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Grupo de Trabalho 1
Gabriela
â, o ícone denso e tenso: raça, género e classe em Ilhéus

Miguel Vale de Almeida [1]

1.  Episódios inéditos de Gabriela

1977. Primeiros tempos da “normalização” da vida política portuguesa depois da revolução de 1974-75. Pela primeira vez surge uma telenovela brasileira na televisão portuguesa. Título: “Gabriela”. O país transforma-se: mais apegado à televisão e, agora, irremediavelmente apegado ao género narrativo telenovelesco, doravante inseparável das representações sociais sobre o Brasil. Diz-se que reuniões do Conselho de Ministros são interrompidas para se assistir aos últimos episódios do amor de Nacib e Gabriela. A vários níveis sociais, a novela institui-se como intermediação narrativa para discutir a vida e como ponto de encontro virtual. Algumas vozes falam, embora ironicamente, de colonização inversa. Outras denigrem intelectualmente o novo género audio-visual, outros ainda marcam-no com os ferros do desprestígio de género e classe - a novela como coisa de mulheres e iletradas.

Vinte e poucos anos depois, no ano da celebração dos 500 anos do Brasil - que em Portugal se diz “dos 500 anos do Descobrimento do Brasil”, e assim mesmo, com D maiúsculo -, cerca de dez novelas brasileiras passam em simultâneo na TV portuguesa. O aumento exponencial de oferta novelesca acompanhou igual aumento na oferta de canais, de publicidade e de possibilidades de consumo no Portugal democrático (que, neste país, é o mesmo que dizer pós-colonial), reinventado como “europeu”. Mas no qual o  Brasil, no quadro do “remake neo-colonial sem colónias” chamado “lusofonia”, é o lugar de todas as projecções identitárias; genéricas umas (a alteridade exótica, a tropicalidade, a alteridade sensual - todas mercantilizáveis), especificamente portuguesas, outras (a comprovação da grandiosidade dos descobrimentos, do luso-tropicalismo, o “filho” que cumprirá o que o “pai” não foi).

No centro destas representações de alteridade/alter-ego, pode encontrar-se a figura da mulata. Triplamente subalterna, triplamente desejável, para o olhar hegemónico: porque mulher, porque nome, circulando estampado num objecto pela paisagem urbana.

Quantos personagens de livros ou novelas conseguem espalhar-se assim pelo mundo e cumprirem o desígnio de representarem simultaneamente a localidade extrema (o ancoramento em Ilhéus) e a universalidade (o suposto triunfo de um projecto de mestiçagem)? Creio que só aqueles que, à partida, são construídos a partir de tipos sociais que, em si, correspondem a quadros de interpretação socio-política das realidades coloniais, de novo-mundo ou das suas extensões pós-coloniais. No caso de Gabriela, não se trata de um tipo de personalidade, de uma encarnação de um drama humano, mas sim de um tipo de relações sociais brasileiras e das representações sobre elas feitas: nos domínios a que convencionámos chamar “classe”, “género” e “raça”.

Gabriela é um tríptico noutro sentido também: no primeiro quadro temos a harmonia social brasileira (democracia racial, cordialidade nas relações entre desiguais, sensualidade como superação das tensões de género) que nós, cientistas sociais, desmontamos como construção ideológica; no segundo quadro temos os conflitos sociais brasileiros, segundo as mesmas linhas de clivagem, que nós temos por realidade escondida, revelada graças à  análise social feita com a aplicação de conceitos como 'raça', classe e género; no terceiro temos o projecto, humanista nuns casos, pós-moderno noutros, da transcendência dessas clivagens. Ou todos são verdadeiros, ou precisamos de ver como as pessoas os vivem na prática.

Um dia encontro, num depósito de sucata da prefeitura de Ilhéus, uma estátua abandonada. Feita com materiais metálicos reciclados, ela representa Gabriela. Terá sido obra de um artista local. Terá estado destinada a exibição em local público da cidade. Terá sido preterida pelas autoridades que não devem ter gostado de uma representação tão... metálica de uma carnalidade imaginada como curvilínea, tenra e terna. Gabriela é suposta ser nítida, transparente, simples, não um “assemblage” de objectos de proveniências diversas. Se a sua origem é o híbrido, o seu destino (ideológico) é a pureza: no seu papel de representante da especificidade brasileira. O celulóide, o suporte magnético ou digital, pelas suas semelhanças com a limpidez das representações mentais - esses sim, são tidos como os suportes correctos para representações de Gabriela.

