto-estima, e isso levaria a uma melhor educação da criança:

            “O trabalho fora de casa valoriza mais a mulher, ela vai ter dentro dela que pode fazer as coisas, senão fica totalmente dependente dos outros e isso ela vai passar para a criança. Vai ser bom porque ela vai passar para a criança aprender a desenvolver as próprias aptidões, o que ela é capaz de fazer ou não.” (E2)

            Esse entrevistado acrescentou que achava que trabalhar fora de casa era bom para a mulher independentemente dela ter filhos ou não, porque ela se torna mais independente, e que se referiu à criação dos filhos porque era sobre isso que eu estava perguntando. Essa ressalva impede uma interpretação que considere que o entrevistado estava pensando na mulher apenas através dos filhos, e não no seu próprio bem-estar. Essa é uma opinião que relativiza as concepções referidas acima sobre ser função materna o cuidado com os filhos, onde o trabalho remunerado da mulher é colocado em segundo plano, em caso de necessidade financeira ou depois que os filhos já cresceram.

As mulheres foram consideradas como tendo mais trabalho com os filhos, mais contato e preocupação com eles, e mais trabalho dentro de casa do que os homens; mesmo pelos entrevistados que disseram que ajudam em casa e com o cuidado dos filhos. Como o próprio termo diz, a participação do homem é considerada uma “ajuda”, uma contribuição, não uma obrigação, um dever.

Nesse sentido, em muitas ocasiões surgiu um pensamento circular, uma vez que se considerava que a mulher tem mais tempo para ficar com os filhos porque não trabalha fora de casa (ou trabalha menos tempo que o homem), por isso tem mais contato com os filhos, mais ligação com eles. Por sua vez, argumenta-se que a mulher não trabalha fora ou trabalha menos tempo que o homem porque como mãe está mais ligada aos filhos, deve ficar mais perto deles e preocupar-se com os cuidados infantis:

“(...) a mãe tem mais tempo pra ficar com a criança, não deixar a criança sair sozinha, estar sempre ao lado dela. (Prejudica a mãe trabalhar fora de casa) eu acho mais nos primeiros anos acho que sim. Depois que a criança já tem mais uns cinco anos pra frente eu acho que aí não.”(E9)

“A mãe está sempre em contato com o filho desde quando nasce. Sei lá, a mãe é mais ... o instinto feminino é diferente, sabe a hora que o filho está com dor de barriga, a hora que está com febre, a criança já levanta, já vê na cara da criança, já sabe que deu um problema. O instinto feminino é mais assim. Eu acho mais importante no aspecto da saúde da criança. Pai é mais... meio desligado, às vezes não percebe as coisas.”(E10)

Ao falar sobre suas vidas, foram referências constantes pela maioria dos entrevistados a falta de condições financeiras, de educação escolar, e o fato de trabalhar muito:

 “Eu levanto cedo, tipo 5:30 horas, aí eu venho trabalhar, chego em casa na fase de 6:00 horas e fico esperando o dia seguinte pra ir trabalhar novamente. Sábado eu trabalho também e domingo eu fico em casa. De vez em quando levo a família pra passear um pouco, quando eu posso”(E6)

            “Bom, eu nasci em Minas, (...) de família muito pobre, portanto quase não estudei, porque quando eu ia estudar tive que ajudar minha mãe. Porque eu sou filho de pais separados, então foi tumultuando tudo. E de uma classe bastante sofrida, bem castigada. (...) Que a gente está casado já faz uns nove anos,(...) mas somos tudo de família pobre, entendeu? Nível baixo de estudo.”(E7)

O relato de vida da maioria dos entrevistados pode ser assim sintetizado: a falta de boas condições financeiras da família de origem os levou à necessidade de entrar precocemente no mercado de trabalho e abandonar os estudos. Como conseqüência, atualmente não possuem uma formação escolar que lhes dê acesso a trabalhos melhor remunerados e, portanto, precisam “trabalhar muito”, “trabalhar pesado”, sem muito tempo ou dinheiro para o lazer.

