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Grupo de Trabalho 1
A terra como limite:  Localidade e autonomia pessoal numa comunidade indígena do sul da Bahia.

Susana de Matos Viegas [1]

«Cabocla de Olivença
era filha daqueles índios,
gostando de paisagem de mato.
Olivença, porém, ficava tão perto 
que era um pulo até acolá».
Adonias Filho 1997 (1981).: 14.

 

A questão do acesso à terra tem ganho crescente visibilidade enquanto campo de articulação de identidades sociais na América Latina,  assumindo um papel de charneira na reivindicação de direitos à diferenciação económica, à saúde e ao trabalho (Wade, 1997:97 e 112, Machado, 1994:6). No que diz respeito ao contexto indígena, esta articulação tem sido pensada, principalmente, através do campo de estudos do “indigenismo”, no qual se destaca a relação entre o Estado nacional e as minorias étnicas (cf. Oliveira, 1998; Lima, 1995; Ramos, 1998, Viegas, 2000a). 

Quando iniciei a pesquisa de campo sobre o contexto indígena no sul da Bahia, em 1997-1998, propunha compreender a posição de “resistência” à constituição de uma “terra indígena” assumida por uma comunidade que habita as imediações de um antigo aldeamento jesuíta setecentista – Olivença [2]. Numa primeira fase, o trabalho de campo dedicou-se ao estudo dos movimentos etnopolíticos, procurando entender os processos de identificação étnica regionais, e as relações de poder que explicam a forte mobilização dos movimentos indígenas no sul da Bahia, e o seu contraste com a aparente insignificância da mobilização indígena em Olivença. No entanto, com o decorrer do trabalho de campo, foi-se tornando evidente que a questão do acesso à terra constituía uma dimensão central no modo de vida social desta população, e que essa centralidade se esvaziava quando olhávamos para a participação da população nos movimentos etnopolíticos, ou na política regional. A proposta central desta comunicação resulta da necessidade, constituída na experiência de campo, de fazer uma espécie de etnografia do significado social da terra. O poder do acesso à terra enquanto campo de articulação de identidades de raça, classe e género explicita-se, nesta etnografia, através da justaposição de ideias sobre localização e socialidade, o qual intersecta o contexto comparativo da antropologia sul ameríndia.

A comunidade indígena de Olivença habita nas imediações da Vila de Olivença (ao sul de Ilhéus), em diversas localidades que integram uma região de mata maioritariamente roçada, a que se chama genericamente de “Roça”[3]. A etnografia que será aqui desenvolvida apoia-se, principalmente, no estudo da localidade que será aqui designada Jacarandeira, e que se situa a cerca de 18 km para o interior em relação à vila [4]. A população indígena de Olivença revê-se na designação de “caboclo” ou de “índio” mas integra-se, do ponto de vista da sua identificação regional mais abrangente, no grupo de pessoas que vive na Roça. Ser habitante da “Roça” tem um significado particular na diferenciação mais genérica entre classe, raça e género. Para a população que vive na Roça, a oposição entre estar-se “na Roça” e estar-se “na vila ou na cidade” faz-se por intermédio da imagem metafórica do espaço doméstico: estar “aqui dentro” (na Roça) e ir “para a rua”. Os que são ricos - “os fazendeiros”, ou “brancos”, ou “gringos” – distinguem-se dos que são pobres pelo facto de possuírem extensões vastas de terra. A burguesia de Ilhéus, por exemplo, faz parte de um mundo que está para além dessa forma de diferenciação de classe, a não ser no caso de se tratar de uma burguesia fundiária. 

A razão pela qual a terra é desejada pela população indígena de Olivença prende-se, a um primeiro plano, com a forma de organização social nativa. A comunidade indígena de Jacarandeira organiza-se em unidades residenciais de parentesco, que designa de “lugar” e onde se agrupam entre duas e oito casas de habitação[5]. A casa e o “fogo” definem o espaço onde se partilham os alimentos e se constitui o parentesco filial. Contudo, as casas não são concebidas como unidades fixas. Pelo contrário, elas são efémeras e devem mover-se, sob pena de transferirem para os seus habitantes histórias do passado sobre enfermidades e mortes. Esta é a primeira razão pela qual o modelo ideal da terra incorpora uma filosofia sobre espacialização e socialidade. O desejo sentido pelos “caboclos” de possuírem a terra que os fazendeiros detêm concretiza-se nesta vontade de aceder a um espaço amplo, que viabilize o movimento das casas e dos “lugares”. 

A relação entre espacialização e socialidade constitui um desafio bem conhecido ao contexto comparativo da etnografia sul ameríndia. Um dos temas centrais na literatura sobre o contexto sul ameríndio resulta da reflexão sobre a forma como o povoamento em pequenas unidades residenciais e móveis - afastadas espacialmente, e sem qualquer estrutura política e territorial  centralizadora - se conjuga com processos de constituição do socius. O “mundo ameríndio” é descrito, geralmente, através da imagem da fragmentação espacial do povoamento humano, como acontece para o caso dos Piaroa: “as casas estão separadas umas das outras por uma caminhada de meio dia e o território político, na sua totalidade, não tem mais que 60 a 100 indivíduos” (Kaplan, 1975:VII). A mesma ideia é transmitida por Viveiros de Castro na monografia sobre os Araweté (Tupi-Guarani) os quais, em muitos outros aspectos, têm filosofias de vida claramente distintas dos Piaroa (cf. McCallum, 1998). Diz Viveiros de Castro: “Falar dos laços do território Araweté só faz sentido de um ponto de vista exterior. A concepção Araweté de território é aberta; até recentemente eles não tinham uma noção de domínio exclusivo sobre um espaço contínuo e homogéneo” (1992:33). Esta configuração demográfica do povoamento social, e a inexistência de formas territoriais corporativas de constituir a sociedade, foi conduzindo alguns autores a falar na natureza individualista das sociedades sul ameríndias (cf. Riviére, 1984:94). A dispersão das unidades residenciais, a ausência de território político contínuo, e de formas de coerção social centralizadas, foi dando forma a uma discussão onde a concepção do espaço e o exercício da socialidade se iam articulando. 

No contexto da abordagem do género, esta discussão sobre territorialidade, poder e socialidade reviu-se, de forma directa, na análise das sociedades virilocais, como é o caso do contexto que será aqui abordado. Argumentou-se que, nesses contextos, as mulheres são objecto de controle social, por serem vistas como exteriores à unidade residencial; exteriorização essa que tem uma correspondência física, já que as unidades residenciais se encontram, efectivamente, dispersas no território  (cf. Riviére, 1984:103-106; Jackson, 1983:181). A questão do “controlo social” só perdeu relevância no estudo sul ameríndio dos géneros no momento em que a socialidade deixou de ser pensada como resultado directo de processos de agregação colectiva (cf. Strathern, 1988:12). Overing mostra que a “filosofia da socialidade” que está subjacente às formas de organização social dos Piaroa e dos Cubeo assenta na valorização da acção pessoal ou do “direito da pessoa escolher” (Overing, 1988, 1991: 17, 18; 1993:193; McCallum, 1998:129). Dentro desta mesma orientação interpretativa, Cecília McCallum defende que um dos resultados da valorização da autonomia pessoal para a análise dos géneros entre os Kaxinauá encontra-se na forma como as escolhas matrimoniais são perspectivadas. A preferência pelo casamento com primos cruzados, por exemplo, mostra-se frouxa, enquanto directriz de acção, já que a ela se sobrepõe o princípio de que “ninguém pode forçar outra pessoa a fazer algo contra a sua vontade” (McCallum, 1991:419). Como refere McCallum “Este princípio de autonomia pessoal (que é comum em toda a região das Terras Baixas sul Ameríndias) é um elemento importante na filosofia política e social dos Kashinauá” (ibid).

