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Grupo de Trabalho 1
“Raça, Gênero e Classe em perspectiva comparativa: nordeste do Brasil* e Amazônia Ocidental”

Maria Rosário Carvalho
Jurema Machado Souza
[1]

“Ma mère but le sang noir. Aussitôt elle me reconnut”
Homère, L´Odysséé, XI, 5 (apud Roux 1988:201).

Introdução

 O Simpósio O Desafio da Diferença Articulando Gênero, Raça e Classe constituiu, de fato, um desafio para as autoras. Preliminarmente, Carvalho deixar-se-ía seduzir pelo convite formulado pela inspiradora, coordenadora geral do Simpósio e do GT Gênero, Raça/ Etnicidade e Classe em perspectiva comparativa, Cecília McCallum, para a ele se integrar, e o fez meio impetuosamente, sem bem refletir se reunia as condições objetivas para a realização da empreitada, ou seja, material empírico e base teórica para proceder à articulação esperada entre as três dimensões referidas mediante uma abordagem comparativa. Por outro lado, o título do então futuro texto parecia buscar aproximar as duas pontas da sua trajetória de pesquisa, tensamente construída entre o nordeste brasileiro e a porção ocidental da Amazônia, visualizados, no ponto-de-partida da escolha, como radicalmente distintos, antitéticos mesmo. Na feliz expressão de Edwin Reesink, tratar-se-ía da mudança de um ´mundo de seca´ (ou deserto de areia) para um ´mundo de água´ (ou um deserto de água) (Reesink 1993: 13). A rigor, a distância que separava, histórico-geográfica e politicamente, os dois contextos etnográficos só seria reduzida ao final do século XIX (1878), mediante a migração de população do nordeste, sobretudo do Ceará, para a Amazônia [2]. O retorno, por parte de Carvalho, mais recentemente, à primeira daquelas pontas, o extremo-sul da Bahia onde se localizam os denominados Pataxó meridionais, motivou-a a tomá-los como uma das medidas de comparação, idéia posteriormente abandonada em favor dos Pataxó setentrionais, então estudados por Souza, que os escolhera para tema de sua monografia de bacharelado em C. Sociais (concentração em Antropologia), cujo foco incide na suposta mudança de seus padrões de reprodução e sexualidade, à luz da redução das taxas de procriação, provocadas, ou não, pela utilização da laparotomia, ou laqueadura tubária, e nas alterações, daí decorrentes, das relações entre os gêneros. A parceria mostrou-se, assim, oportuna e intelectualmente prazerosa e instigante.

 

Os contextos etnográficos em foco

Os índios regionalmente conhecidos como Kanamari estão estabelecidos na Amazônia Ocidental. Tradicionalmente, eles dominavam uma extensa porção na região do médio Juruá, entre Carauari e Cruzeiro do Sul, e baixos e altos cursos de áreas vizinhas, compondo um grande conjunto de unidades denominadas -Djapa, cada uma das quais atendia por um nome próprio e se reproduzia endogamicamente, não obstante compartilhassem língua e cultura. A interação entre as várias unidades realizava-se mediante festas e rituais mais ou menos regulares, da ausência prolongada decorrendo ataques xamanísticos. As frentes de expansão de caráter extrativista (borracha e caucho) da sociedade nacional avançaram sobre o Juruá a partir da segunda metade do século XIX e os compeliriam, em distintos momentos e variado grau de belicosidade, a abandonar as margens dos rios e deslocar-se para o interior, poucos tendo persistido na área de origem. Anteriormente à invasão do Juruá por segmentos regionais, a região era ocupada por grupos Katukina, Pano e Aruak, que, num equilíbrio instável, mantinham o domínio sobre a área. Tastevin e Rivet ressaltaram a homogeneidade cultural da chamada região Juruá-Purus, não obstante a grande quantidade de grupos étnicos que aí transitavam, o que os levou a afirmar a impossibilidade de tratá-las separadamente, do ponto-de-vista etnográfico (1921:449).

A Lei de Terras de 1850 acarretaria a divisão regional em vários pequenos seringais, limitados pelo dispositivo legal a uma faixa de meia légua de frente, margeando os rios, ao que se seguiria, em 1870, a substituição do modelo extrativista itinerante pelo extrativismo de seringal, com o que se buscava disciplinar a atividade extrativista, limitando-a a áreas previamente definidas entre os seringalistas; na prática, contudo, continuava a prevalecer a ´lei do mais forte´, com o que grandes extensões ficavam sob o domínio de um homem, mediante a violência física, à semelhança do que ocorria com a prática colonial das sesmarias. Nos períodos de estagnação do extrativismo da borracha, lançava-se mão, de forma ainda mais predatória, do extrativismo da madeira e de pele de animais, comprometendo drasticamentre a fauna e flora regionais, que tinham a mesma destinação das ´drogas do sertão´, ou seja, o mercado externo. Finalmente, em 18882 dar-se-á a demarcação de terras para formação dos seringais, o que promoverá uma nova configuração nos limites territoriais das duas baciais, e a completa liberação das margens dos rios pelos grupos indígenas, mais uma vez compelidos às áreas interiores, que, pela dificuldade de acesso ou número reduzido de seringueiras, ficavam à margem do extrativismo. Muitos se refugiariam, assim, no alto curso do Jutaí, para o que se valeram da presença de uma unidade Djapa daí originária, outros penetrando no rio Itacoaí, donde posteriormente desceriam para o Javari, e ainda outros tantos se estabelecendo no Japurá.

O material empírico que será aqui utilizado concerne aos Kanamari do Jutaí e do Juruá, que compreendem bom número de -Djapa localizados nesses rios, salvo os Tsohon Djapa [povo tucano] e os P'da Djpa (ou Katukina do Biá), com os quais os contatos de Carvalho foram absolutamente insuficientes, e que, rigorosamente, não podem ser considerados t'k'na, tampouco kanamari, como se auto-denominam, e são denominados pelos regionais, os grupos locais com quem ela conviveu.

