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Grupo de Trabalho 1
Natalidade, nação e raça no Brasil a partir das especialidades médicas em torno de sexo e reprodução

Fabíola Rohden [1]

            O médico, especialmente aquele que trabalha em áreas ligadas à reprodução como é o caso do ginecologista e do obstetra, contribui de maneira singular no processo que transforma o sexo e a reprodução em um assunto de Estado. Nas primeiras décadas deste século, o forte tom nacionalista que imperava em muitos países, inclusive no Brasil, tinha como uma de suas implicações uma preocupação mais acentuada com a população. O crescimento do número de cidadãos adquiria uma importância estratégica tanto no que se refere à garantia da soberania, através do poder militar, quanto na implantação da atividade industrial e do mercado em larga escala. A quantidade e também a “qualidade” do povo que compunha uma nação provocavam cada vez maior interesse.[2]

            Este fato pode ser exemplificado com o artigo publicado no Brazil Medico em 1912 a respeito do Congresso de Eugenia realizado em Londres no mesmo ano. Neste texto, a eugenia é definida como “a ciência que estuda os meios de aperfeiçoar a raça humana, pelo melhoramento do vigor e da saúde da prole” (Brazil Medico 1912:358). É apresentada como uma aspiração antiga que no momento passava a ter a vantagem de envolver processos científicos através dos quais se estudavam as causas da decadência da raça e os remédios adequados. Uma questão fundamental para os eugenistas era “o impedimento da procriação por parte dos sujeitos que, por doença ou defeito transmissíveis por herança, só podem dar ao mundo filhos também doentes e defeituosos” (Brazil Medico 1912:358). Neste contexto, a iniciativa de vários estados dos Estados Unidos que formulavam leis de esterilização dos degenerados era vista com admiração. Comenta-se ainda que o “animal humano” tem sofrido o mais cruel abandono enquanto que para os outros animais se tomam providências para a obtenção de produtos vigorosos e de raça pura. No caso do homem, dá-se liberdade aos degenerados para que propaguem a sua espécie doentia, criminosa e malfazeja. Perpetua-se hereditariamente a imbecilidade, a loucura moral, a paranóia, a epilepsia, o cretinismo e a delinquência profissional. O artigo termina propondo que também sociólogos e legisladores atentem para a necessidade da esterilizacão dos degenerados e deficientes porque “já é tempo que para na procriação do animal humano se tome um pouco daquele cuidado que tão prodigamente se dispensa aos outros animais chamados de ‘raça’, como se o homem não devesse ser o de raça mais fina e pura” (Brazil Medico 1912:359).

            Em 1916, a Revista Syniatrica também defendia a esterilização. O argumento central do artigo girava em torno da idéia de que não bastava apenas a reforma das leis do matrimônio em prol da saúde dos que estavam para nascer. Era preciso colocar os indivíduos doentes e perigosos para a sociedade em absoluta impossibilidade de procriar, recorrendo à esterilização. Desta forma, tuberculosos, doentes mentais, epilépticos, imbecis, paralíticos, alcoólicos crônicos, além de delinquentes, não se reproduziriam mais. O sucesso dos Estados Unidos neste empreendimento mais uma vez é louvado (Revista Syniatrica 1916:77-78).

            Também nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro encontram-se referências à esterilização. É o caso, por exemplo, do trabalho Da esterilização de anormais como fator eugênico defendida por Manoel Tavares Neves Filho em 1921. O autor faz referência a uma extensa bibliografia que passa por Morel, Magnan, Krafft-Ebing, Malthus, Galton e Renato Kehl, entre outros. Também menciona as diversas instituições internacionias e nacionais que se dedicavam aos fins eugênicos. Distingue as três partes da eugenia: a positiva, favorável às procriações sãs; a negativa, contrária à procriação dos anormais; e a preventiva, que cuida dos fatores disgênicos. Faz um histórico do uso da esterilização que no momento passava a comportar o objetivo preciso de “impedir a perpetuação da classe inútil dos idiotas, imbecis, amorais e criminosos constitucionais, elementos negativos na formação das Sociedades Modernas e no progresso das nações que trabalham” (Neves Filhos 1921:14). Nota-se aqui a associação entre eugenia, modernidade, nação e trabalho, que constituiria um dos elementos fundamentais do discurso médico da época.

            O autor constata que, enquanto nos Estados Unidos, muito se tem feito em favor da eugenia, no Brasil, país de imigração, cruzamentos intensos, promiscuidade, muito pouco se tem avançado. O número de anormais tem se tornado assustador, indicando que se estaria atravessando uma verdadeira onda avassaladora de degeneração, já que os indivíduos indesejáveis se reproduzem muito mais rapidamente que os normais. Neves Filho adverte que este é um problema de saúde pública e defende que: “Assim como fazemos a profilaxia da imigração, no afastamento dos ‘indesejáveis’, deveríamos também fazer profilaxia da degeneração, no combate à proliferação dos nossos ‘indesejáveis’” (Neves Filhos 1921:21). O autor admite que as medidas eugênicas têm motivado críticas, entre as quais se destaca a concepção de que a esterilização é desumana. Contrapõe-se a isto, reafirmando que a eugenia é um salutar meio de aperfeiçoamento e que a “indicação científica” constituiria uma garantia contra os abusos (Neves Filhos 1921:33-36). Mais uma vez, a noção pouco nítida de indicação científica, que inclui exames feitos por um antropologista, um psiquiatra, um clínico e um cirurgião, parece resolver o problema, deixando as decisões na mão dos médicos e cientistas.

            Se recorremos às páginas dos Annaes Brasileiros de Gynecologia, veremos que a preocupação desta especialidade médica com a eugenia era também bastante considerável. Esta revista, de periodicidade mensal, foi fundada por Arnaldo de Moraes em 1936.[3] No editorial publicado no primeiro número, é definida como uma obra de cunho exclusivamente científico e como o órgão oficial do ensino da clínica ginecológica [4] da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Faculdade Fluminense de Medicina. Também se faz referência à abrangência dos temas tratados, incluindo explicitamente o campo eugênico: “Também terá acolhida em suas folhas tudo o que se relacione com qualquer problema mesmo extragenital da patologia feminina, quer no campo endócrino-metabólico, quer no campo psicológico, psiquiátrico, biológico, genético e eugênico.” (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1936:1).[5]

            A quantidade de artigos e resumos de publicações, especialmente alemãs, que se referem à eugenia e em particular à esterilização é bastante considerável. Somente no primeiro ano (1936: volumes I e II), encontram-se dez textos que tratam do tema da esterilização. Ao mesmo tempo, destacam-se também os artigos em torno do problema da esterilidade e da proteção à maternidade.[6]

            No mesmo ano, a revista publica um extenso artigo do dr. Francisco de Carvalho Azevedo,[7] onde a esterilização era um dos temas discutidos dentro do problema mais geral da “concepção consciente”. Este artigo é bastante revelador das tensões entre diferentes posições em curso na época. O autor utiliza como epígrafe trechos de Fernando Magalhães, que fala da maternidade consciente, de Arnaldo de Moraes, sobre o papel do médico que deve instruir o casal sobre os meios de evitar a gravidez quando há indicação científica, e de Afranio Peixoto, que sugere que para evitar o aborto deve-se recorrer ao “mal necessário” da anticoncepção. Azevedo diz que estas citações são verdadeiras profissões de fé e afirma que o problema da concepção consciente envolve conflitos de natureza científica, moral e religiosa. Passa a falar então dos modernos estudos de Ogino e Knaus sobre a fisiologia da reprodução humana e do esclarecimento que trazem sobre pontos obscuros envolvendo os fenômenos da ovulação. Através deles, ficou provada a existência de uma época da fecundidade e outra da esterilidade dentro do ciclo menstrual da mulher. Isto resolveu o problema da concepção do ponto de vista científico. Da perspectiva da religião, pode-se dizer que a Igreja condescendeu na aplicação da continência periódica em circunstâncias especiais. E em termos morais, o método natural conquistou a aprovação mesmo daqueles que condenavam as práticas neo-malthusianas e o aborto criminoso (Azevedo 1936:255-257).

            O autor explica que vinha procedendo o estudo do método de Ogino-Knaus há quatro anos, recomendando-o nos casos cientificamente indicados, o que totalizou mais de 50 experiências. É com base neste trabalho, e diante da “inexistência de outra contribuição nacional documentada sobre o assunto”, que apresenta as suas conclusões. Azevedo explica que o método de Ogino-Knaus pode ser aplicado não só na regularização ou controle da natalidade mas também no sentido positivo, favorecendo a concepção. Também facilita a determinação da duração da gravidez e a data provável do parto, o que pode contribuir para a pesquisa médico-legal da paternidade. Contudo, o autor se mostra bastante preocupado em fazer a distinção entre este método e outros meios empregados no controle da natalidade:

“Enquanto o método natural de regularização da concepção pela continência periódica salvaguarda a função procriadora tal não sucede com o arsenal neo-malthusiano, cujas práticas artificiais e malsãs aniquilam a capacidade geradora e favorecem a esterilidade definitiva.
Entre o método de Ogino-Knaus e o chamado Neo-Malthusianismo há um insondável abismo.” (Azevedo 1936:475).