A análise desenvolvida na presente comunicação irá mostrar que esta valorização da autonomia ou exercício da escolha pessoal está presente no contexto etnográfico que é aqui abordado, e que ela se justapõe a idiomas de espacialização: sobre mobilidade, transitividade e fixação das pessoas a espaços delimitados. Esta justaposição torna-se visível quando analisamos o processo de fixação da população a unidades territoriais estanques (que será descrito na primeira secção) e a agencialidade de género (que será descrita na segunda e terceira secções). Mostra-se que a feminilidade define atributos de mobilidade e transitividade no espaço e, ao mesmo tempo, valoriza o exercício das escolhas e iniciativas pessoais; por seu lado, a agencialidade masculina vê-se associada à fixação aos “lugares” e ao exercício de formas de agir marcadas pela capacidade de persuasão pessoal. Argumenta-se que estas duas perspectivas da filosofia da socialidade – a espacial e a da acção social – têm um lugar central no modo de vida social desta população indígena e são essenciais à compreensão da forma como a terra pode conjugar, etnograficamente, formas de identificação de classe, raça e género.

 

Cimento no Barro: o processo histórico de “permuta” da terra.

Apesar da Vila de Olivença ser um antigo aldeamento jesuíta - e a  disposição quadricular do centro urbano da vila lembrar esse passado – as exegeses sobre a história local assinalam a “entrada dos brancos” em Olivença na década de 1920-1930[6]. Esta data associa-se a uma directriz, imposta por um dos “brancos”, na qual se determinava que a cobertura de Oricana das casas de habitação fosse substituída por telha, e que o barro - de que era feita a estrutura dos edifícios – desse lugar ao cimento. De acordo com as mesmas exegeses sobre a história local, em decorrência desta lei os índios viram-se forçados a vender as suas casas, por não terem meio de pagar o cimento, tendo passado a morar na Roça. Até hoje, os edifícios de habitação da população indígena que vive na Roça são feitos de barro, enquanto que o cimento é o material de construção usado pelos “fazendeiros” e por aqueles que habitam na vila. 

A substituição do barro pelo cimento como marco da “entrada dos brancos” assinala uma transformação na forma como a população nativa passou a relacionar-se com a população não nativa. As famílias que chegaram a Olivença na década de 1930 eram originárias do sertão da Bahia ou migradas do Sergipe (cf. Andrade, 1996:78). Na época em que chegaram a Olivença, estas famílias já possuíam pequenas fazendas de cacau na região de Ilhéus, e foram incentivadas a fixar-se em Olivença por um homem que tinha poder político e militar na região sul de Ilhéus. Em 1922 surge na imprensa um abaixo assinado, encabeçado pelo seu nome, que apela ao “espírito progressista” e sugere que se faça de Olivença um exemplo da modernização, abrindo-se ali um centro de lazer e saúde, dada a qualidade das suas águas e do clima. Uma das passagens desse apelo diz o seguinte: 

‘AOS HOMENS DE BÔA VONTADE - A antiga vila de Olivença é proclamada, de todos os tempos e com a máxima justiça, uma localidade salubérrima, a mais salubre talvez de todo o sul do Estado. Fertilíssimos e aprasíveis são ainda os arredores, quase totalmente devolutos, da tradicional povoação; uns, os do litoral, apropriados à cultura do coqueiro, outros, os do interior, às chácaras, pomares e roças de legumes e cereais, e todos eles à criação de qualquer espécie de gado[7] 

O teor deste abaixo assinado elucida o propósito “progressista” dos políticos interessados em Olivença. Fala-se da região como se nela não habitasse senão gente sem relevância política, um “povo” cuja única agencia é a de atribuir qualidades místicas “e terapêuticas” às águas doces da região. 

A circunscrição do plano de modernização de Olivença ao espaço “urbano” da vila, arrastando a comunidade indígena para a região interior, pode ser vista como uma acção prudente face à situação de tensão que caracterizou a relação entre a população nativa e as famílias recém chegadas à vila, durante este período. Um dos efeitos da lei do cimento foi a criação de fronteiras territorialmente definidas entre “os brancos” e os caboclos. Alguns caboclos conseguiram sobreviver à pressão dos novos habitantes “progressistas”, ficando a residir na vila, mas a maioria juntou-se aos que habitavam a Roça. Apesar da concentração da população nativa na Roça não poder ser entendida como um processo de expulsão iniciado nessa época, já que a abertura de roças faz parte do projecto de aldeamento jesuíticos desde o século XVII, pode dizer-se que foi neste período que a  cisão entre os interesses daqueles que habitavam a Roça e os que habitavam a vila se  aprofundou. O caminho que vai da vila para a mata passou a delimitar territorialmente uma fronteira étnica: o espaço da Roça identifica-se como área de habitação dos caboclos, enquanto que na vila se investe no “progresso” e na modernização. 

A fronteira entre a Vila e a Roça criou uma nova base de relacionamento entre a população nativa e as famílias recém chegadas à vila e esteve na origem do processo de transformação da terra em mercadoria. Entre as formas assumidas por esse processo importa salientar a abertura de Vendas pela população recém chegada. Apesar do nome, em rigor, as Vendas nunca venderam nada: nelas, abria-se crédito e saldavam-se dívidas. Os caboclos que habitavam na Roça vinham buscar querosene e cachaça às Vendas de Olivença e traziam farinha de mandioca como meio de “pagamento”. O sistema assentava numa relação de “permuta” (barter) na qual o valor dos bens entregues na Venda era estabelecido pelo credor, não havendo qualquer tabela de preços, nem forma de avaliar o produto em função da força de trabalho despendida (Humphrey e Hugh-Jones, 1992:1). Mais especificamente, a forma de “permuta” entabulada entre os caboclos e os donos das Vendas aproximava-se do conhecido sistema de “laço de dívida”  - “debt-bondage” ou “aviamento” - que se tem demonstrado caracterizar o relacionamento entre as populações indígenas sul ameríndias e o capitalismo (Taussig, 1991; McCallum, 1990; Gow, 1991:90-115; Hugh-Jones, 1992, Wagley, 1953). Como é conhecido, um dos pilares deste sistema é o endividamento como forma de criar uma relação de dependência pessoal (Taussig, 1991:70; Santos-Granero, 1998:254-255)[8]

Foi através do sistema de endividamento pessoal que os proprietários das Vendas começaram a receber terra e piaçava nativa da população indígena. Esta sequência de produtos entregues - da farinha para a piaçava e a terra – é aquela que é usada nos relatos orais que falam das Vendas de Olivença:

Ele foi o primeiro branco a entrar em Olivença. Chegou e montou uma venda. Aí vendia cachaça aos índios. Eles chegavam e compravam assim grandes sacos com garrafas de cachaça. Depois chegavam e diziam que não tinham dinheiro para pagar. E assim ele respondia que não tinham dinheiro mas podiam pagar de outra forma, assinando letras com a impressão digital. E assim foi tomando a terra. Quando a demarcava abrangia sempre uma área maior. E dava um monte de moedas que não valia nada. Assim ele foi ficando com várias propriedades.

A extracção dos fios de piaçava das palmeiras de grande porte, espraiadas pela mata ao longo de largos quilómetros, em nada se comprometia com a actividade económica e social da população nativa. Tirar piaçava é uma tarefa que os caboclos associam ao momento em que chegaram “as pessoas de fora”, que a começaram a solicitar nas Vendas.[9] A entrega de piaçava é aqui entendida, portanto, como uma forma de trabalho externa à economia de subsistência da população. Ela inseria-se, directamente, no contexto das relações de permuta: extraía-se piaçava para conseguir cachaça. 