No terreiro Tombency, sede do bloco afro Dilazenze - e sede de uma rede parental e vicinal que está na base de ambos -, os meus colaboradores de pesquisa mostram-me a cassete do documentário televisivo do realizador português Brandão Lucas, rodado em Ilhéus. Trata-se de um episódio de uma série documental sobre os lugares do mundo por onde os portugueses passaram, um produto mais do ciclo de comemorações dos Descobrimentos que inaugurou, desde os finais da década de oitenta, a produção de uma pós-colonialidade portuguesa. Gabriela, e os “lugares” de Jorge Amado (o Bataclã - que não existe -, o café Vesúvio, etc.) ocupam lugar de destaque. Os meus anfitriões sorriem, mas não comentam, perante as imagens de um documentário que foca os “landmarks” do centro de Ilhéus, que não sobe ao morro onde eles vivem e que presta culto a uma mulher de papel que não conseguiu transformar-se numa entidade com capacidade para “baixar” nos seus corpos. Mas isto é uma interpretação abusiva da minha parte, com certeza. Nada impede que os meus informantes não partilhem do efeito de hegemonia que o ícone Gabrielano comporta.

De regresso a Portugal, e passados muitos meses. Por acaso, leio o romance e crónica de viagens “Baía dos Tigres”, de Pedro Rosa Mendes, livro sobre o desastre angolano contemporâneo, itinerário por cenários de guerra, absurdos e alguma (pouca) dignidade humana. Às tantas, na página 227-8, encontro esta passagem: «Era gente refinadíssima, este grupo de Brigadas, da grande burguesia ou mesmo aristocracia, com carreiras feitas, que tinham radicalizado as suas posições e mantinham o culto das armas. O Lubango recebeu também uma contribuição basca com refugiados da ETA, e ainda elementos do Tupac Amaru, incluindo uma uruguaia quase sexagenária, cujo quarto no Hotel Continental - onde as carpetes vermelhas se tinham tornado cinza-bolor por causa das inundações - era chamado o Bataclã, nome tirado da novela brasileira “Gabriela”». A migração dos símbolos triangulava o Atlântico e os tempos.

 

2.  Excerto do Diário de campo, 24 de Setembro de 1997.

O centro de Ilhéus é marcado por alguns edifícios representativos de uma certa identidade local, coincidente com a auto-apresentação da cidade ao exterior. Símbolos de poder e prestígio. Entre eles, a Catedral, o Teatro Municipal, o bar “Vesúvio”, e a Casa Jorge Amado, todos praticamente paredes-meias. Parte desta última é um museu, elaborado em torno do simples facto de ali ter vivido o escritor, quando jovem. A outra parte alberga a Fundação Cultural de Ilhéus, uma instituição municipal que gere a política cultural. A casa resulta de um esforço de reconstrução recente, elogiado pelo próprio escritor num vídeo que é projectado no auditório da Casa. A exposição permanente é constituída pelos seguintes elementos: capas de livros do escritor em várias edições internacionais e línguas; uma listagem dos idiomas em que a sua obra foi traduzida; painéis de fotografias biográficas, avultando os encontros do escritor com personagens ilustres; e uma galeria com figuras de orixás, em que Oxóssi, sincretado com São Jorge (padroeiro de Ilhéus), ocupa o lugar central. Produto local - da síncrese local - legitimado (só possível graças à?) projecção internacional. O conjunto é completado com uma zona de vendas, onde estão disponíveis bugigangas e produtos locais, bem como livros de autores regionais. É, pois, a própria casa, e a sua arquitectura nobre, que funciona como emblema da presença de Jorge Amado. E da sua ausência: desde a juventude que não vive em Ilhéus e desde então que mudou o lugar da acção dos seus romances, o qual, para todos os efeitos, era um mundo que Ilhéus perdeu - o da gesta do cacau.

O folheto de divulgação da Casa explicita o propósito de protecção do passado, de exaltação do que, localmente oriundo, ganhou projecção maior, ou ainda do que localmente se faz a partir do que tem prestígio global (certos desportos, ballet e dança, artes plásticas, música clássica etc.) - marca, a meu ver, um “tipo de branco” que se confunde com “um tipo de burguês”. Tanto Lindaura como a sua cunhada, presente na conversa, fizeram questão em afirmar que nunca na cidade (presume-se que falem dos seus antepassados ricos) se ligou importância à cultura, pois os locais “só queriam viajar e esbanjar dinheiro e nem aproveitaram para visitar museus”. Orgulhosa da sua filha, bailarina e professora numa academia local, e do filho, campeão de triatlo, Lindaura faz questão de referir também “o negrinho” que adoptou e que colocou “no melhor colégio”.