             Segundo Azevedo, o ginecologista de Flensburgo, Messinga, em 1882, aproveitando-se da confusão causada pelas idéias de Malthus, propôs resolver o problema da restrição da natalidade mediante o emprego de um pessário vaginal oclusivo. Com ele teria nascido o neo-malthusianismo. Em 1883, combatendo o neo-malthusianismo, Capellmann apresenta a continência periódica como a verdadeira solução que conciliaria a ciência e a moral. Seu método não teve grande sucesso e as práticas artificiais tomaram maior impulso. Para o autor, apesar da oposição dos moralistas, da repulsa dos teólogos e da advertência dos médicos, não estava mais sendo possível conter a avalanche da propaganda anticoncepcional, elaborada pelos leigos: “Não encontrando eco no meio científico encarregam-se os leigos da difusão das doutrinas subversivas, inventando novos meios, criando jornais, fundando postos de consulta anticoncepcionais.” (Azevedo 1936:476). Diante dessa situação, os médicos tomaram uma nova posição:

“Em face do mal inevitável da anticoncepção resolveu a classe médica encarar o lado científico do problema. Pela imprensa, pela tribuna, pela cátedra, vozes autorizadas manifestam suas opiniões. Publicam-se livros, reúnem-se congressos. E os laboratórios trabalham ativamente procurando analisar e descobrir na química moderna o melhor meio espermicida.

E após tanto trabalho perdido ressalta a opinião unânime de que o meio anticoncepcional ideal está por descobrir e que todos os métodos retirados da física (raios X e radium), da mecânica (condom, pessários, esteriletes), da química (lavagens, velas e supositórios antissépticos) e da biologia (hormônios) ou falham fragorosamente ou arruinam gravemente a saúde.

O método de Ogino-Knaus, provado pela ciência, aconselhado pela moral, tolerado pela religião, é inatacável e é o único que resolve maravilhosamente todas as faces do angustioso problema da concepção consciente.” (Azevedo 1936:476).

            É possível perceber como Azevedo é cuidadoso em explicar porque, historicamente, a medicina chegou a se dignar a tratar da questão da anticoncepção. Certamente não devia ser fácil e generalizada a aceitação de um médico que se dedicasse ao assunto. Tentando se desvincular do neo-malthusianismo, ele esclarecesse que estava do lado da moral, da religião e da ciência. E para ele, a contracepção deveria ser aceita nos casos em que houvesse “indicação científica”. Azevedo recorre ao que foi proposto nas Jornadas Eugênicas Espanholas para definir estas indicações, que seriam as seguintes:

“1o) Indicação eugênica – Quando os pais sofrem doenças transmissíveis aos filhos por herança ou congenitamente.

2o) Indicação social ou econômica – Quando a sua situação econômica não lhes permite criar e educar os filhos por nascer.

3o) Indicação médica – Quando a saúde da mulher periga com a concepção.

4o) Indicação sentimental – Quando existe o desejo de não ter filhos.” (Azevedo 1936:477-478).

            Azevedo reafirma a idéia de que o método de Ogino-Knaus deve ser empregado sempre que “razões de índole médica ou eugênica aconselhem a esterilização provisória ou definitiva” (Azevedo 1936:48). Fala dos casos que ele mesmo recomendou a contracepção a partir de indicações como: multiparidade, passado obstétrico acidentado (cesarianas), práticas anticoncepcionais artificiais e abortos criminosos. Estas indicações são também de natureza bastante ampla, incluindo desde razões obstétricas até o uso de meios artificiais e a prática do aborto. Percebe-se que, sob o rótulo de “indicação científica”, muitas práticas realizadas anteriormente pelo casal e consideradas condenáveis moralmente constituem razões válidas para a anticoncepção sob orientação do médico. O que estaria em jogo seria a tentativa de combater a continuação do uso destes meios transformando o controle da natalidade em assunto médico. A lógica de combater um mal maior (práticas neo-malthusianas e aborto criminoso) por um menor (continência periódica) tornava-se predominante. É neste sentido que Azevedo explica as “indicações” referentes ao abuso dos meios neo-malthusianos e do aborto criminoso (Azevedo 1936:477-478).

            Quanto aos meios neo-malthusianos, apoia-se nas declarações de Van de Velde e de Fraenkel, que considera as maiores autoridades no assunto. O primeiro denunciou a existência de mais de 150 meios anticoncepcionais, cujo emprego seria sempre acompanhado de moléstias físicas e mentais e transtornos. O condom, por exemplo, causaria irritação inflamatória da vulva e da vagina na mulher e da glande no homem, além de incômodos para um ambiente matrimonial feliz. Entre as moléstias causadas também se encontrava o “sindroma de carência espermática”:

“O abuso do coito interrompido e do coito condomatoso criou uma nova entidade nosológica – o sindroma de carência espermática, cujos principais sintomas se resumem em perturbações menstruais, nervosismo, tendência melancólica e ansiosa, que se exacerbam nos dias consecutivos às relações fraudulentas e que se atenuam ou desaparecem sob a ação do extrato espermático associada à supressão ou à modificação das práticas preventivas.

A carência espermática é a principal causa das perturbações nervosas e psíquicas frequentemente encontradas nos casos de esterilidade voluntária.” (Azevedo 1936:480).

            A influência que a falta da absorção espermática exerceria sobre as perturbações físicas e mentais femininas aparecia em diversos autores e em algumas discussões em congressos. Quando a causa dos males era diagnosticada, recorria-se frequentemente à “opoterapia hetero-sexual” (emprego de fluídos do sexo oposto). Mas, o “sindroma das fraudadoras” começou a ser melhor tratado a partir do momento em que, em função do método de Ogino-Knaus, passou-se a fazer a impregnação espermática direta na mulher, no período não fértil. Apenas dois coitos completos já eram suficientes para uma melhora acentuada dos sintomas de nervosismo e para uma rápida regularização do fluxo menstrual. Azevedo ainda acrescenta que no homem o ato sexual termina com o orgasmo. Porém, na mulher, ele sempre será incompleto quando não terminar pela absorção das substâncias do líquido seminal que utiliza para seu equilíbrio fisio-psicológico. O autor pretende respaldar suas afirmações na psicanálise, dizendo que Freud teria revelado a influência preponderante do ato sexual incompleto e artificial na gênese de numerosos distúrbios psíquicos. Além disso, sustenta que o instinto da maternidade faz parte integrante da psique feminina. O receio da gravidez entraria em conflito com este instinto, recalcando-o no subconsciente e exteriorizando-o sob a forma de “obsessões”, “idéias negras” e “delírios”. Se a mulher for católica, seria ainda mais torturada pelos conflitos religiosos e morais (Azevedo 1936:481).

            O método da continência periódica, permitindo a realização completa e natural do ato sexual e conciliando os preceitos morais e religiosos, viria restituir a saúde e a paz dessas mulheres. Azevedo relata o caso de uma paciente sua, profundamente religiosa, que jazia em um estado de acentuada psicose, com alucinações e visões e outros indicadores de abalo físico, relacionados à culpa que sentia pelo uso de métodos artificiais de anticoncepção e que se restabeleceu com o método de Ogino-Knaus. O autor ainda diz:

“Outros casos observamos de perturbações orgânicas ou de transtornos psíquicos, de sidromas de carência espermática ou de complexos e recalcamentos freudianos, em que o repúdio das práticas anticoncepcionais artificiais e a aplicação de métodos de continência periódica redundaram sempre em uma transmutação completa do corpo e do espírito das nossas pacientes.” (Azevedo 1936:482).

            Ao lado das perturbações nervosas, os meios neo-malthusianos também provocariam perturbações e afecções orgânicas no aparelho genital feminino, constituindo uma verdadeira “patologia anticoncepcional”. O coito interrompido ou condomatoso teria como consequências: dores lombares e hipogástricas, fadiga dos membros inferiores, dor no momento da defecação, dores ao menor esforço e movimento acentuadas durante o ato sexual, frigidez e aversão à vida conjugal, mudanças de caráter, irritabilidade, irascibilidade, emotividade, tristeza, falta de energia e de coragem, perturbações digestivas, inapetência, digestões laboriosas, constipação, cefalgias e idéias de suicídio. Além disso, o exame ginecológico ainda revelava sinais de metrite e parametrite, congestão pelviana, inflamação e hiperplasia, esclerose dos ovários, tumores, fibromas, quistos, predisposição ao câncer e perturbações no ritmo menstrual. E, por fim, pode-se chegar à esterilidade temporária ou definitiva que “a natureza revoltada impõe à mulher que calculadamente fugiu aos encargos da maternidade” (Azevedo 1936:483).