Diferentemente da piaçava, a permuta da terra implicava a “permuta” de um dos aspectos centrais da vida social: o local de habitação. Entregava-se um “lugar” i.e. a “unidade social primária” [10] onde se constituem as relações de parentesco filial - comendo a comida de uma mesma casa, plantando mandioca e produzindo a farinha. É comum ouvir-se dizer em Olivença que, nessa época, os caboclos “trocaram a terra por uma garrafa de cachaça” ou que a “venderam de graça” ou, ainda, que os “ricos tomaram as terras de graça”. Estas expressões ganham um sentido literal quando entendemos que a transacção da terra obedeceu, de facto, a uma forma de “permuta”, na qual o valor de cada uma das mercadorias dependia de relações assimétricas estabelecidas pela “laço de dívida”. No entanto, a compreensão do significado que as unidades de terra tinham para a população indígena permite quase dizer-se o inverso i.e. que os caboclos recebiam cachaça de graça. Para a população indígena, a terra era uma unidade de habitação efémera. Os “lugares” deveriam mudar de local num ciclo de mobilidade que se estima compreender em períodos de 2 a 10 anos. Nesta perspectiva, a entrega de uma unidade de terra roçada para permutar por cachaça era vantajosa. Entregava-se uma unidade de habitação, que iria ser abandonada, e partia-se para outro local da mata onde se abria roça e se reconstituía o “lugar”. O horizonte da mata para abrir uma nova roça não se transformava directamente, já que o espaço continuava a ser aberto e ilimitado. Transpondo esta situação para uma linguagem da economia de mercado pode dizer-se que a terra era vista como um bem necessário, mas abundante e transitório.

A vantagem dos “compradores” em adquirir as roças dos caboclos explica-se pelo facto da legislação brasileira sobre as terras - em vigor durante todos o período a que nos referimos – permitir que se pudesse alargar a área registada desde que a terra fosse cultivada. A medição dos terrenos é feita por peritos (os Delegados da Terra) que justificam a medição de áreas com dimensões que excedem aquilo que era permitido por lei incluindo, nessa medição, os terrenos roçados pelos caboclos. Segundo o testemunho de um dos Delegados da Terra da região, algumas das roças integradas nessas medições pareciam “abandonadas” e, por isso, eram incluídas sem que se contactassem os autores do roçado. Este processo passou a desencadear-se com uma velocidade que escapava ao controlo da população nativa. Os caboclos recordam que passam a reencontrar os “lugares”  que haviam sido seus incorporados nas medições de fazendeiros. Os marcos destas propriedades, medidas e transformadas em mercadoria, começaram a estender-se para além dos acordos precários e orais das permutas. O acelerar deste processo de alienação da terra foi restringindo a área liberta para o trânsito e mobilidade das casas de habitação dos caboclos. A população indígena descreve este processo como uma forma de asfixia: de uma terra abundante passa-se a ficar confinado a pequenas línguas de terra. 

Na década de 1960, os fazendeiros deixaram de representar apenas aqueles que permutavam terra com os índios, passando também a protagonizar a figura dos empregadores de mão de obra assalariada. Como refere um destes primeiros fazendeiros chegados à região, o atractivo que o levou a fixar-se em Jacarandeira foi a antevisão de que a população nativa constituía mão de obra especializada na produção de farinha de mandioca, já que: “caboclo sabe mais de fazer farinha do que o povo branco”. Entre estes dois processos (o dos “laços de dívida” e o trabalho assalariado) a população nativa foi estendendo as suas relações comerciais; alguns “lugares” de caboclos chegaram a produzir farinha de mandioca para permutar directamente em Ilhéus. Na década de 1970 o sistema de proletarização completou-se e o trabalho assalariado passou a coexistir com uma economia de subsistência precária[11].

Ao mesmo tempo que se efectivou o processo de proletarização, a sedentarização da população indígena completou-se. Os “lugares” fixaram-se nos locais da região da Roça onde se havia aberto a última clareira na mata, como se as unidades residenciais tivessem sido submetidas ao disparo instantâneo de uma fotografia. A grande divisória entre os que são ricos e os que são pobres fez-se a partir dessa fixação: os sem terra são pobres porque acima deles ficam os que têm terra na Roça – os fazendeiros. Uma das afirmações que melhor condensa esta ideia é quando se diz “ele é rico de tanta fazenda”. Para a população indígena, a diferenciação pela terra não se relaciona apenas com esta condição de pobreza. Aquilo que distingue o significado da terra para o trabalhador rural de Jacarandeira - que chegou à região nos anos 1970/1980 – do seu significado para a população indígena é o facto de o primeiro não carregar consigo o peso da memória, do tempo em que a terra era ilimitada, nem ver na terra a possibilidade de fazer, e refazer, o “lugar”. As secções que se seguem mostram que este significado da espacialização assume, actualmente, um papel constitutivo da agencialidade de género.

 

Transitividade e Fixação

 A mobilidade dos “lugares” na mata pode rever-se, actualmente, no movimento das casas, em períodos de 2 a 10 anos, deixando o espaço do “lugar” saturado de locais de memória, através de pés de fruto que servem de marcos mnemónicos das casas e das pessoas (cf. Viegas, 1999). Já se referiu que o parentesco filial está ligada ao consumo de comida de uma casa dentro de um “lugar”. As mulheres, enquanto mães, fixam a sua vida quotidiana ao “lugar”, no espaço do qual cozinham, vão buscar água à fonte para que a casa não fique “seca”, e a lenha para acender o fogo e transformar os alimentos que farão do “lugar” a “unidade social primária” (Pina-Cabral, 1991). A obtenção dos alimentos para serem cozinhados no “fogo” da casa faz-se através do trabalho dos pais, os quais vão “trabalhar de ganho”, saindo quotidianamente dos “lugares” e/ou trabalhando na roça do seu “lugar”. A produção de comida está estritamente associada às actividades femininas, dizendo-se de uma comida preparada por um homem que é “comida macho”. No passado, a formação e crescimento do corpo de uma criança estava associada à ingestão de uma bebida preparada a partir da fermentação do aipim, a que se chama “giroba”. Actualmente, é a farinha de mandioca que é vista como a base desse processo de fortificação humana. Olhando de fora para a vida quotidiana em Jacarandeira, e para a constituição dos laços de filiação no “lugar”, fica-se com a impressão que a feminilidade está associada à vida interna ao “lugar”, enquanto que a masculinidade diz respeito a uma vida fora dos “lugares”. Dentro desta mesma ideia, podemos acrescentar que, na vida quotidiana, é o homem quem vai “fazer a feira” a Ilhéus, quinzenalmente, transitando para lá do espaço da Roça. No final de tarde, quando o ónibus, causticado pelo estado esburacado da estrada de barro, vai entrando pela Roça a dentro, em cada um dos ramais que levam a locais de habitação encontram-se mulheres e crianças que esperam a chegada dos que foram à cidade. 

O modelo de agencialidade dos género transforma-se quando começamos a prestar atenção às conversas quotidianas, nas quais se salienta a fugacidade da agencialidade feminina, insistindo em comentários sobre esposas que “largaram” o marido e vão para a cidade, e jovens mulheres que transitam entre a Roça e a Rua. O contexto que nos permite aceder a esse modelo do género diz respeito, principalmente, a dois aspectos da vida social: o ciclo de vida enquanto processo constitutivo da história (Toren, 1993; 1999); e as escolhas matrimoniais, na criação e recriação de laços conjugais. Veremos como estes dois contextos mostram que o modelo hegemónico da feminilidade não se associa ao quotidiano sedentário das mães, mas à mobilidade e transitividade da condição de ser esposa.