Uma vez que o trabalho do homem é visto como fundamental para o sustento dos filhos, as justificativas em relação a quem deve cuidar das crianças foram dadas em função desse trabalho. Assim, muitos homens disseram que ajudam a cuidar dos filhos quando tem tempo, quando não estão trabalhando, quando a mulher está trabalhando ou quando ela está com muito serviço dentro de casa. Como consideram que cuidar das crianças é atribuição materna, o pai só assume essa tarefa quando tem tempo ou na impossibilidade da mãe.

Os entrevistados também se referem ao pai como educador dos filhos, como o responsável por ensinar-lhes a distinguir o bem do mal, o certo do errado; levando-os a escolher sempre o lado certo. O pai teria uma função moral além da econômica.

Uma vez que a concepção de pai está associada a de provedor e educador, não possuir boas condições econômicas e escolaridade dificulta o desempenho dessas funções. Segundo um entrevistado:

 “Eu olho pro futuro e não vejo nada, nada, nada. Só peço muito ao paizão lá de cima que me dê saúde, mas não tenho esperança de muita coisa não. A minha esposa é louca pra ter um filho, mas não sei se é porque eu pastei demais quando pivete... Porque o filho, não é só fazer. Eu chego na minha terra lá eu fico bobo de ver os meus colegas: três, quatro. Eu falo pô, fazer todo mundo faz, eu quero ver educar, dar uma boa alimentação, um bom estudo, é meio complicado. Mas eu sempre falo pra ela, se tiver de vir normalmente, mas fazer tratamento não. E depois também tem outra, eu não tenho assim, quer dizer, ter a gente não tem, uma boa estrutura. Porque pra ter família, você tem que pelo menos não pagar aluguel. Eu já pago, entendeu? E já complica. Tem que ter um cantinho seu, trabalhar um pouco mais, menos preocupado, porque filho hoje em dia não é fácil. Você luta, você fala o caminho é esse, e o bicho vai pra cá. Então é muito complicado.”(E7)

Assim, uma das preocupações do entrevistado é ter saúde, numa alusão à capacidade de seguir trabalhando. E considera que para ter uma família é necessário ter boas condições financeiras, tanto para sustentar as crianças, como para poder lhes dar uma boa formação moral. Ao acionar em sua fala a importância da situação econômica para ter filhos, diminui a importância da capacidade de “fazer” filhos, enfatizando uma concepção de paternidade que se refere mais à capacidade de trabalho (que garante o sustento material e a educação), que à capacidade física da fertilidade.

 Portanto, ser um bom pai, para os entrevistados, está relacionado à capacidade de sustentar os filhos e de dar-lhes uma boa educação; sendo que o sustento depende do trabalho do homem, assim como do trabalho depende o tempo disponível que o pai terá para dar atenção aos filhos. Isso transforma o trabalho em referência importante não só para as concepções de paternidade mas também para as de masculinidade, assim como a falta de condições financeiras para sustentar bem a família.

Entretanto, se a concepção sobre paternidade delineada até o momento parece estar bem assentada nas funções usualmente esperadas de pai e mãe, a fala dos entrevistados mostrou que no dia-a-dia esse arranjo não é rígido. Muitos homens referiram que cuidam dos filhos: dão banho, levam para passear, trocam fraldas, dão mamadeira; também fazem comida, limpam a casa. Um dos entrevistados disse que cuida dos filhos que a esposa teve com o primeiro marido e que vivem com eles: dá banho, corta a unha, troca a roupa, leva para cortar o cabelo. Dois homens, de uma maneira feliz e orgulhosa, disseram que as crianças eram mais apegadas a eles que à mãe. Um disse ser  “mais mãe que a própria mãe”, para referir que cuidava mais e estava mais próximo dos filhos que a mãe deles.

Considero que essas referências iluminam dois pontos: primeiro, uma adaptação dos entrevistados às exigências da vida cotidiana, como ter que cuidar dos filhos na ausência da mãe, quando a mãe está muito ocupada, etc.; segundo, a existência de padrões de comportamento não tão rígidos no que concerne a trabalhos considerados masculinos e femininos. Se algumas vezes esses padrões não são rígidos devido às exigências cotidianas, outras vezes parecem não ser rígidos per se, se considerarmos, por exemplo, que trocar fraldas foi muitas vezes citado como divisão de tarefas dentro do lar, e não como estar realizando uma função feminina quando a mulher não tinha condições de fazê-lo.