A abstinência periódica, segundo Azevedo, apresentava-se como um verdadeiro antídoto para os danos que vinham produzindo os métodos anti-naturais de profilaxia da concepção. Também seria a melhor arma no combate à prática do aborto. Azevedo termina o seu artigo dizendo que, infelizmente no Brasil, os anúncios de prática de aborto disfarçados apareciam cada vez mais e impunemente. Enquanto isso, o método da continência periódica, que tem todas as garantias científicas, morais e religiosas, às vezes é confundido com práticas condenáveis. O autor diz que ele mesmo já sofreu o dissabor de ver sua técnica malevolamente interpretada apesar das suas mais puras intenções. Apoiado em Afranio Peixoto, Azevedo conclui dizendo que a contracepção é um mal necessário diante da necessidade de pôr fim ao aborto criminoso, mas tem sido prejudicada pelas próprias leis do país que percebem como semelhantes práticas de natureza tão diversa.

O tema da contracepção ainda aparece outras vezes nos Annaes Brasileiros de Gynecologia. Ainda em 1936 há uma resenha elogiosa do livro lançado por F. de C. Azevedo denominado Maternidade consciente. A revista apresenta a publicação como “o único trabalho nacional de fôlego” e endossa suas posições, já vistas no artigo apresentado acima (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1936:491). No mesmo ano, outra resenha tratava da obra de Carijó Cerejo intitulada Anticoncepção. Segundo o resumo, tratava-se de uma brochura para leigos que considerava vários aspectos envolvendo a prevenção da gravidez de forma correta e moderna, o que significava na prática o privilégio ao método de Ogino-Knaus e a condenação do aborto (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1936:214). As resenhas incluíam também trabalhos internacionais. Em 1937 comenta-se o artigo Indications for contraception from the point of view of the obstetrician and gynecologist de T. L. Montgomery publicado nos Estados Unidos. O trabalho defendia que quando a gravidez constitui uma ameaça à saúde da paciente, e só neste caso, algum meio anticoncepcional deve ser prescrito pelo médico. O autor condena as técnicas anticoncepcionais utilizadas e, quando a indicação é de natureza permanente, prefere o recurso à histerectomia e à esterilização. Afirma que entre a população feminina vinha crescendo a exigência pela maior amplitude das práticas anticoncepcionais, o que colocava o obstetra em uma posição difícil. Diz que o médico deveria participar na discussão a respeito da anticoncepção como solução para o pauperismo. E termina concluindo que se vinha esperando demasiadamente que a anticoncepção contribuísse como um instrumento de aperfeiçoamento da raça. No seu entender, a propaganda destinada a elevar a posição da maternidade e a exaltar os prazeres da vida em família faria muito mais pelo aumento da reprodução nas classes mais altas (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1937:255-257).

Percebe-se através da resenha que um dos pontos fundamentais a partir do qual a contracepção era discutida referia-se ao seu valor como meio de evitar a propagação de seres que contribuíam para o enfraquecimento da raça. Paralelamente, nota-se que o aperfeiçoamento da raça estava condicionado ao aumento da natalidade nas classes mais altas. Ou seja, havia lugar para um certo deslizamento entre a noção de raça e de classe. Os mais pobres, por uma série de circunstâncias, eram mais responsáveis pela reprodução de degenerados, enquanto os mais ricos contribuíam para a realização do projeto eugênico. Note-se também a idéia, expressa pelo autor, de que é necessário propagandear a maternidade. Esta concepção, comum nos Estados Unidos e na Europa, aparece também na resenha ao trabalho Sobre el aborto voluntario de Juan Gabaiton publicado em Buenos Aires. O autor afirma que é somente o sentimento da maternidade, reafirmado na mulher desde a mais tenra infância, que poderia preservar a humanidade, e não as imposições do Estado, da sociedade ou da Igreja. Caberia ao médico, que conhece as deficiências físicas e os males morais das mulheres, o melhor julgamento a respeito das questões relativas ao controle da natalidade e o recurso ao método de Ogino-Knaus, em detrimento da prática do aborto (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1938:216-217). Em 1939, outra resenha ao artigo do americano G. Kosmak conclamava os médicos a se envolverem mais com o problema da restrição da natalidade em função das exigências sociais do momento (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1939:365).

Da intrincada relação entre eugenia, contracepção e maternidade, é necessário fazer alguns comentários. Em primeiro lugar, há uma constante afirmação de que o médico, ao lado dos legisladores, deve tomar a frente no estudo e controle das questões relacionadas à reprodução, especialmente no que tange ao controle da natalidade. Anteriormente, a reprodução já tinha se tornado uma área de grande investimento médico mas a contracepção, pelo menos publicamente, parecia ser um assunto suficientemente imoral para que os médicos não se dignassem a considerá-lo. Através da propagação das idéias eugênicas, sempre revestidas e resguardadas pelo caráter científico, o tema da contracepção passa a ser reconsiderado. Recorrendo às teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, percebe-se que as raras teses que falam em anticoncepção estão associadas à eugenia.[8] A partir da vontade de coibir o nascimento de indivíduos “indesejáveis”, até mesmo a esterilização é defendida como um meio legítimo. Mas, com relação aos indivíduos considerados “normais”, a questão é outra. A julgar pela posição de Azevedo (1936), poder-se-ia até admitir a contracepção, exclusivamente através do método de Ogino-Knaus, que não é visto como imoral, mas desde que haja uma indicação científica para o caso. Entretanto, em termos gerais, para os casais “saudáveis”, o que parece imperar é a lei da procriação. Para estes, todas as formas de controle da natalidade, desde as práticas neo-malthusianas até o aborto, são condenadas. E longe de se prever a contracepção, prega-se a valorização da maternidade e da vida familiar. [9]

Contudo, é interessante que os próprios médicos admitam que há uma pressão social, alguns dizem que é mais forte entre as mulheres, para a propagação da contracepção. E é em função desta pressão que os doutores se dizem convocados a reagir. Sua resposta vem na forma de um projeto de valorização da maternidade que passa pela propaganda em prol da natalidade, especialmente frente às mulheres. Diante do panorama instalado pela eugenia e pelo nacionalismo, que via o número de cidadãos como garantia de soberania, era preciso convencer as mulheres sadias da importância do seu papel de mães. Era preciso recuperar em seus espíritos, talvez abalados pelo excesso de civilização, educação e trabalho, o instinto materno. E também era preciso melhorar a capacidade de ser mãe de acordo com os princípios da eugenia, da higiene e da puericultura.

*  *  *

Na década de 1930, durante a chamada era Vargas, percebe-se uma redobrada valorização da maternidade por parte da ginecologia e da obstetrícia, em um contexto de maior aproximação com o Estado.[10] Nos Annaes Brasileiros de Gynecologia encontram-se vários exemplos deste processo, como é o caso do editorial do segundo volume de 1936. O texto começa citando a circular emitida por Getulio Vargas no Natal de 1932, qualificada como “uma prece em prol da infância no Brasil, um grito de patriotismo, que criou para o governo brasileiro uma obrigação moral e um compromisso de honra” (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1936:326).[11] Na circular, o presidente dizia que:

“Os poderes públicos têm no amparo à criança, sobretudo quanto à preservação da vida, à conservação da saúde e ao desenvolvimento físico e mental, um problema de maior transcendência, chave da nossa opulência, principalmente em nossa terra, onde, mais talvez do que nas outras, se acumularam fatores nocivos à formação de uma raça forte e sadia”. (Apud Annaes Brasileiros de Gynecologia 1936:326).[12]

            Os médicos já percebiam em Vargas os ecos das teorias sobre raça e das concepções sobre a importância da criança que tomavam maior vulto na época. O que era preciso naquele momento era transformar cada vez mais este discurso em ações efetivas que deveriam, preferencialmente, estar sob o comando dos especialistas em obstetrícia, ginecologia e puericultura.

            O editorial fala ainda das altas e crescentes taxas de mortalidade infantil do Rio de Janeiro e do resto do país. No mesmo parágrafo, são exaltadas as iniciativas em curso nos Estados Unidos, que visavam proteger a maternidade e a infância, a partir de propostas dos próprios presidentes americanos. Ou seja, o Brasil estava no caminho certo desde que levasse à pratica as idéias que o próprio Vargas proferia. Após a circular do Natal de 1932 tinha sido realizada a primeira Conferência de Proteção à Infância e fora criado o Departamento da Maternidade e Infância. Estes eventos assinalariam um marco na proteção à criança e à mãe brasileiras. Destaca-se ainda a noção de que a saúde pública não deve ser exclusivamente polícia sanitária ou burocracia mas, prioritariamente, profilaxia e assistência. E transcreve-se a carta de Olinto de Oliveira, chamado de “o grande patriota”, em função de sua dedicação aos serviços de assistência à maternidade e à infância, dirigida ao deputado, e também médico, Xavier de Oliveira. Oliveira apresentava no momento um projeto à Câmara dos Deputados em prol da defesa das mães e crianças do país. Na carta, mais uma vez os argumentos para a proteção da maternidade e infância giravam em torno do “renascimento da nossa raça” (Annaes Brasileiros de Gynecologia 1936:328).