 

3.  Gabriela toma duche nua numa cachoeira de água pura?

À partida, e sempre, um problema: Gabriela é uma personagem de romance. Este, sendo uma obra individual, de autoria, é também o precipitado de um contexto particular. Os mais pós-modernos diriam, ainda, que o romance é construído pelos leitores, abrindo-se a múltiplas interpretações. Uma conciliação possível entre noções centradas e descentradas de autoria, seria ver o romance como obra aberta para a apropriação social de certos símbolos bons para pensar, por ele fornecidos.

Tica Simões é professora de literatura na universidade local. Num congresso sobre literatura regional, intervém e pergunta-se se existe uma literatura da região do cacau da Bahia. Colocando em alternativa as expressões “literatura do cacau”, “literatura da região do cacau” e “literatura do sul da Bahia”, ela afirma que até há pouco usava as duas primeiras. Mas, agora, a região encontra-se “descaracterizada” e busca alternativas económicas que provocariam, elas mesmas, uma “descaracterização identitária”, contrastante com os anos trinta de riqueza e poder representados por Adonias Filho e Jorge Amado. Estes teriam, aliás, colocado “a região na literatura brasileira”.

Uma questão do domínio da economia-política (a monocultura do cacau) e uma questão do domínio das relações nação-região (a baianidade e, especificamente, a sul-baianidade) são convocadas para a compreensão da literatura. E vice-versa (faltando referir que ambas participam de uma engrenagem mais vasta, aquela que hoje dá pelo nome de globalização). Tica Simões contextualiza: entre 1930 e 1980, a região do cacau foi projectada no Brasil e no mundo. Nos anos 1970, as taxas retidas pelo governo federal eram remetidas para a região através da Ceplac, o que gerou “riqueza e escritores” (!). Mas em 1980 elas passam a ser retidas pelo governo federal e dá-se a chegada das pragas, nomeadamente a vassoura de bruxa. Segundo Tica, passa-se do “ter para o ser” ou, como diz um ditado local, “avô rico, filho nobre, neto pobre”. A situação levaria a uma procura de nova identidade, com uma aposta na dimensão histórica da região, começando a ver-se o que o “cacau não deixava ver”: a Mata Atlântica, a Costa do Descobrimento, a beleza do litoral.

De facto, o descalabro da economia cacaueira tem levado as autoridades locais a promoverem o turismo como principal aposta de desenvolvimento regional. Este turismo é especificamente apresentado - embora não o seja na realidade - como “cultural” e “ecológico”, as duas palavras-chave dos processos contemporâneos de mercadorização de duas realidades objectivadas e reificadas enquanto especificidades locais intercambiáveis num mercado universal de particulares: performances e produtos culturais, e paisagens. Normalmente estes dois universos são mediados por figuras humanas que incorporam características de ambos - daí a sua sexualização, racialização e “especificação” culturalista.

Tica Simões usa “Tocaia Grande”, de Jorge Amado como exemplo do revisionismo dos anos 80. Neste romance o autor teria abandonado a centralidade narrativa dos personagens dos coronéis a favor da perspectiva dos trabalhadores rurais, do negro, da prostituta. Nos tempos “pós-modernos” a atenção virar-se-ia para as minorias, com as temáticas da raça e do sexo, enfatizando, por exemplo, as culturas negras e indígena, num regionalismo com carácter universal - adianta a professora.

 

4.  Dois recortes de jornal à laia de ilustração.

«FUNDACI (Fundação Cultural de Ilhéus) participa em Salvador de curso de Marketing Cultural. Participaram no primeiro curso de Negociação para Captação de Recursos em Projectos Culturais (...) a atriz Carla Mendes, diretora da Casa de Cultura Jorge Amado, e Maurício Pinheiro (diretor do teatro Municipal) (...) (que) visitaram Jorge Amado e Zélia, na residência do casal, quando receberam exemplar da recente tradução de Gabriela para o catalão. O volume fará parte do acervo da Casa» (A Região, Ilhéus, 10.11.97, nº 76)

«O aniversário de Jorge Amado. 85 anos neste Domingo, dia 10. Será comemorado pela FUNDACI com filmes projectados em telão no Largo Cultural (fronteiro ao Teatro Municipal), incluindo um vídeo especial cedido pela TV Globo do Rio, contendo reportagens sobre o romancista e a cidade de Ilhéus, (e) o filme “Tieta do Agreste” de Cacá Diegues recentemente lançado no circuito comercial e participando em festivais nacionais e internacionais, com trilha sonora de Caetano Veloso e protagonizado por Sónia Braga». O evento incluía um sorteio de camisetas com motivos retirados de romances de Jorge Amado. (A Região, Ilhéus, 11.08.97).