Se é possível estabelecer-se um momento que marca a diferenciação de género no curso de vida, ele diz respeito ao período de dissociação da casa filial, na transição para a idade adulta. A maturidade sexual, a maturidade pessoal e a constituição potencial de laços conjugais estão juntos neste processo de transição. Não havendo qualquer ritual ou cerimónia que simbolize o processo de transição para a idade adulta, os rapazes começam a atingir essa condição de potenciais esposos, e constituintes de uma casa, quando entram no mercado de trabalho local enquanto assalariados rurais (o “trabalho de ganho”). Este trabalho é antecedido por anos de acompanhamento do pai em trabalhos simples na roça do “lugar”, tais como a capina e a roçagem. A ajuda no trabalho de transformação da mandioca em farinha é praticada pelas crianças, desde pequenas, mas não é considerada como uma forma de entrar no mundo do trabalho, não fazendo parte da aprendizagem diferenciadora do género feminino e masculino. Raspar mandioca está associado à sociabilidade entre os parentes de um “lugar”: eles juntam-se e raspam mandioca, enquanto se ouve rádio e se conversa, parando para ingerir uma merenda preparada pela casa que está a fazer a farinha.

O processo de dissociação feminina da casa filial distingue-se da masculina. Quando uma jovem mulher atinge os 12 anos de idade entende-se que ela deve tomar uma decisão, em conjunto com os pais, sobre a sua “saída de casa”. A um primeiro nível, “sair de casa” significa “ir para a rua” para “servir em casa de família”. Enquanto que os rapazes partem para o seu primeiro dia de “trabalho de ganho” sem que ele seja dramatizado, quando as jovens mulheres “saem de casa” cria-se um clima de tensão emocional. Pais, mães e jovens mulheres ficam consternados durante os dias que se seguem. A saída de casa é assumida como um acto definitivo de separação de destinos, uma cisão abrupta e perpétua, como uma viagem sem regresso previsto. No entanto, aquilo que sucede em sequência da saída de uma jovem para servir em “casa de família” é que, ao fim de pouco tempo, estará de volta em casa, como se torna evidente quando uma mulher tenta reproduzir, com rigor, esses períodos de tempo passados a servir “na rua”: um mês, dois meses, no máximo três meses é o período de efectiva separação continuada. As idas para trabalhar em “casas de família” são melhor descritas, do ponto de vista do afastamento físico, como viagens ininterruptas de ida e volta.

O que é definitivo na “saída de casa” é o facto da feminilidade passar a associar-se a um mundo transitivo entre a Roça e a Rua. É por essa razão que se dramatiza a primeira saída, e é também por ela que se insiste em justificar cada um dos retornos da “casas de família” para a Roça. Os motivos apontados para este retorno constante à Roça oscilam entre a senhora tratar mal, a ter “saudades da Roça” ou ter “saudades da mãe”, a não ser pago ou ter “enjoado a casa”. Em qualquer dos casos, é comum que se descreva a volta das “casas de família” para a Roça como fugas pela calada da noite, sem conhecimento dos patrões, rescisões de serviço dissimuladas numa visita temporária à Roça. A saída de casa marca o início de uma cisão feminina por relação à casa filial de origem. Essa ruptura poderá vir a efectivar-se, apenas, ao fim de um ano, três anos, cinco ou dez anos - quando a mulher encontra um conjugue na Roça ou na Rua. Contudo, no momento em que se sai pela primeira vez de casa para se servir na cidade faz-se um marco irreversível no curso de vida e é essa infalibilidade que se transmite na dramatização da primeira “saída de casa” das mulheres.

O momento de dissociação da casa filial está associado a um compósito de ideias sobre maturidade sexual e constituição de laços conjugais. Quando se comenta o facto de uma mulher se ter junto a um homem numa idade demasiado jovem, qualifica-se essa precocidade pela imaturidade sexual dizendo-se, por exemplo, que a mulher “ainda nem tinha peitos”. A relação entre a maturidade sexual e a conjugalidade explica-se pelo facto da coabitação conjugal implicar, por inerência, a procriação. Acrescenta-se, ainda, que as mulheres juntam-se a um homem, normalmente, entre os 12 e os 16 anos de idade, enquanto que os homens poderão vir a fazê-lo apenas a partir dos 20 anos de idade. Em consequência, é comum que exista grande discrepância de idades entre marido e mulher, chegando a atingir duas a três dezenas de anos de diferença.

A ideia da saída de casa envolver várias idas e voltas entre a Roça e a cidade, e a sua associação à maturidade sexual e ao namoro que antecede a coabitação conjugal, pode agora rever-se nos dois estudos de caso que se apresentam de seguida, e que serão continuados na secção seguinte.

Lousa: Saudades da Roça.

Em Fevereiro de 1998 encontrei, na vila de Olivença, uma moça residente em Jacarandeira, a quem chamo Lousa. Ela estava em casa de Néra - a minha assistente de campo na vila. Néra é uma mulher muito activa e envolvida em organismos de acção social ligados à Igreja Católica. Ela própria considera-se cabocla, filha de uma das mulheres que mais lutou para que a vila não fosse “tomada pelos brancos”.

Nesse mês de Fevereiro Néra anunciou-me que tinha decidido “criar” Lousa. E explicou que o fazia porque Lousa tinha “fugido” na madrugada passada de uma casa em Ilhéus onde tinha ido servir. Ao fim de mais de um mês os patrões ainda não lhe tinham pago e mal a alimentavam. A situação começou a ficar tão difícil que Lousa teve que “fugir”. Saiu de casa dos patrões dissimulada no silêncio da noite e veio a pé até à vila de Olivença (cerca de 15 km). Quando chegou era de madrugada e bateu na porta de Néra. Néra decidiu criá-la e levá-la a estudar na escola da vila e estava convencida que ela viria a casar com um índio, reforçando que teria que ser “um índio de cá (da vila), e não de Jacarandeira” e ainda que deveria “ter uma roça e não beber cachaça”.

Passados dois meses sobre a chegada de Lousa à vila, ela foi sofisticando a sua aparência, acrescentando batom aos lábios finos, substituindo a usual camiseta por uma blusa branca de tecido elástico e colado ao corpo. Parecia feliz. Quando ia à Roça só queria era voltar para a vila. Não se considerava insatisfeita com a escola e a vida na vila. Já tinha percorrido com Néra várias localidades da Roça, acompanhando-a nas tarefas de acção social. No entanto, acertou com Néra que, de quinze em quinze dias, iria “visitar a mãe”.

Ao fim de quatro meses passados sobre a chegada de Lousa a casa de Néra, Lousa foi mostrando a sua mudança de humor. Nas infindáveis horas em que se cata o feijão para o almoço, confessava o quanto me invejava por morar na Roça, enquanto ela tinha que ficar na vila. E queixava-se de querer visitar a mãe e Néra não a deixar (o que significa que não lhe dava o dinheiro para a passagem de ónibus). Agora sentia “saudades da Roça”. O seu desejo era mesmo “voltar para a Roça”.

Nessa semana, Lousa foi ver a mãe e não voltou para casa de Néra. Comentava-se em Jacarandeira que ela “não se tinha dado bem na vila”. Néra ficou revoltada e disse que o que Lousa queria era “ficar a beber cachaça no meio do mato e a deixar a barriga crescer”. Lousa ficou contente por estar de volta à Roça. O tempo das festas Joaninas aproximava-se e a mãe mora perto de onde se fazem os bailes. Em breve, arranjaria namoro e, depois, decidiria o que fazer. No mês seguinte, Lousa foi novamente servir em Ilhéus.