            As referências que associavam maternidade, infância, raça e nação se sucedem nos periódicos médicos. O ano de 1940 aparece com destaque especial, em virtude de acontecimentos significativos. Este ano pode ser considerado um marco na aproximação de obstetras e ginecologistas com o Estado. O editorial do volume nove dos Anais Brasileiros de Ginecologia (1940) menciona e elogia um decreto-lei emitido por Vargas neste ano:

“O Presidente da República acaba de decretar as medidas necessárias a um vasto programa de assistência à maternidade, à infância e à adolescência. De fato, o decreto-lei número 2.024 de 17 de fevereiro de 1940, fixa as bases da organização da proteção à mulher mãe e à criança, atendendo, dessa forma, a um alto imperativo de grande alcance para a nossa pátria. Esse o motivo pelo qual estes Anais que têm como parte de seus propósitos, cooperar para esse mesmo fim, resolverem dedicar estas páginas ao registro da medida governamental que vai ao encontro de uma necessidade vital para o Brasil, vasta região do globo à espera de uma população numerosa, mas nas melhores condições de higiene possível, para não continuar a ser o vasto hospital, a que se referia o saudoso Prof. Miguel Pereira.” (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940:161).

            O tom do discurso é o de apresentar o momento como o ápice de um processo de luta em prol da infância e maternidade que teria começado dentro da medicina. Após o trecho acima, o editorial resume a história deste percurso, tomando como ponto inicial uma conferência proferida por Arnaldo de Moraes em 1930 na Sociedade de Medicina e Cirurgia. A conferência versava sobre o “Problema Pré-natal” e mereceu “valioso aplauso” de Olinto de Oliveira, o puericultor que pouco depois seria nomeado para chefiar a Diretoria da Maternidade e Infância. Oliveira, considerado como pessoa de absoluta confiança de Vargas, teria, de forma tenaz e competente, realizado uma série de medidas que agora estariam consubstanciadas no decreto-lei.

            Destacam-se também os debates ocorridos na Academia Nacional de Medicina e a formação de uma comissão que deveria apresentar sugestões ao governo federal sobre a questão da mortalidade materna. A comissão, composta por Arnaldo de Moraes, Octavio de Souza e João Camargo, em novembro de 1939 apresentou o seu parecer. Neste documento, ao lado de medidas relativas à assistência propriamente dita, também são tratadas questões referentes ao ensino da clínica obstétrica e à formação de parteiras. Defendia-se o ensino da obstetrícia de maneira mais eficaz, o que implicava a frequência de dois anos de curso e a assistência obrigatória a 20 partos pelo menos, além de uma maior valorização desta especialidade no currículo médico. As escolas de parteiras são apresentadas como uma necessidade em todas as grandes cidades do país. As escolas deveriam ter maternidades próprias, revalidar o título das profissionais a cada cinco anos, prever estágios compulsórios e proibir a clínica para aquelas que exorbitassem de suas funções. Estas medidas, em última instância, justificam-se pela grande responsabilidade desses profissionais, cuja formação deve ser muito bem controlada, face às aspirações do Estado: “Puericultores e obstetras não se improvisam, é preciso prepará-los para que possam os profissionais a que vão caber os altos encargos de velar por mães e filhos, estar à altura das altas finalidades das medidas governamentais.” (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940:161).

            O editorial menciona ainda a exposição feita pelo Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, durante a criação do Departamento Nacional da Criança. Capanema teria deixado nítidos os propósitos governamentais de assistência, pesquisa e justiça social além de reforçar a necessidade de despertar no país uma atmosfera de interesse para os problemas vitais da maternidade e da infância. O Departamento recém criado é descrito como um “verdadeiro farol de grande luminosidade” através do qual o país socorreria a mulher mãe e a criança, desvalidas e desamparadas (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940:161).

            No ano de 1940 aconteceria ainda o Primeiro Congresso de Ginecologia e Obstetrícia, que pode ser visto como uma ocasião singular em termos da aproximação destas especialidades médicas com os programas do Estado e de um relativo aumento de seu prestígio. O editorial do volume dez dos Anais Brasileiros de Ginecologia (agosto de 1940) é dedicado ao anúncio da realização do Congresso no mês seguinte. Em primeiro lugar, informa-se que o evento é promovido pela Sociedade Brasileira de Ginecologia,[13] que tem procurado “aprimorar os conhecimentos científicos da ginecologia e da obstetrícia”, debatendo problemas relativos ao ensino e ao exercício clínico, através da congregação de médicos de todo o país por meio de reuniões que agora tomam maior vulto no Primeiro Congresso. A importância da Sociedade e do encontro teria sido reconhecida também pelas autoridades governamentais. O editorial menciona que o próprio presidente Vargas e o ministro Capanema “imediatamente hipotecaram seu valioso prestígio, amparando essa reunião científica, certos da grande vantagem que, para nossa cultura e aperfeiçoamento, representa, prélios intelectuais de tal natureza” (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:127). Participantes argentinos, uruguaios e chilenos tinham sido convidados com o apoio do governo, transformando o evento em uma acontecimento internacional e prestigioso para os médicos e para os seus patrocinadores.

            Como presidentes de honra foram escolhidos Vargas e Capanema, além de Oswaldo Aranha (Ministro do Exterior) e Henrique Dodsworth (Prefeito do Distrito Federal). Entre os vice-presidentes de honra, estavam Olinto de Oliveira (Diretor do Departamento Nacional da Criança), Jesuino de Albuquerque (Secretário Geral de Saúde do Distrito Federal), Fróes da Fonseca (Diretor da Faculdade de Medicina), Aloysio de Castro (Presidente da Academia Nacional de Medicina), Manuel de Abreu (Presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia) e U. Pinheiro Guimarães (Presidente do Colégio Brasileiro de Cirurgiões) (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:127-128).

            Entre os temas escolhidos para o evento, estava o “Aspecto social da assistência obstétrica”, considerando o período pré-concepcional, pré-natal, a mortalidade materna, a mortalidade neo-natal e a assistência social propriamente dita.[14] Comenta-se que este tema é de especial interesse do governo, que tem “tomado medidas concretas e se empenhado na proteção da maternidade e da infância”, um “problema de tão largo alcance para a nossa nacionalidade” (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:128). Novamente, as palavras do ministro Capanema são citadas, desta vez as proferidas por ocasião da inauguração das Jornadas Carioca-Paulistas de Obstetrícia e Ginecologia, em que ele também esteve presente. Neste discurso, o ministro afirmou que o Governo esperava dos ginecologistas do Brasil a cooperação para a solução das dificuldades relacionadas ao futuro do país (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:128).

            O desejo de progresso, a fé no trabalho, o amor pela ciência e o patriotismo são identificados como os princípios norteadores dos congressistas. E entre os objetivos destacava-se a promessa de demonstrar que os progressos da ginecologia e da obstetrícia visavam a proteção à saúde e à vida da mulher, de modo a garantir a produção de filhos sãos. Dessa forma, o “verdadeiro celeiro do país” seria preservado e o seu bem mais valioso, que é o seu “capital humano”, aperfeiçoado (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:129). As especialidades médicas dedicadas à mulher e à reprodução assumiam como meta fundamental melhorar a produção de cidadãos e dessa forma se constituíam como aliadas do Estado. A defesa da soberania e do futuro da nação passava pelo “aperfeiçoamento” de sua população. Neste quadro, as idéias eugênicas de melhoria da raça, de forma mais ou menos explícita, eram conjugadas com a valorização da natalidade e uma preocupação médica mais acentuada com a mãe e a criança.

            Estas características podem ser ilustradas, por exemplo, pelas palavras de Arnaldo de Moraes na introdução do livro Propedêutica obstétrica publicado originalmente em 1924 e que em 1937 já estava na quinta edição. O trecho a seguir ilustra a amplitude das funções do obstetra e a aproximação com a eugenia, além de ressaltar a preocupação com as crianças:

“De ação tão ampla, confundindo-se com a atuação do eugenista, do puericultor, do pediatra, do higienista, do político e do patriota, compreende-se o valor do obstetra moderno. A este cumpre investigar as causas da esterilidade e removê-las, bom como os motivos da interrupção das gestações pregressas e evitá-la pelo tratamento adequado; fazer a assistência à prenhez, afastando pela terapia e pelos cuidados higiênicos (regime dietético, profilaxia das situações anormais do feto, etc.), todas as causas capazes de perturbar a gestação ou provocar a distocia; assistir ao parto, com o conhecimento perfeito da fisiologia do mesmo, para ajuizar com segurança da sua marcha e da oportunidade da intervenção, sobrevindo a distocia. Nessa oportunidade tem que se mostrar habilitado a resolvê-la, ora com simples operação obstétrica, ora com intervenções cirúrgicas algumas de mais alta importância (...); e ainda, passada essa fase, que assinala o término da prenhez, cuidar do recém-nascido, orientando o aleitamento e impedindo ou removendo as causas que o prejudiquem, verificando lesões (...) e vícios de conformação (...) e corrigindo-os.” (Moraes 1937:17).