5.  São Jorge dos Ilhéus.

No início do trabalho de campo li “São Jorge dos Ilhéus”, de Jorge Amado, e não “Gabriela” (que só leria já depois do regresso a Portugal). Tanto este romance como o anterior, “Terras do Sem Fim”, narram a história da conquista das terras cacaueiras pelos coronéis do princípio do século e a passagem daquelas para as mãos dos exportadores forasteiros, a partir da Segunda Grande Guerra. O triunfo do capital comercial e exportador é mal visto por Jorge Amado (na linha de um proteccionismo nacionalista não só recorrente no populismo latino-americano, mas sobretudo entre o comunismo da III Internacional), que prefere o modelo de masculinidade do tempo dos coronéis, mesmo que nele denunciasse o carácter de classe, nomeadamente o seu carácter explorador e a profunda desigualdade social: «...o poeta já lhes dissera algo da luta que antevia entre os grandes exportadores e os donos da terra, os grandes fazendeiros, aqueles conquistadores de matas que haviam passado, trinta anos antes, sobre tantos cadáveres para plantar a árvore do cacau, luta que arrastaria também os pequenos lavradores, que cultivavam suas rocinhas com a sua própria família (...) Os exportadores eram apenas intermediários, mas realmente estavam se tornando os donos do cacau, os que mais ganhavam com a lavoura» (p. 60). Atento às relações de produção e à forma como determinam relações sociais desiguais, num modelo marxista clássico, Amado não resiste, porém, ao elogio de uma masculinidade baseada na bravura, na honra e no combate com a Natureza.

Para Jorge Amado, há, no início, uma terra de ninguém, uma geografia e uma história do nada. A ocupação que dela fazem os coronéis equivale a uma gesta heróica, a gesta possível, mesmo que ela estabeleça uma realidade social nova, feita de senhores e trabalhadores quase escravos. Na geração seguinte, surgirão os filhos dos senhores, empurrados para papéis de mediadores com o estado e a burocracia: «Os filhos dos coronéis, a primeira geração de Ilheenses, aquela que os pais destinavam a grandes destinos, andava, formada em advocacia, em medicina, ou em engenharia, inútil pelos cafés e pelos cabarés».

Paralelamente, Ilhéus é região de imigração, fugitivos na sua maioria à miséria sertaneja e logo feitos dependentes das relações de patrocinato e clientelismo, hegemónicas na definição e significação das trajectórias de vida «António Vítor (personagem de pequeno fazendeiro imigrante recompensado, em terra, pela sua participação em tocaias) tem vontade de dizer alguma coisa, de falar em frases mais largas, de, se isso fosse possível, levar a mão até Raimunda e fazer-lhe uma carícia. Ela também, apesar do seu rosto zangado, tem vontade de externar sua alegria com algo mais do que o sorriso com que saudou a nuvem. Mas não o sabem fazer. Como não o souberam quando nasceram os dois filhos» (p. 85). A mulata Raimunda e o caboclo António (como depois o autor os trata, racializando o seu lugar social) são beneficiários de relações patrão-cliente. Esperam ansiosos a chuva. As suas limitações de expressão emotiva, reflectem, no plano das relações de género, as limitações sentidas nas relações político-económicas.

O mundo dos imigrados, desenraizados (à semelhança dos coronéis na primeira geração), é um mundo de fronteira também no plano afectivo e sexual. As referências à falta de mulher, aos corpos femininos estragados pelo trabalho e a pobreza, à masturbação, ao bestialismo, são recorrentes. E as distracções têm o miserabilismo dos ambientes de exploração, sem o elogio da cultura popular que seria de esperar do populismo neo-realista de Amado: «Sobre o assoalho, que parece encerado, o cacau, que veio dos cochos, seca, revirado pelos pés dos homens, que dançam sobre ele uma dança inventada, que cantam uma canção ali igualmente inventada. A dança lembra outro baile que outros negros, noutros tempos, bailaram sobre a coberta dos navios negreiros e a música fala do desejo que eles abrigam de virem a ser marinheiros um dia» (p. 132). Prenuncia-se aqui o uso que Amado virá a dar, mais tarde na sua obra, à “cultura afro-brasileira” como cultura popular baiana por excelência, na ausência de outra que não seja a que resulta de relações de produção, sem um lugar de origem, uma poética própria.