Por sua vez, os denominados Pataxó hãhãhãi estão estabelecidos no sul da Bahia, comprovadamente desde 1610, e, similarmente ao que ocorreu com os grupos étnicos da região Juruá-Purus, tiveram a sua área disputada, violentamente, pelos regionais a partir da segunda metade do século XIX, por ocasião da expansão cacaueira para o interior. Para facilitar a ação dos invasores, o Estado deu início ao aldeamento dos diversos grupos indígenas aí estabelecidos, os últimos dos quais foram os Pataxó Hãhãhãi e os Baenã, concentrados numa Reserva criada pelo governo estadual, em 1926, e que seria administrada pelo SPI. No período compreendido entre essa data e 1936, povoações de pescadores, pequenos comerciantes, fornecedores e agentes intermerdiários da admintração do posto Indígena criado pelo SPI se estabeleceriam nas proximidades da Reserva, adquirindo, entre outros, o direito de extrair e explorar economicamente o ouricuri, palmeira abundante na região. Até então considerada pouco atrativa para as frentes de expansão cacaueira, as terras da Reserva passam a ser assediadas pelos coronéis de Itabuna e Ilhéus, investida que culmina com a acusação de estar o chefe do PI, juntamente com os índios, não-falantes do português, e os pequenos agentes econômicos estabelecidos no entorno da Reserva, organizando uma célula comunista, imputação que encontra acolhida face às repercussões decorrentes da Intentona Comunista de 1935. Reprimida policialmente a suposta ´célula´, graças ao concurso dos coronéis, que, em troca, foram recompensados com a redução da área da Reserva de 50 mil para 36 mil hectares. Ademais, uma nova configuração administrativo-espacial tem lugar com a divisão da área em dois Postos Indígenas, o Caramuru, estabelecido ao norte, para o recolhimento e ´pacificação´ dos “índios apanhados na mata” (Nimuendaju 1938:2), ou seja, os Pataxó hãhãhãi e Baenã, integralmente carentes da assistência do SPI, e o Paraguassu, ao sul, reservado aos índios de Olivença, expulsos dessa aldeia, nas proximidades de Ilhéus, transformada em zona de veraneio dos coronéis, aos Kariri-Sapuyá, igualmente expulsos, por plantadores de fumo e café, e, posteriormente, por uma frente pecuária, da Aldeia da Pedra Branca, na porção sul do recôncavo baiano, assim como outros índios originários de outros aldeamentos baianos, que haviam sido extintos pela Lei No. 198, do Poder Executivo do Estado da Bahia, em 21/08/1897. O PI sul seria, ademais, subdividido em lotes, transformados em roças de cacau, café, horti-granjeiros e em criatório de gado, sob a mão-de-obra indígena e administração direta do SPI. Este órgão, que até então estivera burocraticamente vinculado ao Ministério do Exército, passa a reportar-se ao Ministério da Agricultura, com o que a prática considerada assistencialista até então adotada é substituída por uma mais pragmática, orientada para a busca de auto-suficiência dos PI´s. Inicia-se o arrendamento das terras da reserva, cujos contratos, não obstante registrassem cláusulas impeditivas de transferência de direito de uso, estabelecimento de benfeitorias e etc., tornar-se-íam vitalícios, ensejando a ocupação total da área pelos chamados ´fazendeiros´. A situação culminará com a impossibilidade de reprodução econômica da adminitração dos PI´s, face à recusa dos arrendatários em corrigir os contratos de acordo com a taxa de inflação, do que decorrerá a sua desativação e o abandono dos índios a variados mecanismos de pressão.

 

Articulando raça/etnicidade, gênero e classe

O nosso objetivo, como já referido, é, à luz dos dois contextos etnográficos, problematizar uma possível articulação entre raça, gênero, e, eventualmente, classe. A categoria que se nos afigura central para operar tal articulação é justamente a de sangue, aparentemente recorrente nas duas situações investigadas, e, também nos contextos regionais de inserção dos Kanamari e dos Pataxó, como esperamos poder demonstrar. 

 

Organização Social: -Djapa, nação, família

Os Kanamari se organizam em várias unidades denominadas -Djapa [3]. A tradição preconiza, simultaneamente, uma base geográfica própria para cada -Djapa e autonomia matrimonial. Trata-se de uma unidade suficientemente abrangente para abarcar todos os que assim se auto-denominam, e o fazem porque falam, de modo geral, a mesma língua e compartilham um mesmo horizonte cultural. Assim entendido, o termo abstrai as diferenças concretas que o nome do animal que antecede ao termo Djapa pressupõe (Hitsan Djapa/porco selvagem; Wiri/queixada; Wadjo Paranim/macaco cairara, e etc). Logo, trata-se de um conjunto heteróclito, que, embora o seja, se apresenta, no plano coletivo, como uma unidade, construída através do parentesco, “parentesco de sangue”. Nesse nível, pois, ele recobre todo o conjunto que a literatura consagrou como Kanamari [4], e mais os Tsohon Djapa/povo Tucano e os chamados Katukina do Biá, no curso médio do Jutái. Em outras palavras, todos os Kanamari são Djapa, mas as duas exceções referidas demonstram que os dois termos não são unívocos, e que, ademais, correspondem a distintos níveis de abrangência, o que faz com que se possa concluir que nem todos os Djapa são Kanamari. Nesse sentido, o termo nação [5] parece constituir um equivalente de -Djapa, demarcando uma espécie de fronteira, de caráter étnico, não obstante relativamente fluida, face aos outros índios, não-Djapa [6].

Internamente a cada -Djapa, ou grupo local, todos se relacionam entre si como parentes, e cognatos, o casamento prescrito sendo aquele com o primo(a) cruzado(a), idealmente o primo(a) cruzado(a) bilateral, da mesma forma que entre os -Djapa o parentesco -- valendo, porém, a distinção entre parentes “próximos” ou “reais”, e parentes “distantes” ou classificatórios -- continua prevalecente.

T'k'na -- “gente que nem nós” -- é o termo que circunscreve a comunidade dos -Djapa, assim como T'k'na tan -- “gente mesmo” -- distingue-a dos outros povos indígenas e dos não-índios. T'k'na é um tipo de índio. De longe a gente vê... lá vai t'k'na”, eles dizem, para sublinhar que são capazes, mesmo à distância, de proceder ao reconhecimento dos parentes. De todo modo, o critério absolutamente definidor para o parentesco é a língua, uma vez que “se falar diferente não é parente”. Da sua posição de observadora, Carvalho (1998) mais de uma vez foi levada a concluir que essa categoria, como outras categorias nativas, opera certos deslizamentos no mesmo campo semântico, ora parecendo contrair-se -- para abranger apenas aqueles cmcentrados no mesmo grupo local, tradicional ou idealmente membros do mesmo -Djapa --, ora expandir-se, para acolher todos os que compartilham língua e cultura.

O mito de sua gênese, tal como narrado pelos Kanamari contemporâneos, concerne a todos, sem especificação. Foi o herói cultural Tamakori, auxiliado pelo seu parceiro, e, ou irmão, Kirak, quem deu início ao povoamento da humanidade, pelo Juruá e pelos -Djapa. Para criá-los, ele lançou mão de coquilhos da palmeira regionalmente denominada jaci, “grossa e com muita palha”, tendo o cuidado de distribuir cada -Djapa em um local, “para não misturar”. Todos os -Djapa teriam sido criados em um mesmo dia. O missionário francês Constant Tastevin, que atuou por longo período na região, no início do século XX, recolheu duas outras versões do mito de criação, provavelmente pertencentes a tradições distintas, uma das quais declaradamente oriunda dos Amena Djapa/macaco escarlate. Nessas versões, a criação ter-se-ía feito individualmente por -Djapa, de quatro tipos distintos de palmeiras, ou seja, bacaba, jaci, paxiúba e caraci (Tastevin: folha avulsa, manuscrita). Uma outra versão, igualmente recolhida por Tastevin, substitui a matéria-prima vegetal por um sopro de Tamakori, após o que o criador teria colocado cada -Djapa no lugar de origem. Além dos -Djapa, soprados nus, Tamakori criou, através do mesmo sopro vital, os Brancos, eloqüentemente soprados com roupas.

As unidades mais similares aos -Djapa, no contexto amazônico próximo, são os madiha, categoria que recobre o povo regionalmente conhecido como Kulina, os vizinhos não-Djapa mais próximos dos Kanamari, física e socialmente. Nação é o termo português usado para traduzir madiha, categoria nomeada a partir de um animal ou planta, e tendencialmente também associada a um local geográfico (Viveiros de Castro 1978:18). Os Kulina igualmente consideram as pessoas do mesmo tronco como Imecote, literalmente “ponta de minha carne”, “irmãos” ou “parentes” (Altman 1994:48), o que não se estende aos membros de outro madiha, mesmo aqueles com os quais se usa um termo de parentesco (1985: 9-9).