            No mesmo trabalho, Moraes lamentava que os responsáveis pelo país considerassem com displicência e com banalidade o ato da parturição e a puericultura. Segundo ele, a assistência materna no Brasil e mesmo na capital carecia dos sentimentos de humanidade e patriotismo. A proteção da mulher-mãe e do fruto humano reclamava maior atenção por parte do governo. Já os médicos se esforçavam cada vez mais no sentido de cuidar para que a reprodução transcorresse da melhor maneira possível, tanto através do estudo do problema quanto da assistência que prestavam.

            A estreita relação entre a atenção médica dada à mulher e a consideração das influências sociais pode ser vista ainda em um interessante artigo editado também em 1941. Nele, o ginecologista e obstetra, então professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Assad M. Abdenur tratava exatamente dos “Aspectos da ginecologia social”. Na tradição da medicina social viria a ginecologia social, que estuda todas as modalidades mórbidas ginecológicas que dependam das condições sociais da mulher. Seria a parte da medicina social dedicada ao sexo feminino.[15] Esta disciplina se fundamentaria na relação com outras ciências, entre as quais estariam a medicina clínica, a endocrinologia, a política, a medicina social, a psicologia, a psiquiatria, a profilaxia, a higiene e a eugenia. No caso desta última, o autor destaca a importância da esterilização. Em seguida, Abdenur afirma que foi somente com o Estado Novo que a proteção da mulher e da infância começou a tomar vulto. Depois fala da antropogeografia, que se resume na idéia da que o país era ainda muito pouco povoado, o que implicaria na necessidade de uma política médico-social que considerasse sobretudo a mulher:

“À fração feminina deve caber grande parte das medidas de proteção. Pela importância de suas funções geratrizes, e ser o primeiro agente protetor da infância, merece os desvelos de quem vise índice de natalidade qualitativa e quantitativamente bom. Surge daí a razão de ser de um ponto de vista eugênico.” (Abdenur 1941:521).

            O autor define como objetivos da ginecologia social a proteção à maternidade (higiene pré-natal, assistência ao parto e assistência à primeira infância), despistagem da lues e outros males venéreos, campanhas contra o câncer, a propaganda de uma alimentação racional, a “patologia do trabalho feminino”, a terapêutica da esterilidade, a repressão ao aborto criminoso, a higiene psíquica ou mental do sexo feminino, etc. Teria como meios para realizar tais fins a técnica, a propaganda e legislação sanitária, a filantropia, a luta contra o pauperismo e a estatística (Abdenur 1941:521).

O Primeiro Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia aconteceu entre oito e quinze de setembro de 1940 no Palácio Tiradentes, sob os auspícios do governo federal. A sessão inaugural foi presidida por Gustavo Capanema, que proferiu um discurso de aproximação entre os objetivos do governo e os profissionais dedicados à ginecologia e à obstetrícia. O pronunciamento inicia com congratulações e elogios ao Congresso e à Sociedade Brasileira de Ginecologia, uma instituição que teria o mérito de reunir tão ilustres médicos como o seu presidente, Arnaldo de Moraes. Em seguida, o ministro passa para o tema central da palestra, que era o empenho nacional na assistência à maternidade e à infância, visando o progresso da pátria:

“É a obra nacional de proteção à maternidade e à infância, colocada entre as primeiras preocupações governamentais de nosso país. Nós, brasileiros, temos um programa de enormes realizações no terreno da economia e no terreno da cultura. Queremos tornar nossa pátria, cada vez mais, numerosa na população, forte e segura no espírito, empreendedora, honrada, ilustre.

Mas este engrandecimento está, sob todos os seus aspectos, condicionado à qualidade do nosso homem, ao seu valor biológico, ao seu valor moral e intelectual. E é fora de dúvida que a boa qualidade do homem só pode decorrer da geração sadia e forte, a qual é em grande parte um resultado da saúde materna, da maternidade vigorosa e perfeita.” (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:278-279).

            O ministro ainda salienta que os temas a serem debatidos no Congresso estão estreitamente relacionados com este grande problema nacional e que por isso o governo dá todo o apoio ao encontro. Por fim, chama a atenção para os sentimentos de solidariedade e patriotismo que motivam os médicos presentes e felicita os membros estrangeiros (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:279). Arnaldo de Moraes agradece as palavras do ministro e o empenho do governo na realização do evento.

            A sessão na qual se discutiu o “Aspecto social da assistência obstétrica” teve como presidente o Diretor do Departamento Nacional da Criança, Olinto de Oliveira. Seu discurso de abertura lembrou mais uma vez o grande interesse do presidente Vargas pela proteção à infância, expresso na criação do Departamento que abrangia também a proteção à maternidade. O Departamento, através de seus delegados, tinha como tarefa orientar e fiscalizar todos os estabelecimentos destinados à assistência e recolher informações que serviriam como subsídios para a ação do governo federal. Olinto faz referência ainda a José Bonifácio que já em 1823 teria exigido o amparo à mulher trabalhadora durante a prenhez. Em seguida, o presidente do Congresso, Arnaldo de Moraes, leu uma proposta de voto de aplauso ao governo de São Paulo pela criação e organização do Serviço de Higiene e Assistência pré-nupcial, pré-concepcional e pré-natal.

            Passou-se, então, à apresentação do relator oficial, J. C. Lascano, vindo de Buenos Aires. O médico argentino faz um resumo histórico da assistência obstétrica, tomando como marco o século XVII, quando as parteiras perdem prestígio e os médicos passam a atender as parturientes. Mas afirma que a fase verdadeiramente oficial da obstetrícia só começou em fins do século XIX, quando deixou de ser uma caridade para se tornar um direito. Surgiram nesta ocasião as primeiras leis de proteção às trabalhadoras grávidas. Lascano acrescenta que, introduzidas em quase todos os países e ampliadas depois da grande guerra, tornaram-se particularmente complexas e eficazes na Alemanha depois do regime nazista, na Espanha e nos países escandinavos. A Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Washington em 1919, tinha fornecido as bases para as legislações sobre trabalho, abrangendo também a mulher-mãe. Além disso, toda a medicina vinha tomando um aspecto social, um movimento no qual a obstetrícia constituía parte importante (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940, vol.10:326-327).

            Nos Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia (1942) temos o relatório apresentado pelo dr. Octavio de Souza sobre o tema. O médico explica que o aspecto social da assistência obstétrica implica fundamentalmente na atenção aos direitos da mulher na gravidez e no puerpério, como o repouso e o seguro materno remunerado. Faz um histórico das iniciativas a respeito, que congregavam as preocupações dos médicos e do Estado. Lembra que em 1917 surgiu a primeira lei que interditava o trabalho feminino nos quatro primeiros meses após o parto. Assinala como um marco importante a conferência de Fernando Magalhães no Primeiro Congresso Brasileiro de Higiene em 1923, que chamava a atenção para a necessidade de aprimorar a legislação referente à proteção à maternidade. Defende que o Estado deve atuar sempre no sentido de favorecer a criatura que propaga a espécie e contribui com a sua parcela para a grandeza do país. Demonstra, através da referência às leis, que o amparo à maternidade vinha, gradualmente, sendo feito, especialmente a partir de 1932.[16] A legislação a partir desta data mostraria um claro interesse do presidente Vargas no assunto. O decreto número 21.417-A, de 17 de maio de 1932, regulava as condições de trabalho nos estabelecimentos industriais e fabris e amparava a mulher operária em gestação.[17] No mesmo ano, a já citada mensagem de Natal do presidente solicitava aos técnicos do Estado:

“métodos e diretrizes a seguir para favorecer a auxiliar todas as instituições seriamente empenhadas em promover o bem-estar, a saúde, o desenvolvimento e a educação da criança, desde antes do nascimento, pela assistência à Maternidade, até a idade escolar e adolescência, proporcionando-lhe os subsídios indispensáveis à promulgação de leis e regulamentos, tendentes a realizar uma proteção eficaz à infância, como segurança de êxito” (Apud Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia 1942:73-74).

Em 1934, a Constituição, então decretada, estabelecia no artigo 141 a obrigatoriedade do amparo à maternidade e à infância. No mesmo ano, o município do Rio de Janeiro regulamentava, através do decreto número 4.785, o repouso e indenização por meio de licença remunerada a professora ou estagiária em estado de gestação. A Constituição de 1937 também considerou o tema, prevendo no artigo 137 a assistência médica ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta, sem prejuízo do salário, um período de repouso antes e depois do parto. Em 1938, outro decreto municipal estendia a todas as funcionárias, os benefícios concedidos às professoras. O Estatuto do Funcionalismo Público estabelecia em 1939 que a funcionária gestante teria direito a uma licença remunerada de três meses. Mais uma vez no Natal do mesmo ano, Vargas declarava o interesse do governo em promover a proteção à maternidade e à infância (Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia 1942:72-75).[18]

Diante deste panorama que provaria o interesse do governo nas mães e crianças brasileiras e sua implicação no próprio futuro da nação, só cabia aos médicos o mais pleno apoio e desejo de colaboração. Em função disto, o Primeiro Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia termina a sessão dedicada ao aspecto social da assistência obstétrica votando uma moção de louvor e incentivo ao presidente Vargas, pelas constantes e acertadas medidas em favor da maternidade (Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia 1942:80).