            Assim, um dos entrevistados disse que trabalhava duro o dia inteiro fora de casa, que o trabalho do homem é mais duro que o da mulher, porém falou também que quando chega em casa faz o trabalho doméstico e cuida dos filhos:

            “Sempre quando eu chego eu procuro ajudar, que nem foi ontem a hora que ela chegou, já estava a comida pronta já, já tinha dado banho nos moleques, já estavam assistindo televisão, já tinham jantado, já estava tudo em ordem. A hora que ela chegou o serviço já estava pronto. Eu sempre espero ela pra tomar banho, a gente toma banho junto. Aí esperei, tomamos banho, fomos jantar.” (E 1).

            Para esse entrevistado, ter “trabalhado duro” o dia todo não o impediu de chegar em casa e cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos, para que a esposa encontrasse “tudo em ordem” quando chegasse do trabalho.

Outro entrevistado disse que:

“Sempre quando eu posso eu faço. Eu tenho dó dela porque trabalha fora, serviço pesado, né? Então sempre quando eu chego, se tem alguma coisa pra fazer... Eu só não faço comida porque se eu faço nem eu como, mas se não fosse isso eu faria também. Roupa, eu passo roupa, não fica lá aquela grande coisa, mas dá pra quebrar um galho. Até roupa eu lavava, mas eu parei de lavar porque estava ficando mal lavada e ela é muito exigente com esse lado de limpeza, ela é muito exigente. Então o que eu posso fazer, que depende de mim eu faço.”(E7)

Da mesma maneira que o entrevistado acima, outros homens que referiram cuidar dos filhos e dividir o serviço doméstico ressaltaram que alguns serviços não faziam. A justificativa podia ser que não sabiam fazê-lo, que a mulher fazia melhor, a mulher era muito exigente e eles não sabiam fazer direito. Cada homem se referiu a um tipo de serviço, podia ser cozinhar, limpar a casa, lavar ou passar roupa:

“Porque de vez em quando eu também ajudo em casa, faço comida, só não limpo o chão, mas fazer um arroz assim, uma salada eu sei fazer. Se a gente não souber fazer isso também ... Lavar roupa não.”(E 1)

Se esses entrevistados consideravam que os homens podem e devem dividir os serviços de casa com as mulheres, me parece que estabelecer qual serviço não realizam é uma forma de colocar limites à uma indiferenciação nas atribuições de funções e, por extensão, um limite à indiferenciação das atribuições genéricas.

Strathern[3] ressalta que os antropólogos levantam a questão do conservadorismo cultural porque eles estão interessados tanto nos limites que as pessoas colocam em suas vidas, quanto em como elas se capacitam para vivê-los. Nesse caso, parece que os entrevistados consideram que determinados serviços domésticos podem ser realizados tanto por homens como por mulheres; enquanto que para outros serviços a atribuição segue sendo feminina. Isto é, há um alargamento das funções que são consideradas como podendo ser desempenhadas pelos homens dentro de casa. Entretanto, esse alargamento não desemboca em uma ausência de delimitação do que é considerado propriamente feminino e masculino.

Dentro da gama de diferentes homens que entrevistei, havia os que enfatizavam a estreita relação que tinham com os filhos, o quanto gostavam de crianças, o cuidado que tinham com os filhos em relação ao lazer, educação, banho, comida, atenção.