Sangue e natureza são duas categorias especialmente relevantes para a clarificação das unidades -Djapa, de acordo com a teoria Kanamari. Elas remetem a contextos relacionais de distinta grandeza, em que o primeiro -- o sangue -- engloba o segundo -- a natureza --, demarcando, de um lado, o espaço da semelhança, e do outro, o da diferença. Eles afirmam que “o sangue é uma coisa que abriga a natureza da pessoa. Djapa é um sangue só. Agora, a gente tem um pouco de diferença, sim, da natureza, do sangue não. Porque tem uns que têm a natureza mais forte, outros mais fraca. É a natureza deles que é assim”. Nesse sentido, Kulina é de outro sangue, partilha uma outra substância, que não deve se misturar à substância compartilhada pelos -Djapa. A suposta maldade Kulina, reiteradamente imputada pelos Kanamari, do mesmo modo que as virtudes que os Kanamari se auto-atribuem, são características originariamente atribuídas ao coletivo, o que se imprime nos indivíduos como marcas identitárias indeléveis. Assim sendo, devem ser conservadas como substâncias radicalmente descontínuas no plano biológico, e, sempre que possível, também no social.

Na totalidade -Djapa fundada mediante o sangue, por outro lado, a diferença não está ausente , antes a totalidade se nutre dessas diferenças, ou das distintas naturezas dos vários -Djapa. Há tantas naturezas quantos sejam os -Djapa, e, no nome, aparentemente, está inscrita a natureza. À diferente natureza de cada -Djapa se acrescentam novas diferenças, de caráter linguístico-estrutural. O que, para o observador ocasional, pode parecer uniforme, uma totalidade homogênea de práticas e representações, a observação mais detida revelará tratar-se de pequenas mas significativas diferenças, que, a depender das circunstâncias, podem ser escamoteadas, atenuadas, ou ciosamente cultivadas pelos indivíduos. Incidir em uma ou outra dessas alternativas dependerá também do -Djapa ao qual se reporta, pois parece haver uma hierarquização, que melhor posiciona aqueles com os quais se têm vínculos mais estreitos, o que, nem por isso os isenta de serem alvo de desconfiança. Ao se referir, por exemplo, aos Wiri Djapa, um informante, que se identificou como Wadjo Paranim Djapa, afirmou que eles são “um pouco diferente” e que não usam o “traço” que os Wadjo usam, até a comida sendo diferente. Instado a melhor clarificar o sentido atribuído ao termo “traço”, ele completou: “traço de vida, de comida, de sistema de casamento”, e exemplificou com as objeções interpostas à realização e preservação de casamentos entre aqueles residentes no Juruá com os do Jutaí. Tratar-se-ía, aparentemente, de uma resistência a casar fora do -Djapa , ou com alguns determinados -Djapa -- “é um sistema em que eles não querem ver aquela família [7] junto com aquela outra” -- e que, em geral, termina com o retorno do cônjuge sócio-politicamente mais fraco ao grupo local de orientação.      

Os denominados Pataxó Hãhãhãi compõem também um conjunto heteróclito englobado pelo etnônimo que, de fato, designa apenas um dos cinco grupos étnicos que convivem em parte da antiga Reserva Caramuru-Paraguassu. Curt Nimuendaju, etnólogo e funcionário do SPI, no âmbito de uma “jornada oficial de observação” à região que se estende do sul da Bahia até o vale do rio Doce, ao longo da vertente oriental da serra do Mar (Nimuendaju 1971), vistou a Reserva, em 1938, doze anos, portanto, depois de sua criação. O seu testemunho, não obstante o seu forte acento culturalista, ou talvez graças a ele, é particularmente importante para ´iluminar´ o sistema intercultural que aí se constituiu, à base de fragmentos étnicos, autóctones e transplantados, e cuja distribuição espacial, mediante verdadeiros nichos, espelha a antiga heterogeneidade linguístico-cultural, ainda operativa no plano étnico-social. 

De fato, ele não disfarçaria o seu desapontamento com o estado de abandono a que a Reserva fora relegada e a intrusão da população regional, à epoca estimada em cerca de 1500 indivíduos. A população indígena aí residente, por seu turno, não chegava sequer a duas centenas. Os Pataxó, por exemplo, estariam reduzidos a 23 indivíduos, divididos em dois grupos, um dos quais compreendia 3 homens, 3 mulheres e 3 crianças vivendo em uma situação-limite produzida por um contato intercultural de curta duração e grande impacto. Esses nove índios não falavam português, “anda[v]am sujos e rasgados e abandonaram toda cultura original (...)”, ao passo que o outro grupo compunha-se de uma mulher, cinco homens jovens, um dos quais casado com “uma mulatinha”, e uma criança, todos falantes do português e muito pouco da língua indígena, situação que os teria convencido de que são ´civilizados´ e melhores que os do grupo anterior, “com os quais não querem mais nem conversar” (Nimuendaju 1938:3-4). O etnólogo pressupõe que os Pataxó hãhãhãi representassem, previamente ao contato, “a camada mais primitiva” da população indígena da parte sudeste do Estado da Bahia atual, uma vez que não praticavam agricultura, não tinham cestaria e tampouco cerâmica ou canoa, e “os seus recipientes para agua e mel eram saccos de couros de macaco. Carregavam a bagagem em ayós de cordas de envira” (1971: 4).

Os Kariri-Sapuyá seriam calculadamente 130, cuja metade é considerada por Nimuendaju como mestiça, que nada mais conservava da sua cultura antiga, e cujos membros só não estariam confundidos na população neobrasileira por serem constantemente repelidos e maltratados, ao passo que na outra metade “ainda prevalece o sangue índio, se bem os índios aproximadamente puros sejam poucos” (ib.:8). Todos falavam português, à época, não conservavam palavra das línguas indígenas e tampouco “sentimento de tribu” (ib.). Todavia, o próprio Nimuendaju oferecerá informações que servirão como contra-argumento a tal conclusão, ou seja, os relatos dos “vexames e perseguições” de que teriam sido vítimas, e cujo tema favorito era a história da resistência armada e o fim dos últimos guerreiros nas caatingas do recôncavo (ib.:9). De fato, esses Kariri-Sapuyá pareciam transportados para um passado histórico remoto, como o atesta o seu convencimento de ainda existir, na Bahia, em 1938, um rei, e o sentimento, manifesto por um deles, de a situação só alterar-se positivamente com “a volta de D. Sebastião, que era índio, pois tinha o retrato delle de tanga e com flechas (imagem de D. Sebastião!)” (ib.).    

Os Kamakã teriam emigrado da sua aldeia, no Rio Pardo, distante aproximadamente 60 km em linha reta acima da Reserva, em 1932, após lhes serem usurpadas as terras, e estariam reduzidos a “duas velhas de sangue puro”, uma das quais foi enterrada no dia em que ele chegou para visitá-los, com o que restariam a velha Jacinta Grayirá, que muito se orgulhava do seu status de índia civilizada, graças ao fato de ter sido casada pelo padre na igreja de sua aldeia, ao contrário dos antigos, todos “amigados”, e 10 parentes mestiços (ib.:6). Tendo utilizado a velha Jacinta como informante, em que pese o seu “português pessimo com uma phonetica puramente Kamakã”, Nimuendaju deparar-se-ía com indicadores que aplacariam o seu desespero face ao aparente vazio cultural, como vestígios de sororato e fragmentos de mitos, concernentes ao sol e à lua, cataclismas, e “animaes que fallavam e agiam como gente”, estas últimas características próprias do denominado perspectivismo ameríndio (Lima 1996;Viveiros de Castro 1996). Possuidores de cerâmica, tecelagem e agricultura, os Kamakã foram classificados “muito acima dos Pataxó”, e para a sua cultura supunha Nimuendaju haver contribuído a cultura dos Karii-Sapuyá (ib.:7).            