Em geral, a negritude de pobres e trabalhadores vai de si e raras vezes é referida especificamente pelo autor. A “raça” está subsumida num discurso de classe. Mas a fazenda de cacau é progressivamente complementada (e, mais tarde, substituída) pela favela urbana, mais lumpen-proletarizada e marginalizadora porque, supõe-se, desprovida do valor moral do trabalho e do contacto com a natureza: «à primeira vista, somente, porque em verdade eram duas misérias diferentes. Os meninos das fazendas tinham a cor da terra, as barrigas enormes, os sexos, cedo acostumados aos contactos com os animais, precocemente desenvolvidos. Estes da Ilha das Cobras eram também amarelos, mas de um amarelo diferente, mais verdoso, não tinham barriga, o sexo era sempre pequeno. A pele sobre os ossos, escaveirados, sabidos de fazer medo» (p. 163). Se a cor é sinal de condição social, é-o também de saúde e moralidade. É na linguagem do corpo - um corpo descrito com base em critérios que remetem para o sexo e género e para a raça e condição social - que Amado pinta as diferenças e os seus leitores as compreendem. «Minha cor é do cacau / mulato de querer bem / mas ai! Mulata mas ai! / sou amarelo encapuça' o/ cor da maleita também» (p. 118).

No extremo oposto da escala social, trata-se de lidar com a transição para um capitalismo sem romantismo. Carlos (o exportador arribado) é assim retratado: «No mais íntimo do seu ser, onde mora o adolescente que vinha da leitura de Júlio Verne para o escutar das histórias de Ilhéus, Carlos lastima que não fosse aquela uma luta heróica, de repetição, tocaias e jagunços. Era uma luta de escritório, de jogo de bolsa, de alta e baixa...» (p. 173). Neste mundo em transformação, a chegada dos forasteiros ligados ao capital transnacional é também o início de representações, no romance, dos aspectos mais facilmente objectificáveis da cultura urbana local, especialmente afro-brasileira. Numa passagem significativa, alguns brancos assistem a um candomblé e a sua atitude parece prenunciar fenómenos contemporâneos: «(...)a argentina sente no corpo o chamado da música. Não é como os tangos de toda a degradação. É música primitiva, de desejos sem desvios (...) os brancos já lhes haviam tomado tudo, tomavam por fim da sua música religiosa para com ela acender os seus desejos (...) o sueco soltou um grito áspero, pensava que assim gritavam os pretos nas macumbas...» (p. 193).

«E como não havia mais terra para conquistar - muito menos para comprar - os coronéis não sabiam o que fazer do dinheiro». s das classes sociais mais baixas. Os que são (ou supomos serem) brancos, nunca são racializados pelo autor. Alguns exemplos: «...solteironas, o coro unânime dos coronéis...comerciantes, exportadores, trabalhadores vindos do interior para a festa, carregadores, homens do mar, mulheres da vida, empregados no comércio, jogadores profissionais e malandros diversos...» (p. 29); «...as caboclinhas humildes nas pobres casas de rameiras, nos povoados» (p. 37); «(mulheres de coronéis) a esposa na cozinha, como uma negra, sem diversão» (p. 38); «O Doutor não era Doutor, o Capitão não era Capitão. Como a maior parte dos coronéis não eram coronéis» (p. 46). Aliás, as relações sociais locais são descritas em termos relacionais e interaccionais: « Como poderia Segismundo, sem cometer grave descortesia, duvidar da palavra do coronel José Antunes, rico fazendeiro, ou do comerciante Fadel, estabelecido com loja de fazendas, gozando de crédito na praça?» (p. 62); «Como a maioria da população, não media pelo nascimento o verdadeiro grapiúna e sim pelo seu trabalho em benefício da terra, pela sua coragem de entrar na selva e afrontar a morte, pelos pés de cacau plantado...» (p. 64).