Um entrevistado que estava procurando tratamento para esterilidade, ao responder se iria cuidar do filho, caso viesse a tê-lo, preferiu se referir ao que não faria, pois considerava que seria uma exceção frente a tudo que estava disposto a fazer pelo filho:

“O que eu não vou fazer, eu falo que não vou fazer mas você sempre acaba fazendo, é trocar o nenê. Nesse aspecto eu sou meio nojento, mas o pessoal fala que você acaba aprendendo. Mas fazer eu faço tudo, eu cuido. Não tem problema acordar de madrugada pra cuidar do meu filho, dar banho, eu faço tudo. Eu quero curtir meu filho, não adianta ser pai só nas horas boas, eu quero curtir meu filho. Acho legal, você tem que curtir todos os momentos, bons e ruins, não adianta só ser pai na hora boa, na hora ruim deixar pra mãe, nada disso. Os dois têm que repartir um pouco o peso.”(E13)

A fala deste entrevistado também mostra que ele conversa a respeito de filhos com  outras pessoas. Isso pode apontar seu interesse pelo filho que deseja ter, assim como a pressão social que pode sentir no sentido de conseguir ter filhos.

Outro entrevistado disse que cria o filho que a mulher teve com outro homem, e que o considera como seu filho. Disse que o menino tem respeito e carinho por ele e não deseja conhecer o pai “verdadeiro”, pois ele mesmo já se ofereceu para apresentá-los.

Um entrevistado, que migrou de uma roça em Rondônia, disse que desde adolescente gostava de cuidar dos sobrinhos pequenos enquanto a irmã ia trabalhar. Isso fez com que soubesse cuidar dos filhos melhor do que a esposa, precisando ensiná-la quando tiveram o primeiro filho:

“Nas minhas sobrinhas dava banho, dava mamadeira. Às vezes a gente chegava no sítio, quando elas eram pequenininhas, parece que era Nestogeno que ela (a irmã) comprava e leite em pó. Eu acordava de madrugada pra poder fazer as mamadeiras, ela me ensinou a fazer, eu que fazia as mamadeiras pra ela. Porque ela trabalhava à noite e chegava cansada. Onde eu estava levava comigo as meninas, às vezes eu ia pra roça com meu pai assim e levava elas. Eu cuidava mesmo, não deixava descuidar de nada. Ela ficava despreocupada, se estavam comigo ela ficava despreocupada.” “A minha mulher não conseguia trocar a faixa dela (da filha) quando estava com umbigo, quando não tinha caído. Eu trocava faixa, dava banho, fazia mamadeira, chorava de noite eu ia ver o que era. Eu lavava, fazia curativo no umbigo. (...) Eu tenho mais intimidade com essas coisas, ela se perdia muito, às vezes ela deixava a criança cair da mão dela, eu pegava virava na mão, lavava, fazia curativo, amarrava a faixa, toda vida não teve problema nenhum.”(E4) 

Em nenhum momento esse entrevistado se referiu às diferenças de atribuições de gênero quando falava de suas habilidades com os filhos. Sua referência constante era o fato de gostar muito de crianças e de ter facilidade para aprender as coisas. Referia-se  constantemente ao cuidado, ao afeto e à grande ligação que tinha com os filhos (um casal). Considerava que ser um bom pai é:

“(...) é participar da vida da criança, dar amor, dar carinho, ouvir as reivindicações deles, atender, perguntar. Às vezes ele está mostrando um desenho, nem que seja um rabisco, você olha assim e não dá a mínima, a criança só vai ficar sentida porque aquilo é o máximo dele. Então eu acho que a gente tem que sentar, elogiar, falar, tratar legal, que ele se sente super, né? Isso tá legal, tá parecendo um monstro das estrelas, é ficou legal seu desenho, faz outro aí que eu quero ver. Às vezes a gente não está com aquela paciência, mas tem que dar atenção, eu acho que isso é importante.”(E4)

Entretanto, ao responder sobre sua preferência em relação ao sexo dos filhos, referiu que queria ter um casal porque a menina fica mais com a mãe, se apega mais, e o menino mais com o pai. O que parece indicar as diferentes conexões que o entrevistado faz, uma relativa a um contexto mais pessoal, cotidiano, onde considera que sobrinhos e sobrinhas, filho e filha são mais apegados a ele que às mães. Outra relativa a um contexto que parece considerar mais normativo, onde considera que as meninas se apegam mais às mães e os meninos aos pais.