Finalmente, Os Baenã, que assim eram denominados pelos Pataxó, teriam sido capturados à força pelo administrador da Reserva, e dentro em pouco todos teriam morrido, salvo um menino de cerca de 6 anos, “pegado pequenininho e que nunca aprendeu uma única palavra sequer da lingua da tribo”, e um pequeno bando composto de 10 indivíduos, que vivia fora da Reserva (ib.:9).

 

Família, povo, nação, sangue

Ainda hoje, os Kariri-Sapuyá constituem o segmento mais numeroso, seguido pelos denominados “ Índios de Olivença”, pelos Kamakã, e pelos Baenã e Pataxó. Os Kamakã são muito discriminados pelos demais, notadamente pelos Kariri-Sapuyá mais velhos, que negam que eles sejam índios legítimos e os designam ´pretões´ [8], muito provavelmente devido ao fato de muitos deles serem filhos de índios antigos funcionários do SPI, aos quais se imputa o arrendamento da Terra Indígena. Já os Baenã e os Pataxó, reconhecidamente originários de áreas da Reserva, são positivamente referidos, os primeiros sendo mesmo denominados “povo de Itaju” (um dos três municípios sobre os quais se estende a Reserva) e apontados, com certa ênfase, como tendo sido “pegados nas matas de Itaju”.  

Cada grupo étnico é apreendido como uma família, família étnica, que se afigura concebida como princípio coletivo de construção da realidade social [9], uma realidade transcendente a seus membros, um personagem transpessoal dotado de uma vida e de um espírito comuns, e de uma visão particular do mundo (Bourdieu 1993: 33). Todos parecem reconhecer que a diáspora a que foram compelidos ensejou diferenças entre as famílias, e mesmo internamente a cada uma delas, mas admitem também que a posterior reunião, a partir da década de oitenta, na antiga Reserva, teria reensejado o estreitamento dos vínculos, tornando-os um povo. O cacique geral, não por acaso um Kariri-Sapuyá, afirma, com indisfarçável orgulho, que “a família da gente é a maior que tem aqui, sempre tem alguma conversa porque tem também branco casado com gente da nossa família, então esses brancos fazem alguma dificuldade... mas os velhos são muito unidos”. Muito diplomaticamente, ele declara que a sua família é a Kariri-Sapuyá mas faz a ressalva de que todos os índios que moram dentro da Terra Indígena são da sua família, admitindo, contudo, que existem diferenças, de povo, de sangue. Nesse sentido, ele admite que os velhos da sua família étnica inclusiva, Kariri-Sapuyá, discriminam muito os Kamakã, afirmam que “aquele povo lá não é da minha família, eu não conhecia fulano de tal não, pra nós não é índio não”, e termina, completando, como se buscasse isentar-se de qualquer responsabilidade sobre o tema: “os velhos da gente têm essa discriminação”. Tal sentimento, porém, não impede a constituição de alianças estratégicas entre so dois grupos, em que os primeiros dão cobertura política aos segundos, e estes, em contrapartida, incrementam o contingente dos primeiros.

Parece haver, do mesmo modo, consenso sobre a existência de mistura, apreendida mediante a polaridade “índio puro” e “índio misturado”, neste último caso entendido como índio resultante da miscigenação com branco, categoria-síntese, equivalente a não-índio, ou ´civilizado´. O reconhecimento da mistura, por outro lado, leva à postulação defensiva, de efeito mais retórico, de que todos os moradores na Terra Indígena são iguais, pelo menos até o momento em que a sua presença não ameace a precária coesão interna e em que seja necessário tratar de assunto considerado exclusivamente pertinente ao partido indígena: “a gente não quer que o branco participe, nós fala pra eles e eles respeitam, obedecem, e é claro, na hora de representar pra fora, a gente não vai querer que eles represente a gente. Aqui dentro é uma coisa, lá fora é outra”. Dentro, a mistura, tornada inevitável e estratégica, dos pontos-de-vista sócio-econômico-e-político, é contornada e mantida em sua justa medida, sob pena de tornar vulnerável o reduto indígena, com o que índios e não-índios perderiam; externamente, ela deve ser escamoteada para evitar atitudes estigmatizantes. De todo modo, a ´pureza´ e a ´mistura´ são definidas muito circunstancialmente, não obstante a segunda acarrete maior ônus para o cônjuge feminino que se alia a não-índios. Assim, o filho de uma índia que constitui aliança com um branco é mestiço, ao passo que a prole de uma índia casada com negro e residente com a parentela do cônjuge masculino será considerada negra como o pai. Já o filho de um índio casado com negra estabelecidos na Terra Indígena, será índio. As alianças interétnicas parecem, pois, avaliadas à luz do gradiente racial (índio - branco- mestiço - negro) e a modalidade de residência (interna/externa à Terra Indígena), que, respectivamente, reduz ou amplia a distância étnica e social com os afins.

O termo nação é utilizado com acepção equivalente ao de povo. Cada povo indígena constitui uma nação, do mesmo modo que os povos negro e branco configuram nações distintas. O Brasil também é uma nação, mas, diferentemente das anteriores, auto-contidas, ela engloba vários povos/nações. “Minha nação é essa terra aqui [Terra Indígena]”, afirma um deles, que parece querer sugerir tratar-se esta de uma escolha, não obstante determinada por circusntâncias históricas: “porque a maioria do povo [nacional] discrimina a gente”. Cada povo indígena, dentro do Brasil, da nação brasileira, é uma nação, e todos são parentes. “tem separação de cultura, mas é tudo parente”. Desse modo, cada nação concerne a um povo com cultura diferente.

“Não vai me levar a mal”, diz a delicada informante, que aparentemente teme melindrar a pesquisadora, “cada povo indígena no Brasil é resistência. Cada um tem sua cultura diferente. Aqui [Terra Indígena] tem povos diferentes, eu acredito que com os Kayapó deva ser assim também, ter divisão. Logo, o Brasil é um país que tem várias nações. É uma casa de guardar esse[s] povo[s]”. As diferenças entre as nações indígenas são criticamente apreendidas. Os Pataxõ Hãhãhãi, por exemplo, já seriam muito civilizados, ao passo que outros povos talvez não o sejam. O Xingu tem muita mata, enquanto na Terra Indígena já não há; os Xavante possuem muita caça e raiz para fazer remédio, do que, no sul da Bahia, eles carecem. Os índios da Amazônia seriam diferentes porque teriam mais características indígenas, como a língua, mais ou menos recorrentemente apontada como o sinal diacrítico mais simbolicamente relevante. Finalmente, internamente às nações indígenas, predominantemente em algumas delas, visualiza-se um crescente processo de diferenciação sócio-econômica, do que resulta, entre outras coisas, a emergência de indivíduos -- “índio médico, advogado...” -- ensejada, via de regra, mas não exclusivamente, pela escolarização. Esse processo, caracterizado pela secularização das relações a que estariam mais expostos os indivíduos imersos nos contextos regional, e, ou nacional, seria distinto da simples diferenciação sócio-econômica, e principalmente política, que crescentemente ocorre nas áreas indígenas do extremo-sul baiano, onde estão estabelecidos os denominados Pataxó meridionais, e que leva alguns desses índios, por exemplo, a apreenderem “os professores formados, os caciques e as lideranças” como uma classe, cuja característica comum compartilhada é a “autoridade”, um certo quantum de capital simbólico que implica em sinal distintivo [10]. O suposto é corroborado por um outro informante, que, expressa, muito descritivamente, uma percepção de classe cujo sinal diacrítico é estarem investidos de poder simbólico os indivíduos aos quais se reconhece uma identidade de classe. Nesse sentido, classe é classe média, composta por governo, advogados, juízes, não por acaso agentes institucionais com os quais eles têm, com regularidade, estabelecido contatos. Isso talvez queira significar que, da sua perspectiva, só têm, compõem ou se organizam em classe os detentores de ´algo´ contrastante com a totalidade aparentemente homogênea -- destituída, portanto, de sinais dos quais resultem descontinuidades, clivagens -- da qual muitos afirmam fazer parte: “Porque aqui é todo mundo igual, eu acho que é assim, porque aqui é todo mundo igual, não tem um melhor que o outro. Aqui não tem classe”.       