Na linha dos processos de categorização pelo género, uma atenção especial é prestada à definição das mulheres, e é o personagem de Nacib que assim reflecte sobre a empregada que acaba de perder e abrirá o caminho para a chegada de Gabriela: «A verdade é que já sentia saudades dela, de sua limpeza, do café da manhã com cuscuz de milho, batata doce, banana da terra frita, beijus...De seus cuidados materiais, de sua solicitude, mesmo dos seus resmungos. Quando uma vez ele caíra com febre,... ela não arredara do quarto, dormira mesmo no chão. Onde arranjaria outra como ela?» (p. 59). Tipos femininos que cruzam as diferentes categorias de pertença social são apresentadas: «A mulher loira... formosa, bem vestida e bem pintada, 'uma boneca estrangeira'» (p. 77); «as irmãs Dos Reis...somavam cento e vinte e oito anos de sólida virgindade indiscutida» (p. 78); «Mariazinha, os pés descalços, a pentear uns cabelos compridos, a matar piolhos. Era mulher de uns trinta... anos, gasta pela bebida, mas ainda com uns restos de graça no rosto caboclo» (p. 87).

Nacib é um dos muitos imigrantes que acorreram a Ilhéus, «zona ubérrima onde se fizera homem» (p. 61), descrito, enquanto ser masculino, da seguinte forma: «...bigodões negros de sultão destronado, a descer-lhe pelos lábios... frondosos bigodes plantados num rosto gordo e bonachão, de olhos desmesurados, fazendo-se cúpidos à passagem das mulheres. Boca gulosa, grande e de riso fácil. Um enorme brasileiro, alto e gordo, cabeça chata e farta cabeleira, ventre demasiadamente crescido...» (p. 61). Os personagens masculinos vão sendo definidos em grande parte pelas suas atitudes face às mulheres: «(Mundinho) talvez os cabelos negros, talvez os olhos rasgados, dava-lhe um toque romântico, fazia com que as mulheres logo o notassem...» (p. 65); «(os bares) hábito que se estendera a toda a população masculina» (p. 73) ou homens «cuja única ocupação era jogar póquer e pegar negrinhas no morro da Conquista» (p. 75), ou um velho coronel pensando em como «os homens precisavam daquilo (cabarés), ele também fora jovem. O que não entendia era clube para rapazes e moças conversarem até altas horas, dançarem essas tais danças modernas, onde até mulheres casadas iam rodopiar em outros braços... Mulher é para viver dentro de casa, cuidar dos filhos e do lar. Moça solteira é para esperar marido, sabendo coser, tocar piano, dirigir a cozinha» (pp. 94-5); «o ideal de cada coronel é dormir com mulher casada» (p. 103).

Se, para lá de classe, género e “raça”, a idade é um nível de identificação e diferenciação social a não esquecer, outro é a sexualidade. Amado encontra lugar para uma breve referência, pejorativa, à homossexualidade: «Tratava-se de dois invertidos oficiais da cidade. O mulato Machadinho, sempre limpo e bem arrumado, lavadeira de profissão, em cujas mãos delicadas as famílias entregavam os ternos de linho (...) E um negro medonho, servente na pensão de Caetano, cujo vulto era visto à noite na praia, em busca viciosa» (p. 111).

É neste universo de rígidas classificações sociais, hierárquicas e assimétricas, que Gabriela vai fazer a sua aparição desestabilizadora das mesmas e prenunciadora do triunfo de um projecto social “brasileiro” que não haveria ainda chegado à cultura de zona de fronteira de Ilhéus. E vai fazê-lo na Segunda parte, logo após uma série de qualificações das atitudes dos homens perante as mulheres: «Porque não culpava certos maridos que nem ligavam para as esposas, tratavam-nas como criadas, enquanto davam de um tudo, jóias e perfumes, vestidos caros e luxo, às raparigas, às mulheres da vida ou às mulatas para quem botavam casa?» (p. 144); «os coronéis reservavam a pena de morte para traição de esposa. Rapariga não merecia tanto...» (p. 149); (um coronel) eram seu luxo, sua alegria na vida, essas cabrochas, mulatinhas no verdor dos anos, que o tratavam como se ele fosse um rei» (p. 150) ou «descobria, quase sempre na sua fazenda ou nos povoados, uma caboclinha simpática» (p. 151); «Diziam que o viúvo levava à noite negrinhas do morro para sua casa» (p. 179); «Por essas e por outras, ele, Nacib, não se casava: para não ser enganado, não Ter de matar, derramar o sangue alheio» (p. 161).