Risa: “Enjoei, vim embora”.

Risa, que no presente etnográfico tinha cerca de 30 anos, saiu de casa da mãe quando tinha 12 anos de idade para “fazer limpeza de casa: morar com família”. Durante anos ela foi vivendo entre a rua e a Roça. Da vez que ficou mais tempo seguido numa casa “demorei, demorei, demorei e aí foi quando eu tive saudades e vim embora. Eu nem sei quantos meses eu passei lá, se foi três ou se foi dois”. De outra vez a família “não era muito boazinha” e ela voltou; de outra, ela gostou da família mas diz ter-se “enjoado” e por isso voltou para a Roça: “Fiquei um mês, quando foi mais de um mês vim embora”. Andou cerca de dois a três anos neste vai vem entre a rua e a Roça, tendo chegado a “servir” em Itabuna [cidade a cerca de 40 km para o interior de Ilhéus]. Ao fim desse período acabou por se juntar conjugalmente a um caboclo que mora no “lugar” contíguo com o “lugar” dos seus pais.

Esta sequência de eventos relatados no caso de Lousa e Risa é muito frequente na história das “saídas de casa” das mulheres. As idas para a cidade marcam uma fase de transição para a diferenciação de género que associa a agencialidade feminina à possibilidade de fuga, de transito entre a Roça e a cidade, de deslocação e mobilidade, e que contrasta com o quotidiano das mulheres casadas (e mães de filhos) que vimos ficar reservado aos carreiros entre a casa e a fonte, ou entre a mata de onde se retira lenha e o fogo.

Quando uma mulher opta por uma “carreira” de educação, ela prolonga, de forma inusitada, o período de sair e volta da roça para a cidade. Entre os membros da comunidade indígena de Olivença conhece-se, apenas, o caso de uma mulher que optou pela formação educacional - com o objectivo de continuar a leccionar num curso de alfabetização. Apesar de ter já mais de vinte e cinco anos, ela foi perpetuando esta condição de transitividade: não habitava permanentemente a casa filial, mas também não constituía casa própria, nem se juntava matrimonialmente[12]. O espaço da sua vida continua a ser o da mobilidade entre a Roça e a Rua.

Quando se casam, as mulheres irão viver na casa unifamiliar, construída para o casal, no “lugar” dos parentes do seu esposo. Este ideal virilocal estabelece-se em torno de uma série de ideias sobre iniciativas masculinas e femininas[13]. Assim, diz-se que um rapaz que queira constituir uma casa tem que ir “buscar” ou “arrumar” uma mulher. É ele quem tem que sair do seu “lugar” para ir buscar uma mulher noutro local. As mulheres são trazidas para o local de habitação do marido movendo-se, fisicamente, da casa onde foram criadas para a casa que irão habitar com o seu marido. Uma das prerrogativas que resulta da repetição desta ideia, segundo a qual são os homens que têm que procurar uma esposa, é a noção da escassez das mulheres. Tal como defendeu Peter Gow para o caso do Bajo Urubanda, esta forma de falar das mulheres como se fossem escassas decorre directamente da ideia que são os homens quem tem que “procurar as mulheres” (Gow, 1989:578; 1991:131). Ir buscar uma esposas significa que o homem tem que persuadir uma mulher a vir habitar consigo, no “lugar” dos seus parentes. A noção de escassez transmite esse “esforço” masculino.

A saída de casa é, portanto, o primeiro modelo de espacialização dos géneros, associando a agencialidade feminina à transitividade e movimento entre espaços (a Roça e a rua), enquanto que a agencialidade masculina se constitui na possibilidade de atrair de fora para uma fixação ao “lugar”. Na secção seguinte, veremos como essa espacialização se prolonga na escolha do parceiro conjugal, e no fazer e refazer da vida conjugal, ao longo dos anos. É na observação desse processo que este idioma espacial se justapõe a uma filosofia social sobre a agencialidade humana.

 

Escolha e Persuasão

O período de ida e volta entre a Roça e a cidade que resulta de “sair de casa” é o momento em que as mulheres intensificam o namoro. O caso de Lousa, apresentado na secção anterior, evidencia essa ideia. Tanto a sua atracção pela ida para a vila, como a vontade de voltar para a roça são rodeadas de comentários sobre a possibilidade de encontrar um namorado. Na percepção de Néra, na vila Lousa teria oportunidade de encontrar um índio que tivesse roça mas não bebesse cachaça, enquanto que na roça (como acaba por comentar no final) ela encontraria o mundo da sexualidade desbragada, deixando-se “a beber cachaça no meio do mato e a deixar a barriga crescer”. Para Lousa, a vila oferecia a possibilidade de sofisticar a sua aparência física, pintando os lábios e ajustando a roupa ao corpo, o que não é apropriado fazer-se na Roça; mas a Roça oferecia, na época Joanina, um sem número de festas onde se juntam jovens rapazes para dançar e namorar. O facto da época de sair de casa se identificar com a do namoro não significa que não existam inúmeras situações de atracção amorosa, entre rapazes e meninas, antes dos dozes anos de idade. Uma das que é mais comum na região da Roça é a dos jogos de futebol ao Domingo, e as festas e encontros fortuitos nas celebrações das diversas Igrejas protestantes sediadas na região. É, no entanto, depois dos doze anos de idade que estes encontros amorosos assumem um cariz público, conduzindo a que um rapaz possa pedir consentimento para coabitar com uma mulher, com o objectivo de encetar uma relação conjugal. Quando isto sucede, desencadeia-se um processo de conversação que deverá resultar no consentimento das diversas partes envolvidas - pais, sogros, noivo e noiva – para que se concretize o laço conjugal [14].

A escolha de categorias particulares de pessoas como parceiros matrimoniais preferenciais nunca é explicitada. No entanto, por observação estatística, verifica-se que os homens da comunidade indígena que ficam a residir na Roça e nos seus “lugares” tendem a juntar-se a mulheres da comunidade indígena [15].  O facto de não se formular esta homogamia explica-se pela aversão mais genérica a princípios que criem uma linha discriminatória entre as pessoas que pertencem à comunidade, por oposição às que não pertencem à comunidade. Deste modo, a tendência estatística para que os homens caboclos escolham esposas caboclas deve ser vista, principalmente, como uma valorização das ideias sobre a fixação a um “lugar”, a qual é enfaticamente explicitada. A existência de padrões matrimoniais matrifocais noutros contextos sociais da região tem mostrado aos membros desta comunidade que, quando um homem se junta a uma mulher de fora, ele pode vir a sair da região para ir morar junto do grupo familiar da sua esposa. Em suma, o casamento com uma mulher que não é cabocla pode levar os homens a abandonar o núcleo filial por casarem matrilocalmente. É esta ideia que explica a tendência para que o homem se junte a uma esposa da comunidade indígena, como ficará claro quando nos referirmos à liderança masculina, no final desta secção.

Outro dos princípios que orienta a escolha matrimonial diz respeito ao casamento entre primos. Esse princípio ganha sentido na constituição intersubjectiva das relações afectivas. O caso de Risa e dos ciúmes que ela sentia pelas primas cruzadas do seu actual marido, enquanto namorava com ele, ilustra bem esta ideia. 

Risa (Segunda parte): Ciúmes por serem primas.