Assim, Nação : Povo/Família, assim como Raça : Sangue. As três primeiras são, portanto, categorias intercambiáveis, enquanto a raça é antecedente -- no sentido de primária, englobante e determinada pelo sangue [11]. Tantas raças, tantos sangues: “é da raça índia.quem tem sangue índio”, assim como é negro quem tem sangue negro, e é da raça branca quem tem sangue branco. Cada raça, por sua vez, contém várias nações. Curiosamente, identifica-se uma raça não-índia, pertinente a brancos de “outro país”, que estariam organizados em nações (como a alemã, a portuguesa e etc.) 

O parentesco de sangue concerne a três níveis, ou categorias classificatórias crescentes, ou seja, aos membros da família de procriação, os parentes consanguíneos; àqueles componentes de uma determinada família étnica, ou povo; e, finalmente, ao conjunto formado pelas várias famílias étnicas, que se identificam mutuamente como parentes de sangue. “É tudo sangue índio mas tem aquela coisa de famílias. (...) tem os parentes de sangue de uma família. Há a família legítima que é a da casa (pai, mãe...) e a ´grandona´ que é povo”.

O sangue, por sua vez, parece apreendido sob a dupla perspectiva biológica e histórica, já que se lhe reconhece a possibilidade de tornar-se forte devido à experiência, “como acontece com o sangue dos que sofrem”[12]. Assim, o processo humano temporal, vivido nas experiências de homens e mulheres reais -- à semelhança das experiências vividas pelos sujeitos da classe trabalhadora inglesa, nos moldes de Thompson, sujeitos providos com uma ação estruturada, cuja consciência de classe é a forma sob a qual essas experiências (i.e., respostas emocionais e mentais a eventos) são manejadas em termos culturais (incorporadas em tradições, sistemas-de-valores, idéias e formas institucionais [13] (Thompson 1963 apud Sewll Jr. 1997:65) -- fortalece o sangue, que parece metaforizado em espírito, como ocorre também entre os Kanamari, para quem, introduzido pelo demiurgo Tamakori na criança, “já misturado com alma”, e aumentado durante a fecundação da célula sexual feminina, o sangue é indissociável da ´alma´, mesmo após a morte. Nesse sentido, só a alma do corpo, que parece se confundir com ´a carne´, morre, i.e., cessa sua atividade orgânica.

A miscigenação subverte o sistema de classificação sanguíneo-racial, e, quase inavariavelmente, enfraquece o sangue, situação só passível de ser revertida através da experiência, como já referido, dos sujeitos sociais, sujeitos ´cognoscentes´, nos termos de Giddens, seres humanos inteligentes e falantes, que refletem sobre eventos através dos quais eles vivem (isto é, têm experiências) e são capazes de agir proposital e racionalmente à base de suas experiências, dentro dos constrangimentos impostos -- inclusive aqueles decorrentes da miscigenação -- e das possibilidades abertas pelas estruturas que constituem sua subjetividade e seu ambiente (Giddens 1979 apud Swelll Jr ib.:65-6).

 Entre os Kanamari a mistura é também consensualmente encarada como um fator negativo de mudança, que, ao inviabilizar a pretendida autonomia tradicional, por eles tão reiterada, forçou a aglutinação de diferentes Djapa, a combinação de naturezas o mais das vezes antitéticas. Atualmente, quando se diz que um determinado grupo local é formado pelo Djapa X entende-se que a afirmação é apenas retórica, e que, regra geral, os -Djapa são compósitos, e que, no máximo, um determinado -Djapa só pode reivindicar a predominância da composição da qual faz parte. Esse é um fenômeno muito generalizado no âmbito da etnologia indígena sul-americana -- a consciência histórica da mistura e as conseqüências dela decorrentes -- mas antes que um fator exclusiva ou predominantemente gerado pelo contato, parece internamente motivado, resultante da natureza dos próprios grupos locais.

Vários povos indígenas na região do sul-baiano, como vimos anteriormente, a exemplo dos chamados índios da Pedra Branca, são o resultado de composições históricas, determinadas por fatores o mais das vezes obscuros. Neste caso específico, tratar-se-ía, tradicionalmente, dos Camuru, posteriormente denominados Kariri, e os Sapuyá, ambos pertencentes à família linguística Kariri. Os primeiros teriam, originalmente, vivido na aldeia da Pedra Branca, ma porção sul do recôncavo, e a eles se imputa uma trajetória caracterizada por estreito relacionamento com a instituição militar, durante o governo colonial, na condição de soldados utilizados na captura de escravos foragidos e na repressão a quilombos. Já os segundos, cuja reputação era de índios refratários à igreja e aos poderes seculares, viviam no povoado Caranguejo, um quarto de hora mais ao sul. Os dois grupos comporiam, em 1818, de acordo com os naturalistas alemães Spix e Martius, em visita à região, um contingente de “600 almas” (Spix e Martius 1976:121). Em data, provavelmente incidente entre a visita dos dois sábios e o início da década de trinta, foram reunidos em um só local, presumivelmente nos limites da légua em quadra doada pelo governo colonial, e, já fundidos, seriam os protagonistas de um ´ciclo de revoltas´, que, ao longo de quatro décadas abalaria as instituições e suscitaria forte repressão (Carvalho 1995). Com o seu estabelecimento na Reserva Caramuru-Paraguassu, ocorreriam fissões, em períodos distintos, como as registradas nas décadas de quarenta e noventa. Nas terras dessa Reserva, ademais, a distribuição das várias famílias étnicas é um exemplo bastante ilustrativo dos processos de fusão/fissão que têm tido lugar, e os quais só parecem afetar menos intensamente os Baenã. O mosaico interétnico resultante é, sob muitos fatores, similar àquele dos Kanamari do médio curso do Juruá e alto curso do Jutaí, e a atual distribuição espacial dos primeiros, em locais distantes uns dos outros, nas fazendas que vêm sendo, em momentos sucessivos, retomadas, pode ser considerada análoga àquela dos segundos, em pontos distintos dos cursos desses dois rios -- pontos esses em geral denominados, à moda regional amazônica, de colocações (conjunto de casa e estradas de seringas) -- salvo pela miscigenação com não-índios, quase aí absolutamente ausente [14]. Vale observar, ademais, uma outra diferença significativa, incidente na postulação de uma origem comum, mítica e étnica, pelos -Djapa contemporâneos, e origens diferentes declaradas, e apoiadas historicamente, pelos índios do sul baiano.  