Gabriela, que Nacib descobre no “mercado dos escravos” (sic) para substituir a empregada que havia perdido, vai surgir justamente em contraste com as outras figuras femininas e com as expectativas masculinas em relação às tipologias de mulheres. É através dos olhos de Nacib que ela é apresentada: «...e a viu dormida numa cadeira, os cabelos longos espalhados nos ombros. Depois de lavados e penteados tinham-se transformado em cabeleira solta, negra, encaracolada. Vestia trapos, mas limpos... Um rasgão na saia mostrava um pedaço de coxa cor de canela, os seios subiam e desciam levemente ao ritmo do sono, o rosto sorridente» (p. 180); «... dela vinha um perfume de cravo, dos cabelos talvez, quem sabe do cangote» (p. 181); «Morena e tanto, essa sua empregada. Uns olhos, meu Deus... E da cor queimada que ele gostava»; «Ela sorria, era de medo ou era para encorajar? Tudo podia ser, ela parecia uma criança, as coxas e os seios à mostra, como se não visse mal naquilo, como se nada soubesse daquelas coisas, fosse toda inocência« (p. 204).

A imagem é claramente a do bom selvagem. Mas um bom selvagem no feminino, contrária à figura da Eva pecaminosa, por um lado; e uma boa selvagem que, em vez de ser indígena (ou sequer cabocla), é apresentada como mulata (e mesmo, preferencialmente, como morena). Nestas duas vertentes, ela é genuinamente produto brasileiro, e caracterizado pelo convívio paradoxal, inovador, entre inocência infantil e sensualidade - “não existe pecado a sul do Equador”.... Nacib vai ser o agente dos sentimentos ambíguos em relação a Gabriela, começando pela “confusão” entre os afectos e a relação laboral: «Nunca fizera negócio mais vantajoso como ao contratar Gabriela no 'mercado dos escravos'. Quem diria ser ela tão completamente cozinheira, quem diria esconder-se sob trapos sujos tanta graça e formosura, corpo tão quente, braços de carinho, perfume de cravo a tontear?» (p. 227); «jamais poderia querer assim, tanto desejar, tanto necessitar sem falta urgente, permanentemente, uma outra mulher, por mais branca que fosse, mais bem vestida e mais bem tratada, mais rica ou bem casada (...) afinal que sentia por Gabriela, não era uma simples cozinheira, mulata bonita, cor de canela, com quem deitava por desfastio?» (p. 233); «Mas como casar com Gabriela, cozinheira, mulata, sem família, sem cabaço, encontrada no 'mercado dos escravos'? Casamento era com senhorita prendada, de família conhecida, de enxoval preparado, de boa educação, de recatada virgindade» (p. 275).

Gabriela, por seu lado, tem uma atitude de absoluto hedonismo, sem cálculo racional. Gosta de dormir com Nacib por o achar bonito e carinhoso, não como relação de contrato, seja de mancebia ou de casamento. Para ela, «A vida era boa, bastava viver. Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar goiabas, comer manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço dormir. Com outro moço sonhar» (p. 279). É esta imagem de inocência sem culpa, que Amado vai contrastar com projectos de mulher moderna, e não com os projectos, anteriores e tradicionais, de mulher recatada: «A esposa, uma gringa alta e loiríssima, de modos livres e um tanto masculinos, não suportava Ilhéus. Vivia na Bahia... corria de automóvel, fumava cigarros, constava que recebia os amantes em plena luz do dia» (p. 263) e «Mulher sem compostura, dela diziam horrores: bebia tanto ou mais que um homem, ia à praia seminua, adorava adolescentes quase meninos, corria até que gostava de mulheres» (p. 264).

Nacib vai fazer uma derradeira tentativa de domesticar Gabriela como mulher casável e “respeitável”, depois de ela ter cometido a proeza de conseguir levar todos os convivas de um baile burguês para a rua, juntando-os a um popular cortejo de Reisados (uma alegoria da atenuação da rigidez europeia e burguesa conseguida pelo “projecto brasileiro”). Nacib acabará por desistir dessa tentativa, apercebendo-se de que fizera definhar a flor de Gabriela. Um personagem, introduzido para comentar genericamente o sentido social de Gabriela, é um autêntico porta-voz do programa de interpretação nacional de Jorge Amado. Indagando a alma de Gabriela, diz: «De criança? Pode ser. De passarinho? Besteira, Josué. Gabriela é boa, generosa, impulsiva, pura. Dela podem-se enumerar qualidades e defeitos, explicá-la jamais. Faz o que ama, recusa-se ao que não lhe agrada. Não quero explicá-la. Para mim basta vê-la, saber que existe» (p. 428). Mas a verdadeira interpretação, está no subtítulo do último capítulo: por baixo de “O Luar de Gabriela” pode ler-se, em itálico: «Talvez uma criança, ou o povo, quem sabe?».