Outro entrevistado também referiu ter ensinado a esposa a trocar a fralda da primeira filha, uma vez que ela não sabia e ele havia aprendido com sua mãe, pois ajudava a cuidar dos irmãos menores e dos sobrinhos. Disse que tinha curiosidade em aprender como cuidar das crianças, como dar banho, trocar fralda, dar mamadeira. Também era um migrante da roça, de Alagoas, com muitos irmãos menores.

Outro entrevistado, também migrante e com três filhos disse que:

 “De manhã eu sou o primeiro que acordo, eu preparo o café da manhã. Eu levanto já vou ajudar eles, preparo eles pra ir pra escola, tomo café da manhã e vou pro serviço. (...) À noite eu converso com meus garotos, ajudo com a lição. (...) Nos finais de semana se a gente tem condições a gente vai no bosque ou alguma área de lazer. Senão a gente procura lazer dentro de casa mesmo, assistir um programa, qualquer coisa que interesse a eles, é mais dedicado aos filhos os finais de semana.” “Eu escolhi os padrinhos, escolhi os nomes, fralda, eu cuidava, dava de mama, colocava pra arrotar, tanto que meu caçula ainda toma mamadeira, então o leite eu sempre preparo o leite dele.” (E20)

Mais duas falas são ilustrativas:

“(Quando eram pequenos) trocava fralda, lavava fralda, dava mamadeira, corria com ele pra baixo e pra cima, as mesmas coisas que a minha mulher fazia eu fazia também. E é assim até hoje.”(E21)

 “(...) eu cuido mesmo, sou até mais mãe do que ela, porque eu cuido mesmo, porque eu gosto muito dela, eu gosto muito mesmo. O que quer que eu faça hoje é por atenção a ela.”(E19)

A ênfase do entrevistado em dizer que “é mais mãe que a própria mãe” é uma forma de expressar que os cuidados infantis são considerados funções maternas. Porém, embora a referência aponte para a idéia de que é a mãe que cuida com competência da criança, ela diz também que um pai pode ter essa competência, que um homem pode tornar-se “mais mãe que a própria mãe”. Essa referência mostra como atribuições femininas podem ser encontradas nos homens, e aponta para um deslocamento e um descolamento das junções homem-masculino e mulher-feminino, permitindo evidenciar como o gênero engloba homens e mulheres, mas vai além dos sujeitos concretos. Isto é, quando referimo-nos a gênero, as categorias homem ou mulher são consideradas partes das categorias masculino e feminino[4], mas não junções estáticas e necessárias.

 As falas dos entrevistados mostraram, em um primeiro momento, uma concepção de paternidade associada à capacidade de prover e educar os filhos. Assim, a condição de classe apareceu recortando as atribuições de gênero, uma vez que não possuir boa situação financeira ou grau de escolaridade mais elevado foi considerado como obstáculo ao bom desempenho das funções paternas. A referência freqüente dos entrevistados a sua pouco favorecida condição econômica, ao seu baixo nível educacional, à migração em busca de trabalho ou de melhores salários, à consciência da incapacidade de dar uma vida melhor aos filhos, perpassam as concepções de paternidade assim como as de masculinidade. A capacidade de prover os filhos também associou-se a uma representação sobre a masculinidade, e a falta de condições para cumprir essa tarefa, devido à condição de classe,  leva a distintas vivências da masculinidade.

Tais vivências estão expressas na fala dos entrevistados que dizem que ajudam com o cuidado da casa e dos filhos somente quando a mulher está trabalhando fora de casa, ou se ela está muito ocupada. Assim, são as exigências da vida cotidiana que levam à ajuda doméstica. Uma exigência marcada pela condição de classe dos entrevistados, que faz com que a mulher “tenha” que trabalhar fora de casa para ajudar no orçamento doméstico, não podendo assim cuidar somente da casa e dos filhos. E a falta de condições financeiras não permite contratar babá ou empregada, levando o entrevistado a ter que ajudar a mulher dentro de casa.

Muitas vezes as referências às más condições econômicas e baixa escolaridade pareceram indicar uma ameaça constante ao exercício da paternidade e da masculinidade, simbolizadas pelo sustento dos filhos. O que remete ao conceito de masculinidade marginalizada, proposto por Connell[5], que a categoriza como um tipo de masculinidade que se refere a relações entre as masculinidades e classes ou grupos étnicos dominantes e subordinados; é uma masculinidade que está marginalizada devido à condição subordinada de classe ou raça.