Itaju do Colônia

Pau Brasil

Índios Baenã

Faz. X ( Kariri-Sapuyá/ìndios de Olivença/Kamakã/Baenã [15])

 

Faz. Y  (Karir-Sapuyá/Kamakã [16])

 

Faz. Z  (Kariri-Sapuyá [17]

 

Faz. D  (Kariri-Sapuyá [18] e Baenã)

 

Faz. E  (Kariri-Sapuyá e Kamakã

 

Faz. W  (Kariri-Sapuyá retornados de Nova Vida

 

Faz F  (Kariri-Sapuyá, Kamakã, Baenã e Índios de Olivença [19]

O leitor mais atento dar-se-á conta da ausência, no quadro, dos Pataxó. De fato, nenhum indivíduo, no recenseamento realizado por Souza, em 1999/2000, se identificou como Pataxó. Para tal aparente subsunção, a hipótese de Souza é que eles estariam sendo incorporados pelos Baenã. Ademais, poderiam estar deixando-se subsumir por estes para não serem confundidos com os Pataxó meridionais (Porto Seguro e adjacências), que, embora em número reduzido,  distintos momentos e razões, têm se deslocado para a Reserva Caramuru-Paraguassu, aí se distribuindo muito dispersivamente, ao contrário da distribuição concentrada dos grupos locais. Tal Baenização, se efetivamente comprovada, será tanto mais interessante se levarmos em conta que os Pataxó foram assim denominados pelos Baenã. Násser e Silva (1983) já haviam registrado o grande isolamento físico e social desses índios, só rompido pelas alianças constituídas com os Baenã.   

 

Corpos, gênero, sangue

A centralidade do corpo, assim como da noção de pessoa apreendida através do idioma da corporalidade, há muito foram estabelecidas para a região amazônica (Kaplan 1976; Seeger et al 1987; Viveiros de Castro 1987a, 1987b), e parece prevalecer pleno consenso em torno da afirmação de que os meios de troca das culturas amazônicas são pessoas e seus estados corporais (Gow s/d.:3) e de que “(...) as pessoas são, em grande parte, aquilo que comem (...). O consumo é a forma privilegiada de transformação do corpo (...)” (McCallum 1996b:76). Os Kanamari subscrevem inteiramente a teoria, ao formularem a sua concepção sobre o desenvolvimento do feto e da criança mediante a estreita relação alimento - sangue, que, como vimos acima, tem no koya a sua principal fonte nutritiva. Se, no princípio, o feto alimenta-se através da produção do sêmen induzida pelo alimento vegetal cozido, o recém-nascido o fará mediante o leite materno, e ambos, sêmen e leite materno, concorrerão para aumentar a porção de sangue que o próprio feto contém. Sem o sêmen, o sangue do feto não aumenta, e, conseqüentemente, o feto não cresce, do mesmo modo que a criança que não mama o leite materno não terá o sangue aumentado, e, por extensão, não crescerá. Subjacente a tal concepção está o suposto de que o sangue da pessoa cresce até ela atingir a idade adulta, o que, por sua vez, está na estrita dependência da comida com que ela se alimenta (“o sangue vai crescer porque a comida está ajudando”)

As pessoas que foram formadas do mesmo sêmen ou leite são parentes entre si, consangüineamente vinculadas, enquanto, complementarmente, presume-se que os afins foram engendrados por substâncias distintas. O sêmen e o leite são, pois, análogos, e o processo masculino exclusivo de formação fetal é replicado pelo processo feminino de amamentação infantil, no qual o leite mais saudável é também resultado da ingestão de caiçuma. Todos os Kanamari são unânimes em declarar que não há restrições a mulheres amamentarem outras crianças que não seus próprios filhos desde que os pais sejam Djapa mas que há resistência a fazê-lo nos casos em que não o sejam, porque haveria mistura de sangues diferentes, já que a lactante receberia uma porção de sangue de uma pessoa estranha, de quem não é parente em sentido estrito. De todo modo, admitem que a recusa taxativa só ocorre nos casos em que a mãe está viva, mas eventualmente impedida de amamentar, sendo removida em situações de morte, quando, aparentemente, o sentimento de solidariedade se sobrepõe às representações ligadas à lactação e ao ´parentesco de sangue´.

Por outro lado, supomos que o fato de o ritmo fisiológico feminino ser mais determinante do que o masculino tende a impor às mulheres certo número de condicionamentos que inexistem para os homens. A ausência de filhos para um casal kanamari é imputada à responsabilidade feminina, o que faz sentido no âmbito de uma ideologia em que, não obstante o homem seja o fabricador, é através, notadamente, do leite (sangue) materno que a criança se desenvolve e atinge a idade adulta, o que parece gerar o sentimento de que os filhos pertencem às mães, de que a díade mãe-filho, como parece ser a tendência universal, é a mais prevalente, física e afetivamente, Não ter filhos, pois, é, quase automaticamente, pelo menos na cena pública, decorrência de alguma disfunção feminina, não parecendo admitir-se a possibilidade de se o considerar relacionado a alguma restrição masculina

 Entre os índios do sul da Bahia, o idioma da corporalidade parece desempenhar também papel crucial, não obstante devamos investir mais tempo na investigação desse tema, aqui também sendo possível afirmar que a comida transforma os corpos, fortalecendo-os ou enfraquecendo-os. Prevalece uma certa especificidade alimentar conforme a origem do grupo local, do mesmo modo que restrições, mesmo privações, decorrentes, em determinados casos, da mudança de hábitos alimentares, e, regra geral, da penúria alimentar a que têm sido submetidos. O par sangue-alimento é o responsável pelo crescimento do imaturo e estão em uma relação recíproca com o sêmen e o leite materno, concorrendo para tornar o sangue forte. Os parentes consanguíneos resultam da combinação de um mesmo sêmen e leite materno, tanto mais ´puro´ se procederem de parentes de sangue. Certos casos de casais sem filhos são muitas vezes imputados à incompatibilidade dos sangues (“o sangue do marido com o da mulher não combina”).

A trajetória de Apinhaera/Nete, uma índia Pataxó meridional, que se apresenta como professora de cultura, hoje estabelecida em Minas Gerais, no município de Carmésia, é similar a outras trajetórias construídas na diáspora. Quando o pai morreu, ela estava como 7 anos, e até essa data afirma ter ouvido muitas histórias, “guardado muita coisa”. Ela saiu de Barra Velha, considerada a ‘aldeia-mãe” por esses Pataxó, com 17 anos, e, mais recentemente, teve oportunidade de aprender a ler e escrever, e ensinar. E, envolvida nesse processo, passou a valorizar, crescentemente, os distintos ítens da cultura Pataxó. Como a sua comida, comida cultural, composta de peixe e farinha, que ela considera urgente transmitir, valorizada, aos jovens. A comida, como o artesanato, como as histórias, como as atividades produtivas, compõe o seu acervo cultural, é “ciência, costume, tradição”, que, embora todo Pataxó traga de dote, é bom passar para os filhos. É de acordo com essa concepção que ela postula, como tantos outros povos indígenas localizados no nordeste, um ensino diferenciado, que tome em conta a cultura indígena, pois, “se a gente deixar nossos filhos aprender só o conhecimento do branco, o sangue fica índio mas o costume é do branco. No âmbito dessa rica experiência, ela re-orientou o sistema de habitus da filha, notadamente a sua dieta alimentar, estimulando-a a fazer uso da comida cultural, com o que, conclui, “a gordura dela ficou fortalecida”, assim como reorientou a sua própria identidade, etnizando-a e rejeitando designativos estigmatizantes. Assim, ela exorta todos a não aceitarem mais “chamar a gente de caboclo”, “não aceitar essa ilusão”. Igualmente, ela e outro professor de cultura, Mugangá, estavam, à época em que os conhecemos, em dezembro de 1997, liderando um profícuo movimento revivalista, no qual as reelaborações culturais se sucediam, criativa e pragmaticamente voltadas para o fortalecimento do costume pataxó. Com orgulho, eles anunciavam possuir o auê de mandioca, da alegria, cântico para fartura e união, e observavam que, na hora de a mulher parir, realizam o ritual propiciador de um bom parto, no âmbito do qual o auê constitui ítem fundamental (Carvalho & Sampaio 1997:2-3).     