Enquanto Risa andava entre a Roça e a rua foi namorando o primo que é hoje o seu actual marido. Ele é primo cruzado de Risa mas em segundo grau (a mãe dela é filha de um irmão do pai do rapaz). Ele (e ela) moram num “lugar” contíguo. O “lugar” de duas primas cruzadas [em primeiro grau] do marido de Risa situa-se também perto destes dois “lugares”. Na época do namoro de Risa com o actual marido, estas primas cruzadas estavam solteiras e na fase de “saída de casa”. Uma destas primas diz que, na época, Risa “morria de ciúmes” dela porque o namorado (actual marido) frequentava muito a casa dela à noite para jogar dominó. Risa ficava muito enciumada porque – justifica - como elas eram “primas” dele, depreendia-se que seriam namoradas preferenciais. O rapaz começou a ser intimado por Risa para largar o convívio do dominó em casa das primas. Um dia, só para se vingar dessa ciumeira, uma destas duas primas cruzadas “bateu boca” com o primo (isto é, deu-lhe um beijo) para compensar o facto dele ter começado a rarefazer as visitas para o jogo de dominó.

Este caso mostra-nos que a preferência matrimonial por primos cruzados se faz num contexto típico de “relações de gracejo” (Radcliffe-Brown, 1979). Não sendo um princípio normativo, esta preferência assume um lugar central na constituição de um universo de sentimentos afectivos de atracção, ciúmes e vingança.

Para além das escolhas matrimoniais, a agencialidade de género concretiza-se, ainda, nas ideias sobre a ruptura dos laços conjugais. A possibilidade de separação entre casais é comentada de forma inquieta pelos esposos de jovens mulheres. Quando os homens falam, retrospectivamente, das suas separações atribuem sempre à mulher a iniciativa: “foi ela que me deixou”. Nas conversas entre homens, quando eles se referem às mulheres como parceiras sexuais ou conjugais, é também comum comentarem-se os casos em que uma mulher “largou” um homem deixando-o “num desespero, a chorar pelos cantos”. Em primeiro lugar, o facto de se dizer que são as mulheres a “largar o marido” descreve, literalmente, o movimento físico do casamento virilocal: diz-se que foi ela a largá-lo porque foi ela quem saiu fisicamente do “lugar” dos parentes do marido. Contudo, o ênfase na ideia da separação resultar, primordialmente, de uma vontade e iniciativa femininas é tão forte e repetida na conversação diária que tem o efeito de consolidar como atributo feminino a capacidade de exercer escolhas pessoais e de agir segundo a sua vontade pessoal: é enquanto sujeitos de acção munidas das faculdades de decisão, iniciativa e escolha pessoal que se vê o lado feminino das escolhas matrimoniais e o lado feminino das separações conjugais.

Outros dos aspectos significativos da separação diz respeito ao facto dos filhos de um casal que se separa serem, com muita frequência, criados pela avó paterna da criança (a mãe do pai) que assume o papel de “mãe de criação”, principalmente quando é “mãe coordenadora” de um “lugar”. O significado destas “mães coordenadoras” tornar-se-á explicito na discussão da segunda parte do caso de Lousa. De facto, quando uma mulher “abandona” um marido que mora num “lugar” ele virá a ser alimentado pela sua mãe, que lhe vem acender o fogo e cozer o feijão; ou pelos seus filhos, que ajudam a avó nessa tarefa. Estas situações chamam a atenção para o facto da comensalidade ter um papel central na constituição do laço filial que contrasta com a sua precária relevância para a consolidação de laços conjugais. Assim se explica que, quando o laço conjugal se rompe, a continuidade dos “lugares” e das casas através da comensalidade não seja posta em causa. Num certo sentido, os homens dependem da agencialidade feminina para se alimentarem mas não vêem uma descontinuidade entre a forma como ela é exercida pela mãe ou pela esposa nem vêem esse atributo como um dos atributos centrais à feminilidade enquanto modelo hegemónico.

A segunda parte do Caso de Lousa põe em evidencia o papel das “mães coordenadoras” no momento da separação do casal.

Lousa (Segunda parte): “ela é que quis”

Acrescente-se um episódio ao período em que Lousa estava em casa de Néra, que envolve a mulher do irmão dela. Um dia, encontrei a cunhada de Lousa na esquina de casa de Néra. Ela estava consternada e contou-me que andava “fugida” da Roça. Tinha deixado filhos e marido e veio embora. Disse que é de Mato Grosso e que não sabia se havia de voltar para junto dos pais ou ficar na cidade de Ilhéus. Disse que tinha saído da Roça porque estava ameaçada pelo marido que lhe apontava o facão ou, como disse “queria furar-me”. Acrescentava, entre lágrimas, que se queria suicidar. Quando foi possível comentei o sucedido com Néra e Lousa. Ao falar do facão com o qual ele queria “furá-la” Lousa desmanchou-se a rir. Ao  abafar o riso explicou que já não era a primeira vez, nem a segunda, que a cunhada se vinha embora da Roça. Ela vinha para a rua “namorar” e voltava para a Roça ao fim de alguns dias. Os filhos deles ficavam na Roça. Lousa dizia-se preocupada com a mãe, que acabava por assumir a criação dos netos. Efectivamente, ao fim de uns dias, soube que a cunhada de Lousa havia voltado para a Roça. Morou aí com o marido até o final do período em que decorreu o trabalho de campo.

Avancemos agora um ano na narrativa, até Setembro de 1999, época em que voltei a Jacarandeira. Visitei um homem, a quem chamo Augusto, que estava separado da esposa há vários anos. Augusto tem por volta de quarenta anos de idade. Várias vezes o ouvi contar a história da mulher que o tinha “largado”. Diz ele que “Ela foi embora. Pegou esses negócio todos, cortou a roupa toda e, aí, ficou na desgrama”. Ele quis ficar a criar os filhos. Desde que Augusto se separou a mãe dele que habita numa casa do mesmo “lugar”, acende-lhe o fogo, e os filhos já aprenderam a cozer o feijão. Mesmo assim, vi-o insistir no desejo de “arrumar uma mulher”. Durante o período de trabalho de campo nunca conseguiu fazê-lo. Foi, portanto, com surpresa, que ouvi comentar, nesta visita, um ano após o presente etnográfico, que Augusto tinha “arrumado” uma mulher e, mais ainda, que essa mulher era Lousa.

A história que se contava era que Lousa, numa das suas viagens Roça-rua-Roça se tinha decidido juntar a Augusto. Contudo, a relação acabou por não dar certo e ela “largou-o”. Uma das pessoas que me falou no assunto explicou que ela veio morar com Augusto “porque quis” e que, se ao fim de 3 meses foi embora é porque não gostou. A decisão é dela. A iniciativa da criação do laço conjugal é da esposa e a separação faz-se, igualmente, por sua vontade.

O comentário sobre a aliança entre Lousa e Augusto, segundo o qual ela só foi coabitar com ele “porque quis” e que se o largou, também foi por decisão sua, é mais um exemplo da forma como o encadeamento de factos que cria a ligação conjugal – o homem vai buscar a mulher, os parentes consentem, ela vem morar com ele – termina sempre por enfatizar que a escolha final é feminina e obedece ao exercício da vontade pessoal de uma mulher. É por este conjunto de ideias que, para além de “arrumar mulher”, um homem tem que “segurar” uma mulher, como se a feminilidade fosse, por natureza, uma condição fugaz (a naturalização dos discursos dos género é aqui evidente).