Entre as medidas tomadas pelo governo, estavam aquelas que visavam promover, através de comemorações e concursos, a valorização da infância. Prêmios em favor da amamentação (Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia 1942:82) e concurso de robustez entre bebês eram alguns destes eventos. O Brasil Médico de 1941 dedicou várias páginas ao relato das comemorações do dia da criança (25 de março). Todos os eventos na capital tinham sido presididos pelo médico e militar Jesuino de Albuquerque, Secretário de Saúde e Assistência do Distrito Federal que, na opinião da revista, dava provas de seu patriotismo e “interesse e zelo na formação do futuro homem potencial, brasileiro” (Brasil Médico 1941:245). Esta secretaria tinha recentemente criado (em 1940) o Departamento de Puericultura que inaugurava na ocasião três cozinhas dietéticas ou lactários, que forneceriam três mil mamadeiras diárias. O objetivo era diminuir a mortalidade infantil que tanto causava prejuízos à “força viva da Nação”. O dia da criança foi também muito comemorado pelas associações médicas. A Sociedade de Medicina e Cirurgia, por exemplo, se reuniu em sessão extraordinária. Algumas conferências lá proferidas são bastante reveladoras das posições adotadas pelos médicos. O dr. Oswaldo Boaventura disse que a Sociedade tinha naquele momento um ensejo “quase santo” e que ele próprio “hipotecava todas as ternuras de seu coração em prol da campanha em favor da criança brasileira pois que ela, cuidada, será no futuro a fonte primeira de todas as energias exaltadoras da Pátria” (Brasil Médico 1941:246-247).

O dr. Carlos de Abreu proferiu uma longa conferência, na qual exaltava o início de uma nova era para a criança brasileira. Explicava que o dia da criança tinha por objetivo incentivar a opinião pública a se conscientizar da necessidade de dar mais atenção à gestante pobre e à infância desamparada. E dizia sobre o papel dos médicos em relação à quantidade e à qualidade da raça:

“Cabe assim a todos os brasileiros de boa vontade e principalmente a nós, médicos, respondermos a esse incentivo superior dando à nossa Pátria, pelo muito que dela recebemos, a nossa cooperação esforçada, ampla, humana, no sentido de podermos elevar o número e o valor da nossa população numa benemérita obra social, de formação quantitativa e qualitativa de nossa raça.” (Abreu 1941:246-247).

Abreu salientava também como o chamado problema demográfico prejudicava o país. E exclamava que a meta de reversão da situação tinha que necessariamente começar com as mulheres. Através da assistência às mães poder-se-ia chegar a uma raça mais forte:

“Para elevarmos o nível orgânico de nossas populações com o humaníssimo e patriótico fim de criar uma raça mais forte e mais feliz devemos começar a tarefa pelo início ou seja assegurando às mães as condições que favoreçam a concepção, a gestação, o parto, o puerpério e a criação de seus filhos num ambiente que permita ao ser, a sua elevação perfeita, física, moral e intelectual.” (Abreu 1941:246-247).

A proteção à mulher trabalhadora e a assistência médica, que passavam cada vez mais a ser defendidas pelos médicos e que estariam motivando atitudes do governo, tinham como foco a capacidade de produzir filhos saudáveis para a pátria. Na medida em que passava a ser cada vez mais responsabilizada pelo futuro do “capital humano” da nação, a mulher conquistava uma nova atenção e uma nova percepção por parte dos médicos, especialmente aqueles dedicados à reprodução.

            Carlos de Abreu também enfatiza a importância da puericultura, a ciência aplicada ao conhecimento e cuidado da criança sã. A puericultura se distinguiria da pediatria, na medida em que esta implicava o cuidado da criança doente. O autor dá a entender que a puericultura implicaria em primeiro lugar no favorecimento do número de nascimentos. Comenta que, através da história da humanidade, o cuidado com a criança tem sempre sido um sinal de progresso. Apenas os povos caducos, aqueles que desapareceram e aqueles que acreditavam que todos os lugares disponíveis na terra já estariam ocupados pensaram em limitar os nascimentos. O aumento da natalidade estaria na raiz de qualquer possibilidade de crescimento para a raça e para a nação. Seria o fator indispensável para que as preocupações eugênicas se tornassem iniciativas efetivas. Abreu diz, com referência a isso:

“Toda medida de ordem eugênica social exige que exista primeiro material humano em abundância que preencha o ritmo natural da vida. O que resta é obra de justiça, amor e compreensão.

Os que estão têm o dever de preparar o caminho dos que vierem e somente assim poderemos culminar nas gerações fortes e sadias de um futuro próximo.” (Abreu 1941:252).

            Seguindo o raciocínio do médico, um povo que se preocupasse com o seu futuro precisava incentivar os nascimentos de modo que pudesse melhorar a qualidade de sua raça. E para tanto era fundamental, em primeiro lugar, cuidar das futuras mães. A mulher se convertia em um sujeito importante para a nação, na medida em que tinha a função de garantir a quantidade e consequentemente a qualidade dos seus cidadãos. As especialidades médicas dedicadas à mulher e à criança se aproximavam das propostas eugênicas e tentavam prever e administrar o advento do Brasil como uma grande nação.

*  *  *

            F. Muel-Dreyfus (1996), estudando o mito do éternel féminin no regime de Vichy, faz considerações que iluminam a compreensão desta associação entre definições de feminino, reprodução e Estado. Não se trata de comparar os contextos francês e brasileiro, mas de chamar a atenção para alguns pontos de aproximação. A autora retoma a discussão sobre como a denatalidade, ao lado da prostituição e do alcoolismo, foi identificada como um sintoma do decaimento nacional, que seria responsável pelas derrotas nas guerras de 1870 e 1940. No regime de Vichy, a denatalidade vai se tornar uma questão política ainda mais forte. A política familista e natalista vai ser convertida no remédio que permitirá transformar o clima moral da França marcada pela união livre, abandono da família, divórcio, egoísmo conjugal, aborto, leviandade sexual e deboche. A família é a célula principal da sociedade. A nação não é um agrupamento de indivíduos, mas de famílias. É preciso então tomar medidas que a reforcem, como o combate ao aborto, ao divórcio e ao trabalho feminino, além de incentivos às famílias grandes e privilégios aos chefes de família. As organizações e movimentos feministas que visam defender os direitos das mulheres são severamente atacados porque apenas estavam tentando destruir os caracteres e as virtudes femininas necessárias à raça.

O discurso sobre “les femmes au foyer” e natalidade será sempre articulado com os perigos para a raça, ameaçada pela denatalidade e pela imigração, especialmente dos judeus na década de 1940. Como os imigrantes indesejáveis, o feminismo também é percebido como algo que vem de fora, uma criação estrangeira nefasta aos interesses franceses. Em contraste, a verdadeira mulher francesa representaria a tradição e a conservação da raça e dos costumes do país. Segundo a autora:

“L’appel à la natalité et à la maternité françaises s’inscrit donc dans une vision politique qui repense l’histoire récente en termes d’invasion et de pollution par des éléments étrangers inassimilables par le corps social. La construction d’une image officiele de la féminité, centrée sur la maternité, a partie liée avec la construction de l’étranger, naturalisé ou non, comme menace pour la santé nationale. C’est sans doute le fondement le plus sombre de la sur-production d’‘éternel féminin’ dans ce moment de crise.” (Muel-Dreyfus 1996:115).

            A autora descreve como se reforça nesse momento a imagem da maternidade como destino feminino, especialmente a partir dos discursos médicos, com destaque para ginecologistas, obstetras e puericultores, que combinavam eugenia e política natalista. Segundo Muel-Dreyfus:

“Ce lien organique entre médecine des femmes, eugénisme et politique nataliste, qui n’a jamais existé dans les pays anglo-saxons où l’eugénisme se réclamait du néo-malthusianisme et du birth control, confère aux discours des hommes de science français, médecins et démographes, sur la ‘nature’ féminine, une charge de violence symbolique inégalée.” (1996:86. Grifos da autora).

            Uma idéia sempre presente neste discurso era a de que a reprodução não pertence à esfera da vida privada mas é de interesse nacional. É com base neste último que se deve limitar a educação das meninas, proteger a instituição do casamento e impedir o divórcio. As gerações futuras seriam gratas por este empreendimento médico-estatal. Outra concepção recorrente era a de um retorno à natureza. A civilização era identificada como responsável por uma série de males, como a propagação do controle de natalidade e as tentativas de emancipação feminina. Era preciso então voltar a um mundo mais próximo da natureza e a mulher aparece com destaque neste projeto. Afinal, também se afirmava que ela sempre esteve, quando não desvirtuada pela civilização, mais próxima do mundo natural. E era “da natureza feminina” ser mãe, garantindo o patrimônio hereditário da pátria, e permanecer no mundo doméstico, reafirmando as relações sociais já estabelecidas (Muel-Dreyfus 1996).