 

A recorrência do sangue em um contexto não-indígena

A categoria sangue está também presente no universo representacional amazônico não-indígena, dos denominados kariw, termo que abrange todos aqueles que não se auto-identificam e não são identificados como índios. Os kariw afirmam que os primeiros habitantes, ou colonos, foram os índios, que viveriam, à época, sem trabalhar, às custas da exploração do pau-rosa [Aniba roseodora Ducke, árvore de certas áreas da floresta amazônica]: “no tempo que existia o pessoal por nome colonos, a geração que existia justamente era a dos índios. Nesse tempo eles não trabalhavam, a produção que existia era o pau-rosa. Os primeiros habitantes, tá quase declarado, foram os índios”. Igualmente eles afirmam partilhar com os índios, notadamente com os Kanamari com os quais estabeleciam contato, em situações variadas -- seja como mão-de-obra terceirizada para a PETROBRÁS, oriunda de Manaus e Belém, e de povoados localizados nas cercanias das duas capitais, seja como quase-vizinhos, dada a relativa proximidade física -- a mesma humanidade, apesar da língua que os separa. Os caboclos civilizados e os índios, de acordo com a sua concepção, formariam duas classes, classes de sangue, a primeira das quais guardaria estreita proximidade com a classe composta pelos kariw. Além disso, um outro fator é apontado como distintivo: o modo de pensar ou mentalidade, que é associado ao trabalho. Não trabalhar eqüivale a não ter pensamento, ou não ter mentalidade. “Do jeito que eles são humanos, a gente é. Eles têm essa ilusão de chamar a gente kariw porque a gente é civilizado. Pelo menos a gente fala o português claro e eles têm o sotaque deles. Pra eles é o maior prazer chamar eles de caboclo. Inclusive esses daqui não querem mais nem ser índio não. Índio pra caboclo tem diferença. O índio é índio mesmo, pelo menos todo índio tem o seu sotaque, tem a sua classe de gíria. Ele é formado assim mais ou menos, convive em tribo. E o caboclo quase todo o Amazonas é composto. Tem o caboclo civilizado, justamente é quase a nossa classe, e tem o índio que é da classe dele, eu tenho pra mim que seja outra classe de sangue. Hoje em dia [1985] os caboclos daqui, os Kanamari, tão tendo uma mentalidade, uns já trabalham muito, mas logo que nós chegamos aqui não trabalhavam quase não, não tinham pensar”.

O conjunto composto pelos índios, independentemente do seu grau de contato com os não-índios, é visualizado como internamente dividido sob a forma de classes, de acordo com os mesmos princípios básicos que regulariam a divisão prevalecente entre os não-índios, o que parece fortalecer o sentimento de pertinência a uma mesma humanidade. Muito freqüentemente, o termo nação é utilizado como equivalente ao de classe e com o mesmo sentido conotado por este, isto é, divisão nacional, regional, e, ou étnica. “Os Kulina é uma classe e os Kanamari é outra. Eu acho que seja. Nós todos somos do Amazonas, né? Aqui nós somos amazonenses e tem o Acre, é Amazonas, mas lá chama os acreanos e aqui os amazonenses. Do mesmo jeito acontece ser a separação dos índios, do mesmo jeito que tem a separação nossa eles fizeram a deles. Kariw tem estrangeiro, peruano, outras classes, cearense... Por isso eles fizeram a separação deles. Daí tem muitas qualidades: Kanamari, Kulina, Kaxinawá, Tukano, Tikuna e outras qualidades que a gente não conhece”.

Da mesma forma, a denominada classe dos caboclos apresentaria divisões internas, ou ´qualidades´: caboclo de baixo, caboclo índio e caboclo amazonense. O caboclo civilizado seria o quase branco, interposto entre o caboclo índio e o caboclo amazonense. “Tem muita qualidade de caboclo. A primeira nação que foi vingada foi de caboclo. Tem os caboclos de baixo, esses caboclos da beira do Solimões. Tem o caboclo índio e tem o caboclo amazonense, que somos todos nós. Caboclo índio é esses daqui [Kanamari]. Eu não sou caboclo índio nem caboclo de baixo, sou caboclo amazonense.É diferente porque o caboclo índio é desterrado, vive na mata, o amazonense não...”.

Uma outra interessante distinção é formulada entre sabedoria (saber) e entendimento (entender). O segundo constituiria uma prerrogativa dos que sabem trabalhar, atributo inerente aos kariw, e a sabedoria, representada pela língua e pelo domínio da flora, seria uma qualidade peculiar aos índios. “Ìndio tem saber e kariw entendimento. O entendimento que nós temos mais do que eles é porque nós sabemos trabalhar, nós trabalhamos num canto, nós tratamos de zelar aquilo. Agora eles têm mais saber do que nós, nós falamos só uma língua e eles falam na nossa e na deles [20]. Eles sabem de bebida do mato, de veneno”.

A maioria dos kariw negava que persistam, à época, grandes diferenças a afastá-los dos Kanamari. O contato teria ensejado a estes a incorporação das duas principais virtudes das quais originalmente estavam privados: o trabalho e o entendimento. Tornados iguais no âmbito do que é considerado essencial pela ideologia dominante, poderiam compartilhar, agora, a mesma terra criada por Deus, é a conclusão lógica, compatível com os seus interesses, que eles expressavam na década de oitenta, quando era iminente a sua retirada da área indígena, finalmente concretizada na década de noventa: “Não tem diferença de caboclo pra kariu, é a mesma coisa. Porque a terra que Deus deixou foi pra nós todos. Então, do mesmo jeito que nós temos parte, eles também têm. Trabalham também do mesmo jeito, agora antigamente trabalhavam mais pouco, não trabalhava, mas agora todo caboclo trabalha. Chamava caboclo porque era tolo e nós de kariw porque nós tínhamos entendimento, mais entendimento”[21].

 

  À guisa de conclusão

Esperamos haver demonstrado para o leitor a articulação entre as três dimensões pretendidas, tendo como conexão entre elas a categoria sangue. A literatura antropológica comprova quão recorrente é a noção de sangue, articulada com as de raça, família, consangüinidade e pessoa, entre distintos grupos sociais. Ovídio de Abreu, por exemplo, realizou pesquisa pioneira em estratos médios de Minas Gerais, para os quais o sangue é também considerado “substância transmissora de qualidades físicas e morais, formando corpo e caráter” (Abreu 1982:98). Entre as famílias médias mineiras estudadas parece também prevalecer a concepção de uma natureza, que forja a identidade do indivíduo, cuja trajetória se constitui em meio à tensão entre a consangüinidade, e sua tendência totalizadora, e a afinidade, e sua tendência para a individualização (cf. Reesink 1999:195). De todo modo, o indivíduo é englobado pela tríade “sangue, nome da família e raça”.     

Louis Marcelin, trabalhando entre negros do Recôncavo baiano, observa que a ordem da casa corresponde, entre outros princípios, aos que governam as relações entre gêneros e gerações (1999: 34), e que a condição de existência de toda pessoa é a família: “Todo indivíduo herda, pelo sangue, características positivas e negativas do pai e da mãe, os quais herdaram dos seus respectivos pais, e assim por diante. (...)” (ib.:40). Por sua vez, a uma pessoa podem ser transmitidos dois tipos de sangue, um bom, ou um ruim, o primeiro o sendo, em geral, às pessoas da raça branca, que, em conseqüência, têm mais raça do que os negros; em contrapartida, quanto mais características fenotípicas negras tenha um indivíduo mais ele será considerado ruim (ib.:44). Nesse sentido, o sangue, além de uma substância biológica, funciona como uma referência moral, metafórica, que opera as classificações, prescrevendo as relações, ao tempo em que ultrapassa o domínio do parentesco e transforma-se em princípio de classificação sócio-cultural (ib.). 