 Porém, acredito que a necessidade dos entrevistados de realizar tarefas consideradas femininas para dar conta do dia-a-dia, resulta em um processo onde algumas tarefas passam a não ser consideradas como totalmente femininas. Assim, os ideais de paternidade e de masculinidade desses homens são também manejados simbolicamente conforme suas situações cotidianas, suas possibilidades e seus limites.

 Em relação aos entrevistados que disseram que gostam de cuidar dos filhos, que são apegados a eles, que são “mais mãe que a própria mãe”, poderia se considerar que alguns citaram que aprenderam a cuidar de crianças justamente porque tinham que ajudar a mãe com os irmãos menores, ou a irmã que precisava trabalhar; o que também poderia ser lido como uma situação propiciada pelo recorte de classe. Porém, acredito que também deve ser considerada a questão de que as atribuições de funções que alocam na maternidade o cuidado dos filhos e na paternidade seu sustento podem não contemplar plenamente os desejos e expectativas dos entrevistados, nem suas concepções de feminino e masculino. Como escreveu Almeida[6]: “A experiência dos homens (e das mulheres) é justamente um diálogo por vezes difícil entre a complexidade polimorfa dos seus sentimentos e o simplismo dos padrões orientadores. Não me refiro aqui a teorias psicológicas ou psicanalíticas sobre as pulsões, mas tão somente ao fato de um qualquer ser humano, apesar de localizado em uma determinada identidade pessoal e social, saber que as outras identidades e comportamentos são potencialmente seus também, mesmo que socialmente isso seja indesejável.”

As idéias sobre a “crise da masculinidade” e as propostas do “novo pai”, trazidas por alguns autores[7], também dizem respeito ao fato das atribuições usuais de gênero não contemplarem plenamente os desejos dos homens. Mais especificamente, essas idéias enfatizam os prejuízos que sofrem os homens ao se conformarem a essas atribuições: não poder demonstrar fraqueza, não poder demonstrar os sentimentos, não poder ter uma relação próxima e prazerosa com os filhos.

Porém, mais que uma discussão sobre a “crise da masculinidade” ou sobre o “novo pai”, considero que as referências dos entrevistados ao cuidado pessoal dos filhos e à divisão do trabalho doméstico indicam como esses homens (assim como suas mulheres), no seu dia-a-dia, transitam entre diferentes atribuições de gênero. E como o gênero é negociado e constituído situacionalmente. 

 

 

[1] Doutoranda em Ciências Sociais, área de concentração: Família e Gênero, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Professora Adjunto I, Universidade Paulista – UNIP. Principais publicações: De clonagens e de paternidades: as encruzilhadas do gênero. In: Cadernos PAGU (11). Publicação do PAGU – Núcleo de Estudos de Gênero/UNICAMP, Campinas, SP. Aborto - uma pesquisa sobre a vivência das mulheres. Presença da Mulher, f ev./mar./abr. pp. 16-18, 1992. Coautora de Risk factors for tubal sterilization regret, detectable before surgery. Contraception (54): 159 - 162, 1996.

[2] Estou me baseando no salário mínimo dos meses de agosto e setembro de 1998, correspondente a R$120,00.

[3] STRATHERN, M. – 1993. A Question of Context. In: EDWARDS, J.; FRANKLIN, S.; HIRSCH, E.; PRICE, F.; STRATHERN, M. – Technologies of  Procriation – Kinship in the age of assisted conception. Manchester, Manchester University Press.

[4] KOFES, S. – 1993. Categorias analítica e empírica: Gênero e mulher: Disjunções, conjunções e mediações. Cadernos Pagu (1).

[5] CONNELL, R.W. – 1995. Masculinities. Berkeley, University of California Press.

[6] ALMEIDA, M.V. de – 1996. Gênero, masculinidade e poder: revendo um caso do sul de Portugal. Anuário Antropológico/95. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. p.164.

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