            A partir de sua análise, Muel-Dreyfus (1996) sugere como o mito do eterno feminino foi extremamente poderoso nas tentativas de reorganização de uma nação em crise. As justificativas éticas, sociais e políticas que sustentaram as reformas empreendidas pelo Estado francês a partir de 1940, incluindo trabalho feminino, escolarização, política familiar e sanitária, foram ancoradas no mito do eterno feminino, ou seja, na idéia de que existe uma natureza ou essência feminina eterna, impermeável à história e que pode funcionar como garantia para a sociedade. O ponto central do argumento da autora é mostrar como a percepção sobre o masculino e o feminino estruturam o imaginário e a organização de toda a vida social. Em outros termos, como a ordem dos corpos é uma dimensão fundamental da ordem política. E neste sentido, o retorno à base biológica das diferenças consideradas naturais entre os sexos e a consequente definição de destinos masculinos e femininos irredutíveis servem à elaboração de ideologias políticas, como a da homogeneidade nacional francesa.

            Vendo esta descrição não se pode deixar de pensar na aproximação entre os médicos de mulheres e crianças e o Estado no Brasil. Também aqui as definições sobre a natureza feminina devem ser percebidas a partir de sua inserção nos processos sociais e políticos em cena. A constante valorização da maternidade e da infância nas primeiras décadas do século XX está referida a um contexto que articula uma série de fatores entre os quais se pode destacar a ascensão da ideologia nacionalista, a presença das idéias eugênicas, no caso do Brasil redefinidas a partir dos impasses internos colocados pela miscigenação, a propagação dos recursos de controle da natalidade, os movimentos de emancipação feminina e a entrada da mulher no mercado de trabalho, além de aspectos relativos a uma redefinição do papel da medicina na sociedade, especialmente da medicina da mulher e da criança. Também aqui no Brasil, a questão da raça e do futuro da nação foram as bases a partir das quais se tentou elaborar um discurso e uma prática que envolviam a definição da mulher como presa ao único destino “natural” da maternidade. A diferença é que aqui os inimigos eram outros, ou melhor dizendo, o grande inimigo era a degeneração racial colocada a partir da mistura das raças que constituíam o país, além é claro do perigo representado pelas doenças que pululavam da cidade ao sertão e da imagem de que um extenso território ainda estava para ser povoado.

            A “questão racial” era debatida na época a partir de uma série de focos, como a degeneração decorrente da proliferação da sífilis, do alcoolismo ou de outros “flagelos sociais”. Porém, um dos focos mais tematizados pelos intelectuais brasileiros foi o da mistura racial, como descreveu Mariza Corrêa (1998) em As ilusões da liberdade.[19] A autora, que mostra como medicina e ciência social estavam conectadas nos expoentes da chamada Escola Nina Rodrigues, enfatiza como desde meados do século XIX a questão da raça, principalmente sob o prisma da inclusão ou exclusão das massas na vida política do país e na constituição da nação, era uma preocupação constante. Começando com Silvio Romero e Nina Rodrigues desenvolve-se um olhar científico sobre o povo brasileiro, inspirado no determinismo biológico tão em voga na ciência da época. Através da raça poder-se-ia chegar a uma definição da nação e propor as melhores formas de ordenamento social. As análises mostravam que a igualdade formalmente anunciada com a abolição e a proclamação da República não tinha respaldo em dados científicos, que se esmeravam em descrever as diferenças. A partir de Nina Rodrigues, o que se propõe são formas de regulação da população baseadas na tutela daqueles considerados inferiores e menos responsáveis por seus atos.[20]

            Em contraste com o que Muel-Dreyfus (1996) define como o medo do estrangeiro que se cristalizaria na França da década de 1940, aqui a ameaça seria de uma “invasão interior”, como diz Corrêa (1998:169) a propósito de Nina Rodrigues. O negro e a miscigenação representavam um perigo potencial, tanto pelas características biológicas que propagariam quanto por uma espécie de contaminação cultural das outras raças. Os mestiços, assim como outras categorias intermediárias ou ambíguas como velhos, adolescentes e homossexuais, eram especialmente estudados. Sobre eles recaía de maneira condensada a apreensão relativa à necessidade de estabelecer as fronteiras entre o civilizado e o bárbaro, já que na medida em que eram “misturados” poderiam esconder as suas perigosas diferenças. A definição clara destas diferenças era fundamental para a implantação da ordem social (1998:81-197).

            Mais tarde, com Leonídio Ribeiro e já em um outro contexto social e político, a atenção se voltaria para a infância, motivada pelo medo da propagação de uma predisposição criminosa.[21] A essa altura, encontramos pontos de interseção com a descrição feita neste capítulo sobre a aproximação da medicina com o Estado a partir da noção de proteção à infância e à maternidade. M. Corrêa mostra como Leonídio Ribeiro atua nesse sentido e em oposição àqueles que eram favoráveis ao aborto, reforçando a idéia da biologia como destino. Leonídio Ribeiro, tratando da infância delinquente, é capaz de associar em uma única sentença a afirmação da predisposição ao crime, o papel da mulher na sua prevenção e a obra realizada pelo governo de Mussolini de assistência à criança e condenação do aborto. A autora também mostra como as mulheres se associaram aos médicos e outras autoridades preocupadas em defender a maternidade e a infância. Como Muel-Dreyfus (1996) faria mais tarde para o caso francês, sugere que a participação das mulheres – e eu acrescentaria também a elaboração ou reforço de um certo ideal de feminilidade – foi importante na constituição do Estado Novo.[22] Além disso, lembra que, nesse momento, se processava uma forte tentativa de expulsão das mulheres e crianças do mercado de trabalho (Corrêa 1998:225-266).

            M. Rago (1997), entre outros autores, tem mostrado como nas primeiras décadas do século XX se desenvolve uma grande preocupação com as mulheres trabalhadoras, especialmente do ponto de vista da ameaça que podiam representar à moral social que se tentava estabelecer. O trabalho da mulher fora de casa é descrito por personagens de diferentes segmentos como um perigo para a família e mesmo para a raça. Segundo a autora: “No discurso de diversos setores sociais, destaca-se a ameaça à honra feminina representada pelo mundo do trabalho. Nas denúncias dos operários militantes, dos médicos higienistas, dos juristas, dos jornalistas, das feministas, a fábrica é descrita como ‘antro da perdição’, ‘bordel’ ou ‘lupanar’, enquanto a trabalhadora é vista como uma figura totalmente passiva e indefesa” (Rago 1997:585). Rago ainda acrescenta que esta visão do trabalho feminino está associada a uma vontade de direcionar a mulher para a esfera da vida privada.

            A análise que faz A. L. Duarte (1999:cap.3) sobre concepções de família e conjugalidade durante o Estado Novo é reveladora. O autor salienta como nessa época valoriza-se a idéia de uma homogeneidade política e social que refletiria a coesão, a unidade e a ordem necessárias à pátria. Este apelo implicava sobretudo na definição de um modelo de família consonante com os objetivos do Estado e que tentava expurgar o que ameaçaria a ordem pretendida, como a indisciplina, a barbárie, a instabilidade, o atraso, a imoralidade, a sensualidade e a indolência. A população suspeita de incorrer nestes “delitos” merecia uma ação tanto repressiva quanto profilática e terapêutica. Tentando modelar o novo cidadão, o Estado Novo visou prioritariamente a família, procurando intervir nas condutas, modos de relacionamentos, relações sexuais, habitação, etc. O modelo de família previsto, adequado à construção de uma moralidade pública, era aquele pretendido pelas elites, bem diferente das famílias reais das classes populares. Tratava-se da família nuclear, sem inúmeros agregados, que tinha uma habitação própria, e não morava nos cortiços sem privacidade, calcada no casamento indissolúvel, no homem como provedor e na mulher “do lar”, mãe e educadora. O trabalho e a presença feminina nas ruas são bastante condenados. A mulher modelo do Estado Novo tinha como atributos a timidez, a ingenuidade, a prudência, a fragilidade e a abnegação por oposição às transgressoras, devassas, libertinas, separadas, que circulavam livremente nas ruas. A estas últimas correspondiam as “famílias desestruturadas pelos casamentos desfeitos, pelas mancebias e amasiamentos, pelas mulheres que trabalhavam fora, pela insuficiência dos rendimentos, pelos maridos violentos, alcoólatras, as crianças delinquentes, os biscateiros, mendigos, prostitutas e vadios” (Duarte 1999:205).  

            Estas observações servem para contextualizar melhor a aproximação entre os ginecologistas e obstetras com o Estado. A questão da raça, tão insistentemente citada por esses médicos, estava no centro dos debates, não apenas científicos, nas primeiras décadas deste século. E o reforço da noção da necessidade natural da maternidade para a mulher também era atravessada pelas apreensões quanto ao futuro do país a partir das suas disponibilidades raciais. Afinal de contas, a mulher era percebida como a grande responsável pela procriação e também pela educação dos filhos.