            A separação de Augusto põe em evidência o papel das “mães coordenadoras”. Cada “lugar” tem apenas uma mulher com o papel que designo de “mãe coordenadora”. Uma mulher adquire este estatuto quando mora num “lugar” com o seu nome, ou com o nome do seu marido, e onde habitam os seus filhos casados e respectivos netos. O estatuto de “mãe coordenadora” é o de uma dupla maternidade: ele define a situação de se ser mãe dos que estão na sua casa e mãe dos filhos dos casais que moram noutras casas do mesmo “lugar”. O facto de os netos de uma mulher nesta situação poderem tratar a avó pelo termo de “mãe” é mais um elemento que nos ajuda a compreender a facilidade com que esta “mãe coordenadora” assume a criação dos filhos de um casal no caso de ele se separar, como aconteceu com Augusto[16]. Quando Augusto se separou da esposa, a mãe sustentou o hábito de acender o fogo de Augusto para o feijão. Este hábito ganha regularidade quando o homem se separa, mas ocorre também nos casos em que uma esposa se ausenta, temporariamente, de uma casa, por razões que podem variar entre uma doença que obrigue a ir para o hospital, ao trabalho periódico enquanto assalariadas rurais. Na ausência temporária da esposa, a mãe (avó por relação aos filhos) trata do fogo de uma casa. Quando a ausência ou incapacidade de uma esposa é mais prolongada, como acontece no período pós-parto (“o resguardo”) é esta “mãe coordenadora” quem efectua todas as tarefas femininas que estão associadas à casa: apanhar lenha, lavar a roupa no córrego e cozinhar no fogo. É também ela quem ajuda no parto das mulheres que habitam no seu “lugar”. Na vida quotidiana, o seu papel de coordenadora pode observar-se nos dias em que as mulheres jovens vão trabalhar e, ao entardecer, vimos a “mãe coordenadora” a percorrer as casas do “lugar”, uma a uma, para acender o fogo das noras e dos filhos, para que não falte o feijão da noite.

Este papel das “mães coordenadoras” mostra-nos que, quando uma mulher tem uma segunda geração de “filhos” (os netos), e se transforma numa “mãe coordenadora”, um dos seus atributos de feminilidade morre. A fugacidade, ou a possibilidade de largar o marido e fugir, submerge ao papel de coordenação do “lugar”. É como se, nesse momento do seu curso de vida, o laço filial se reforçasse e enraizasse com a dupla maternidade, ao mesmo tempo que a sexualidade feminina se fragiliza.

Se a feminilidade é marcada pela escolha e iniciativa pessoais, a masculinidade liga-se a formas de exercer a persuasão. Em Jacarandeira fala-se das qualidades de liderança de alguns homens de uma forma que reforça a ideia da persuasão ser um atributo central da masculinidade. Uma destas qualidades diz respeito ao facto de eles terem “lugares” com o seu nome, onde fixaram a casa de vários filhos não só do lado masculino como do lado feminino[17]. Esta capacidade de fixar, de “segurar” uma esposa e de fixar os filhos é uma qualidade de liderança, à qual se podem vir a juntar outras, como a de possuir faculdades de exercer rezas curativas. A capacidade de segurar pretende alcançar objectivos diversos, tais como: i) conseguir que um filho fique no “lugar” dos seus pais; ii) conseguir que uma filha faça escolhas matrimoniais acertadas; iii) trazer uma filha para morar junto do pai, mesmo quando o marido dela está a tentar persuadi-la a morar no “lugar” dos pais deles. A persuasão é a arte da liderança masculina.

O exercício da persuasão masculina pode fazer cair por terra um dos princípios que parecia mais estrutural em todo este processo de agencialidade de género: a virilocalidade. Quando encontramos mulheres a residir, com os seus maridos, junto da casa dos pais delas é usual que se tratem de situações em que elas dizem ter sido “chamadas” pelos pais. A liderança exerce-se com sucesso quando se consegue persuadir as pessoas a fixarem-se na região. A persuasão do pai e a do marido intercedem, no entanto, em direcções opostas. O marido não gosta, à partida, de viver junto do seu sogro e dos seus cunhados, preferindo residir em “lugar” seu i.e. virilocalmente. Pelo seu lado, o pai gosta de ter todos os filhos e filhas em seu redor. As vezes que um e outro conseguem atingir esse ideal depende da conjugação intersubjectiva entre as forças de persuasão masculinas e o exercício das escolhas pessoais femininas.

 

A terra como limite (conclusão)

A etnografia desenvolvida neste texto põe em evidência uma trama de valores assentes em filosofias sociais espacializadas e formas de agencialidade. A noção de limite foi-nos surgindo, ao longo do argumento, como indicador de um processo de transformação da terra, o qual passa, por um lado, pela restrição objectiva do território disponível na mata (que se vai estreitando, em resultado de um processo complexo de transformação da terra em mercadoria) e, por outro, pela visão desse estreitamento como uma asfixia referente à impossibilidade de se manter a mobilidade dos “lugares”. O limite, enquanto conceito espacial negativizado, contrapõe-se à valorização da mobilidade. Mas a noção de limite transmite também ideias sobre agencialidade, significando o valor negativo de constrangimentos na acção pessoal, que se contrapõe à valorização das escolhas pessoais e da persuasão pessoal como “filosofias da socialidade”.

            A “terra como limite” descreve um contexto duplamente negativo: onde a asfixia física (e espacial) se alia à restrição da acção (e da autonomia pessoal). Em contraposição a esse limite fica a noção de terra como extensão, a qual viabiliza a intersecção da mobilidade com o exercício da escolha pessoal: as casas poderão mover-se, os filhos escolher a sua mãe de criação, os pais podem “chamar” as suas filhas para junto do seu “lugar” e os casais separar-se, sempre que a relação conjugal se julgue ter terminado. É a implicação destas diferentes dimensões da socialidade na noção de terra como espaço amplo que nos ajuda a avaliar a importância do acesso à terra, e o seu papel enquanto eixo de articulação das identidades sociais.

 

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Documentos

DOCUMENTO I

Documento  publicado no Jornal O Comércio em 1922 e inserido na notícia do Diário da Tarde, 12 de Novembro de 1934, intitulada “Olivença- a nossa estação de cura: Os propositos do prefeito Eusinio Lavigne em relação á importante localidade. Recordando um antigo apelo em favor da construção da ponte de Cururupe”.

 

[1] Assistente no Departamento de Antropologia, Universidade de Coimbra (Coimbra/ Portugal). Prepara tese de doutoramento sobre processos de identificação étnica e de lugar, tendo por base trabalho de terreno realizado entre 1997-1998 sobre uma população “cabocla” do sul da Bahia/Brasil. Orientador da tese: Professor Dr João de Pina Cabral (I.C.S.- Universidade de Lisboa). Publicações mais relevantes: 1996 – “Pessoas Presentes, Pessoas Ausentes. Processos intersubjectivos de consciência do tempo no envelhecimento” in Miguel Vale de Almeida (org), Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas sobre o Corpo, Ed. Celta, Lisboa.  1998 - “Índios que não querem ser índios: Etnografia localizada e identidades multi-referenciais”. Etnográfica Vol II (1), Lisboa. Áreas de interesse: Identidade Étnica, noção de pessoa, processos etnopolíticos, contexto indígena e afro-cultural - América do Sul.

[2] Agradeço aos meus colegas do Seminário de Pesquisa em Antropologia Social do Instituto de Ciências Sociais - sob coordenação científica do Professor João de Pina Cabral - o debate em torno de uma versão preliminar desta comunicação, e ao João de Pina Cabral os comentários a uma primeira versão escrita, os quais se revelaram essenciais à consolidação do argumento. A etnografia aqui apresentada deve ser vista ainda,  no entanto, como um  “work in progress”.
 O trabalho de campo com observação participante do qual resulta a etnografia que será aqui apresentada decorreu, de forma continuada, entre Agosto de 1997 e Agosto de 1998. A pesquisa foi financiada pelo Programa Praxis da Fundação da Ciência e Tecnologia (Ministério da Ciência/Portugal) através do Projecto PRAXIS PCSH/P/ANT/42/96, e insere-se numa dissertação de doutoramento em curso no Departamento de Antropologia da FCTUC, sob orientação do Professor Doutor João de Pina Cabral do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Nos primeiros meses de trabalho de campo tive o privilégio de realizar parte da pesquisa de campo com Miguel Vale de Almeida (ISCTE/LISBOA) – coordenador do projecto acima referido.