Assim, entre os agentes negros estudados por Marcelin, a raça constitui também uma qualidade do sangue, face ao que, segundo esses agentes, “o negro deve construir-se cotidianamente, não só como semelhante, mas também como diferente, alguém que sempre tem alguma coisa para provar”: Olhe”! A classe mais complicada: professor, negro e juiz. (...)”(ib.:43).

Reesink, em texto apresentado neste mesmo Simpósio, e à luz de um espectro empírico-teórico amplo, refere ao sangue como principal vetor constitutivo do corpo, e introdutor de um valor diacrítico entre os  gêneros, para concluir que na construção do corpo e da pessoa se intersectam as construções de gênero, família e raça (Reesink 2000). Finalmente, e retomando o nosso contexto etnográfico, Curt Nimuendaju, com sua obsessão culturalista, constitui um bom exemplo de como um olhar antropológico pode, ao utilizar tais categorias de modo excessivamente substancialista, apreendê-las como auto-evidentes, à maneira do senso comum.

 

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* Nordeste, vale observar, tomado em sentido etnográfico, e não geográfico.

[1] As autoras são, respectivamente, professora adjunto do Depto. de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, e bolsista IC do CNPq no âmbito do Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro-PINEB, do Depto. de Antropologia/PPGCS da FFCH-UFBA.

[2] Wilkens de Mattos, na condição de Diretor de Terras da Amazônia, relata, em 1858, que o Diretor dos Índios do Juruá, João da Cunha Corrêa, fez, neste mesmo ano, uma excursão no rio, e que teria providenciado o deslocamento, para o médio Juruá, de migrantes cearenses, e os utilizara na extração da borracha (Mendonça 1989:191). Por outro lado, em 1837, no decorrer da Cabanagem (1835-1841), justamente em uma fase em que a rebelião ter-se-ía deixado conflagrar por conflitos étnicos pré-existentes entre os índios Munduruku , que geralmente davam suporte aos legalistas, e outros grupos indígenas, que estavam desinteressados na política da Cabanagem mas extremamente interessados em obter armas e bens mercantis, seja por pilhagem ou aliança militar temporária, teria havido o massacre de cerca de 40 habitantes da ex-aldeia missionária de Aveiros por um grupo de rebeldes conduzidos por Jacó Patacho, “uma forma portuguesa de Pataxó, um nome indígena” (CLEARY 1998:129).

[3] Neves chega a contabilizar 28 -Djapa atuais (1996:166-7), ao passo que Reesink afirma poder enumerar-se mais de 20 (1993:38).

[4] Na comunicação externa, regional, eles se autodesignam Kanamari.

[5] Quando indagados, pelos não-índios, pela nação a que pertencem, eles respondem, prontamente, que pertencem à nação Kanamari. Do mesmo modo, em certos momentos, eles parecem apreender cada -Djapa como nação, porque, de acordo com a sua expressão, se trataria de outro caboclo, outra gente, que vive separada e não está misturada. Na sua feliz expressão, “cada um é outro”. 

[6] Nação, pois, na mesma acepção que tem nas línguas européias, i.e., um grupo de pessoas ligadas pela ascendência, língua ou história compartilhadas a ponto de formarem um povo distinto (Matory 199:60).

[7] Família étnica.

[8] Nimuendaju observou que os Kariri-Sapuyá teriam desenvolvido, “apesar do cruzamento”, um forte sentimento de raça, dividindo a humanidade em duas partes: (1) “Nós índios, seja qual for a descendência; e (2) “os contrários”, ou o resto da humanidade (1938:9).

[9] Princípio que é, por sua vez, ele mesmo socialmente construído e comum a todos os agente socializados de uma certa maneira (Bourdieu ib.:33).

[10] Vale a pena atentar para a distinção postulada por Pierre Bourdieu entre sinal distintivo e sinal de distinção, quando este autor observa que a distinção não implica necessariamente a procura de distinção. “Todo o consumo e, mais geralmente, toda a prática, é conspiuous, visível, quer tenha sido ou não realizado a fim de ser visto; ele é distintivo, quer tenha sido ou não inspirado pela intenção de dar nas vistas, de se singularizar (to make oneself conspicuous), de se distinguir ou de agir com distinção. Como tal, está condenado a funcionar como sinal distintivo, e, quando se trata de uma diferença reconhecida, legítima, aprovada, como sinal de distinção (...)” (Bourdieu 1989: 144). 

[11] Parece tratar-se de um sistema de classificação socialmente construído. Como bem observa Cleary, a terminologia racial é similar à terminologia de parentesco: “não tem referente biológico, embora inevitavelemente postule status ´natural´, e não reflete uma diferença objetiva entre populações humanas. (...)” (Cleary 1998:110).

[12] A experiência – histórica, concreta – ativa o princípio do sangue, tornando-o eficaz (Marcelin 1999:42).

[13] Vale notar, porém, embora isso não seja tão importante para o nosso argumento, que Swell Jr. considera o conceito de experiência de Thompson amorfo e supõe que as noções de Giddens de ação e estrutura provêm um melhor pivot teórico para a explicação de Thompson da formação de classe. Ele lembra que Giddens incorpora o que é útil na ´experiência´ de Thompson, ao insistir que os seres humanos estão constantemente engajados em ´monitoramente reflexivo´, tanto de suas próprias, quanto de outras ações, e que sua conduta e compreensão da vida social resultam desse monitoramento reflexivo. Mas essa teoria incorpora a experiência sem mistificar a relação entre ação e estrutura, em larga medida porque Giddens desenvolve uma alternativa ao reificado conceito Stalinista ou Althusseriano de estrutura, enquanto Thompson critica esse conceito mas não propõe nenhuma alternativa (Swell Jr. 1997: 65).

[14] O único caso de casamento com não-índio, registrado em 1984, pode ser considerado excepcional já que envolvia uma agente da OPAN que vivia com um dos grupos locais no alto Jutaí.

[15] Dois, dos sete grupos-domésticos, têm cônjuge não-índio.

[16] Trata-se de um único GD.

[17] Dos seis GD, dois têm cônjuge não-índio.

[18] Alguns desses Kariri-Sapuyá são produto de uma divisão faccional, ocorrida na década de quarenta, quando uma parte se dirige, em vagas sucessivas, para a área Maxakali, em Minas Gerais. Retornam anos depois, estabelecendo-se, uma parcela, em uma nova área, externa à Reserva, denominada Nova Vida, adquirida pela FUNAI, ao passo que uma segunda parcela fixa-se aos fundos da fazenda Sâo Lucas, a primeira e maior Faz. retomada.

[19] Essa Fazenda é o grande reduto das lideranças políticas. Aí estão estabelecidos o cacique e uma liderança Kariri-Sapuyá, e mais três lideranças, sendo duas de Ìndios de Olivença e uma Kamakã .

[20] Aludindo ao fato da maioria dos Kanamari ser bilingue, um jovem não-índio observou que os kariw são assim denominados porque são falantes de uma só língua -- “a fala da gente é uma só” -- ao passo que os Kanamari “multiplicam o nome por causa da fala. Multiplicam mais, em vez de fazer um nome só, faz mais...”.  

[21] Reesink assinala, para o contexto não-indígena do norte da Bahia, a percepção de que os índios, não obstante “sabido como for”, são diferentes, “porque a natureza do índio é diferente da natureza do civilizado” (1999:195).