E é a partir desta perspectiva que os médicos vão passar a insistir muito na necessidade de educar a mulher para o bom cumprimento do seu destino natural. Mas é uma educação que, em primeiro lugar, pressupõe que ela precisa reaprender com a medicina o seu papel original. Por outro lado, indica que qualquer iniciativa no sentido de promover o “desenvolvimento” da mulher passa não pela consideração de seus direitos, mas pelo que ela representa em termos da propagação da espécie e do progresso da nação. É a obsessão com o melhoramento da raça que viabiliza uma certa reconsideração da função feminina na sociedade, que implica não na mudança quanto a assumir novos papéis, mas em uma espécie de maior valorização do que representa, a partir da procriação e educação dos filhos.[23] É porque se acredita que é preciso produzir mais e melhor que as mulheres devem ser melhor educadas. Mas não se coloca em xeque a idéia de que ela serve quase que exclusivamente para procriar. A diferença é que nesse momento a reprodução se transforma em um assunto de interesse público cada vez maior. Exagerando os contrastes, poder-se-ia dizer que, enquanto no século XIX, a mulher é responsável pelos filhos, marido, família, agora ela é a responsável pelo aprimoramento da raça e futuro da nação, uma missão sem dúvida ainda mais grave.

 

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[1] Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

[2] A análise que segue introduz a questão da eugenia a partir do que aparece nos trabalhos médicos relativos à sexualidade e reprodução. Não pretendo me deter sobre a eugenia enquanto um movimento mais abrangente, que mereceria um estudo bem mais cuidadoso, como o realizado por Stepan (1990). Para um panorama geral do desenvolvimento das idéias eugênicas em diversos contextos nacionais, ver Schneider (1982), Adams (1990) e Carol (1995).

[3] Esta revista perdurou pelo menos até 1969.

[4] Esta cátedra era ocupada na época por A. de Moraes.

[5] A revista tinha também a pretensão de representar um elo de ligação entre os profissionais e estudantes brasileiros com a produção de conhecimento desenvolvida internacionalmente. Apresentava resumos dos artigos publicados nos principais periódicos da área em todo o mundo. Somente no primeiro número, constavam artigos das seguintes publicações: Gynecologie et obstetrique; Revue Française de gynecologie; Bulletin de la societé d’obstetrique et de gynecologie de Paris; Surgery, gynecology and obstetrics; American Journal of obstetrics and gynecology; The journal of the American medical association; The British medical journal; Zentralblatt für gynäkologie; Archiv für gynäkologie; Boletin de la sociedad de obstetricia y ginecologia de Buenos Aires; Revista de obstetrícia e ginecologia de São Paulo; Revista Brasileira de cirurgia; Revista de ginecologia e obstetrícia.

[6] Stepan (1990:124-125) menciona que, apesar do eugenismo brasileiro enfatizar mais a prevenção, temas característicos da eugenia “negativa” como o aborto, o controle da natalidade e a esterilização também estiveram em pauta. Mas, no Brasil, a influência do catolicismo e a preocupação com a natalidade fizeram com que o movimento tomasse outra direção. D. Borges (1991) também fala sobre a importância da Igreja na conformação de uma eugenia brasileira menos afeita a programas de intervenção radical, como a esterilização, por exemplo. Vale lembrar que em 1930 a encíclica Casti Connubii condenava o controle da natalidade, esterilizacão e aborto eugênicos.

[7] Azevedo era assistente da Clínica Obstétrica da Universidade do Rio de Janeiro, do Serviço de Cirurgia e Ginecologia da Beneficência Portuguesa e da Pró-Matre.

[8] É o caso do seguintes trabalhos: Mello (1911), Vilhena (1919) e Ligiero (1930).

[9] G. Bock (1983), trabalhando sobre a conexão entre racismo e sexismo nas concepções e práticas nazistas envolvendo maternidade e esterilização compulsória, afirma que enquanto se propunha o incentivo à maternidade de muitas mulheres, impunha-se a esterilização a outras. As primeiras eram as consideradas racial e hereditariamente puras. As segundas, ameaças à nação e à raça alemã. O pró-natalismo para os desejáveis e o anti-natalismo para os indesejáveis estão intrinsecamente conectados. As leis que proíbem o aborto e a esterilização voluntária são concomitantes às que legalizam o aborto e esterilização eugênicos.
A autora sugere que estes acontecimentos estão relacionados com o fato de que o discurso da higiene da raça, muito mais do que outras teorias, desde o fim do século XIX concede uma importância fundamental à mulher, seja como a “mãe da raça”, seja como culpada pela degeneração racial. O eugenismo parece especialmente preocupado com os domínios supostamente naturais ou biológicos aos quais a mulher parece mais associada, como o corpo, a sexualidade, a procriação. Além disso, também era preciso reafirmar que o destino natural das mulheres era ser esposa e mãe frente às tentativas de emancipação e de redução do número de filhos, tão importante para o Estado naquele momento. Sobre sexo, reprodução, contracepção, aborto e esterilização na Alemanha deste período, vale recorrer também a Grossmann (1995).

[10] É preciso salientar que a política desenvolvida neste período com relação à mulher e à criança necessitaria de uma extensa análise, o que não vai ser feito aqui. O material e os comentários que se seguem dizem respeito apenas ao que aparece diretamente conectado com a participação dos ginecologistas e que não poderia deixar de incluir neste trabalho.

[11] O uso do termo “prece” neste discurso nos faz lembrar da estreita aliança de Vargas com a Igreja e da importância da associação entre Igreja e nação nesta época, tanto em termos metafóricos quanto em relação às ações que foram empreendidas em parceria. A valorização da infância e especialmente da maternidade aparece como um ponto em comum de natureza estratégica. D. Borges (1991) fala das projetos relativos à preservação da família (caracterizados na luta contra o divórcio e o aborto e contracepção, por exemplo) e restauração da educação religiosa. Sobre a presença da Igreja no Estado e nas Constituições brasileiras com relação aos temas apontados, ver também Scampini (1978) e Cifuentes (1989:cap.14).

[12] Quanto à política social em torno da criança na era Vargas, ver o trabalho de C. Fonseca (1993). É importante lembrar que já desde a passagem do século a criança vinha começando a ser tratada como o “futuro da nação” (Silva 1997).

[13] A Comissão Organizadora do Congresso era encabeçada pelo presidente da Sociedade Brasileira de Ginecologia, Arnaldo de Moraes. Entre seus membros estavam Nabuco de Gouvêa, Brandão Filho, Castro Araujo, Rodrigues Lima, Clovis Correa, Motta Maia, Jayme Poggi e S. Lemgruber, do Rio de Janeiro. Participavam também membros de outros estados, como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940:vol.10,128).

[14] Os outros temas eram: “Últimas aquisições da hormonologia ginecológica”, “Endocrinopatias em obstetrícia”, e “Diagnóstico e terapêutica do câncer cervical” (Anais Brasileiros de Ginecologia 1940:vol.10,128).

[15] Smith-Rosenberg e Roseenberg (1973) fazem referência ao uso do conceito de ginecologia social nas últimas décadas do século XIX nos Estados Unidos. O problema central desta especialidade naquele contexto era a questão da queda da natalidade e a importância deste fenômeno para o futuro da nação e da raça.

[16] M. V. J. Pena (1981) destacou a conexão entre a formulação de leis trabalhistas, a desvalorização da mulher trabalhadora e o desenvolvimento de uma imagem da figura materna associada à nação durante a década de 1930. L.L. Barsted (1987:105), estudando o direito e as concepções do Estado sobre a família, afirma que na década de 1930 há uma articulação, inédita, da mensagem do Estado sobre a família com outras esferas como o trabalho, a previdência social, a criminalidade. Sobre a família no pensamento jurídico no século XIX, ver Almeida (1999).

[17] Pena (1981) apresenta em detalhes a legislação e um panorama sobre o trabalho feminino na era Vargas.

[18] Nos Anais Brasileiros de Ginecologia de 1939 (vol.8:332) comenta-se o “Plano Nacional de Assistência à Maternidade” que passava a ser executado pela Divisão de Amparo à Maternidade e à Infância, coordenada por Olinto de Oliveira, do Ministério da Educação e Saúde.

[19] Ver os trabalhos de G. Seyferth (1989; 1996; 1997), que trata também da questão da imigração. Mais especificamente sobre a questão racial do ponto de vista dos eugenistas, ver Stepan (1990).

[20] Um dos resultados atrelados a esta concepção foi a política de identificação elaborada cientificamente e utilizada nos meios jurídicos e policiais (Cunha 1998).

[21] Arthur Ramos também se preocuparia muito com a criança e com a figura materna, mas seguindo outra direção (Corrêa 1998:294-305)

[22] Sobre o movimento feminista na década de 1930 e aproximações como o Estado Novo, ver Callado (1994).

[23] A. L. Duarte (1999:248-261) mostra como as iniciativas do Estado Novo em torno da educação feminina centravam-se na preparação para a maternidade, as atividades domésticas e a formação de famílias sadias e respeitáveis.