[3] A região a que se chama de Roça abarca toda a área de mata que vai da vila até uma cadeia de serras que encerra o horizonte. É um espaço sem recortes urbanos, albergando cerca de 13.000 pessoas. Usa-se Roça com letra maiúscula para distinguir este significado abrangente do termo de outras acepções mais restritivas, tais como a de um terreno cultivado ou “roçado”.

[4] O levantamento demográfico feito para esta pesquisa permite estimar em 350 o número de pessoas que pertencem à comunidade de “caboclos de Olivença”, fixadas em seis localidades distintas. Destas 350 pessoas cerca de 150 residem na localidade designada Jacarandeira conjuntamente com mais cerca de mil trabalhadores assalariados rurais.

[5]Para além das casas de habitação a definição de um “lugar” pressupõe também a existência de um córrego ou de um braço de rio que é usado em exclusivo pelos habitantes de um lugar. As casas e o córrego estão ligados, entre si, por carreiros pedestres de chão de barro. Os “lugares” também têm, idealmente, uma “Casa de Farinha” – onde se processa a mandioca para obter farinha de mandioca. 

[6] O decreto que declara a extinção de todos os antigos aldeamentos de índios data de 1875. Em 1888 a lei é executada, concedendo-se ao município de Ilhéus o direito de alienar as terras dos aldeamentos (Carneiro da Cunha, 1998:145-146; Campos, 1945:260, 271). A legislação sobre a extinção dos aldeamentos seguiu-se ao “Regimento das Missões” de 1845, instrumento legal que dispunha sobre a administração dos índios e seu património. Nesse regimento, a extinção dos aldeamentos é justificada segundo princípios de assimilação, tais como a necessidade de se “incorporar aos Próprios Nacionais as terras dos índios, que já não vivem aldeados, mas sim confundidos com a massa de população civilizada” (Dantas et alli, 1992:451-2).

[7] Transcrição do Documento designado como DOCUMENTO Nº I na bibliografia..

[8] Como Taussig demonstra para o sistema de “laços de dívida” entre seringueiros e índios nas montanhas Putumayo no Peru, na viragem do século XIX para o século XX, este sistema de dependência pessoal permite que o valor real atribuído aos bens permutados entre índios e seringalistas seja muito subvalorizado, garantindo que a borracha entregue pelos índios nunca iguale o valor dos bens fornecidos pelos seringalistas (1991:70-71. A ausência de um referente de mercado nestes sistemas de permuta tem levado alguns autores a chamar a atenção para a importância de factores históricos de ordem social e política, entre os quais se destaca a fraqueza da presença local do Estado (Santos Granero, 1998:254). Este argumento histórico ajuda a corroborar a viabilidade das “permutas” nas Vendas de Olivença já que, como tem sido salientado, nesta época o sul da Bahia estava sob o governo dos coronéis: o poder do Estado na Bahia era praticamente nulo localmente (cf. Fausto, 1994:261, 264).

[9] O ciclo económico da piaçava não findava nas Vendas: os proprietários das Vendas recebiam a piaçava e entregavam-na aos proprietários de Armazéns de Piaçava existentes em Ilhéus, no contexto de uma relação que assentaria, igualmente, na dívida. Algumas das Vendas da vila fecharam por endividamento dos seus proprietários em relação aos armazenistas de Ilhéus, os quais chegam a ser apelidados de “usurários” - uma expressão onde se projecta, para essa ponta da rede de endividamento, o espírito de exploração capitalista que o processo incorpora. Este endividamento dos intermediários é também característico dos sistemas de “laço de dívida” (cf. Taussig, 1991:67-68).

[10] Entende-se por unidade social primária o “ nível de identidade social que tem maiores implicações estruturais na integração social das pessoas e na apropriação social do mundo” (Pina-Cabral, 1991:118).

[11]A partir da década de 1970 os laços de dívida terão deixado de assumir o papel central na caracterização da relação entre a economia de subsistência e a economia de mercado capitalista. Este facto contrasta com o que aconteceu noutros contextos indígenas na Amazónia, como no caso dos Barasana e dos Kaxinauá da região amazónica brasileira do Acre, na fronteira com o Peru, onde os “laços de endividamento” continuaram a existir independentemente da transformação do sistema de produção: da borracha para a cocaína e a extracção de ouro (cf. Hugh-Jones, 1992:46; McCallum, 1991:414). O facto do sistema ter sido desactivado em Olivença pode ser visto como mais um dos resultados desta mudança social abrupta na situação de trabalho e da posse da terra (cf. Santos Granero, 1998:254 e Taussig, 1991:128).

[12] A observação feita por Peter Gow para o caso dos nativos do Bajo Urubanda (na Amazónia peruana), de que uma educação prolongada e continuada rompe com a associação da vida das mulheres ao casamento e gravidez, é útil para elucidar esta mesma situação em Olivença (Gow, 1991:244).

[13] Jean Jackson chama a atenção para o facto das “saídas de casa” das mulheres entre os Tucano da região Vaupes, onde o princípio da virilocalidade é marcante, se fazerem acompanhar de enorme “stress emocional” (Jackson, 1983:186). Este “stress emocional” é explicado por Jean Jackson pelo facto dos grupos de residência serem exogâmicos e muito isolados entre si, fazendo com que as mulheres, enquanto esposas, passem a ser vistas como exteriores ao grupo social (ibid). Christine Hugh-Jones também chama a atenção para o facto de, para as mulheres Barasana (tucano), o período de maturação sexual significar que as mulheres terão que se mudar para outras casas, noutros territórios, e de esse movimento significar principalmente a sua transformação em esposas e a associação a um mundo externo (C. Hugh-Jones, 1988:161,165 e ainda Jackson, 1983:18). Aquilo que se argumenta para o caso de Olivença é que o resultado da virilocalidade no idioma de género não é visto na perspectiva de quem está dentro do “lugar” (onde as mulheres seriam estranhas)  mas antes do ponto de vista da constituição do curso de vida.

[14] Tal como acontece noutros contextos sul ameríndios, como entre os Piaroa do rio Orinoco na Amazónia, os nativos do Bajo Urubanda ou ainda os Kaxinauá na Amazónia, a escolha de parceiros conjugais é melhor descrita através de processos de consentimento do que de normas prescritivas ou preferenciais de matrimónio (Overing, 1991:18; McCallum, 1991:417 e 419; Gow, 1991:142).

[15] Tendo em conta as 15 casas onde existem homens da comunidade indígena em Jacarandeira verifica-se que em 13 delas os homens têm como parceira conjugal uma mulher da comunidade indígena, enquanto que apenas 2 têm uma mulher que veio de fora da comunidade (e da região). Entre as 8 casas onde estão mulheres da comunidade indígena em Jacarandeira seis têm como esposo um homem de fora da comunidade, enquanto que apenas duas se juntaram matrimonialmente a um “caboclo”.

[16] A instituição dos filhos de criação é essencial à compreensão deste processo de relação entre os laços filiais e conjugais, sendo tema de uma comunicação a apresentar (Viegas, 2000b).

[17] Como refere Peter Gow para o caso dos nativos do Bajo Urubanda: “os lideres nas sociedades nativas da Amazónia funcionam para criar os grupos locais e não para os liderar” - conclusão que o autor diz poder estender-se para o caso dos Piaroa, para o contexto das  Guianas e para os Nambiquara (Gow, 1991:227).