Com a publicação, divulgação e, depois, passagem a televisão, de “Gabriela”, passámos a ter uma marca registada de uma representação. Julgava eu ter feito uma blague ao colocar o â no título - para vincar este lado de ícone e produto - quando me apercebi, na ficha técnica do livro, de que “Gabriela” e “Gabriela, Cravo e Canela”, são marcas registadas. De facto.

 

7. Gabrielas, para lá de Gabriela.

Como personagem literário, Gabriela pode ser entendida em relação a dois contextos: o de figuras semelhantes a ela na literatura brasileira, e o de outras figuras na obra do seu criador Jorge Amado. Começando por este último aspecto, relembre-se o episódio da reivindicação, feita por parte de uma pessoa real, de ter sido a fonte de inspiração para um personagem de Amado. Trata-se de Severiano Manoel de Abreu, um pai de santo que recebia o encantado caboclo Jubiabá. Ambos, pai de santo e escritor, se envolveram em polémica, na época em que a definição de uma cultura popular de base afro-baiana estava na ordem do dia, nomeadamente com os congressos afro-brasileiros. Amado, que reivindicou para si, nesses anos 30, os elogios de Gilberto Freyre e Edson Carneiro por “Jubiabá”, é bastante forte na sua reacção contra o protesto do pai de santo. Cita-o Brookshaw, numa entrevista concedida ao Estado da Bahia em 1936, no seu livro sobre o negro na literatura brasileira: «Ora, calcule você que eu pretendi criar um tipo de macumbeiro que fosse um verdadeiro sacerdote na sua religião, um homem bom, um tipo nobre e sereno, verdadeira figura de pai espiritual, de mentor (...) Pois de repente me aparece o mulato Severiano a afirmar que ele é que fora o tipo real sobre o qual eu moldara o meu personagem. Se você conhecesse a história do mulato Severiano, haverá de compreender porque o meu personagem está tão humilhado» (Brookshaw 1983:116). Curioso conundrum: o escritor (esse especialista letrado na criação de representações do povo) supostamente inspira-se num personagem real, ou simplesmente num tipo social; o personagem real (ou alguém que se reconhece no tipo social) reage à qualificação de si feita; e o escritor afirma a superioridade do tipo social à realidade vivida de uma pessoa concreta.... Pena que não tenha surgido nenhuma Gabriela.

Os primeiros romances de Amado, localizados em Ilhéus (“Cacau” e “Suor”, respectivamente de 1933 e 1934), podem ser incluídos no que em Portugal ficou conhecido como neo-realismo (corrente sobre a qual, aliás, Jorge Amado exerceu fortíssima influência), com uma preocupação com a condição das classes trabalhadoras. É o trabalho e a experiência da exploração que constituem o nó central, em relativa independência da questão 'racial'. Mas a partir dos anos cinquenta, o escritor inaugura uma nova fase da sua obra, após o regresso do exílio, em que começa a focar a cultura negra baiana enquanto cultura regional tornada património da sociedade em geral (negra ou branca), com forte expressão nas camadas populares. Se nesta mudança há sinais positivos - pois um programa político universal é substituído por uma atenção à especificidade cultural - esta é, no entanto, o resultado directo do triunfo de um culturalismo Freyriano, desvinculador das relações de desigualdade baseadas no logro da 'raça'. Regionalista, nativista, ou mesmo populista, consoante as vontades de classificar a sua obra, o que é certo é que ela depende fortemente, para a sua prossecução, da reprodução dos estereótipos sociais dominantes. Brookshaw analisa Jubiabá, Gabriela e Tenda dos Milagres, como um tríptico em que surgem personagens racializados representando o espectro das “personalidades sociais” afro-brasileiras possíveis. Assim, em Jubiabá teríamos o Herói Negro, em Gabriela a Heroína Mulata, em Tenda dos Milagres o Herói Mulato - a síntese da filosofia do “mesticismo” (Brookshaw 1983) proposta por Amado e espelhando as percepções da época.

Tanto Balduíno como Gabriela são marcados por uma forte sensualidade, por uma capacidade de seduzir que, porém, é desprovida de ambição. Marotti (1975), recorrendo à ética da negritude de Senghor, nota a ignorância da noção de pecado sexual, ausência de noções claras de passado e futuro, vitalidade e recusa da intelectualização. Em Tenda dos Milagres, Archanjo é, tal como Balduíno, um fanático de carnaval e candomblé, mas não se deixa ficar pela cultura popular, antes sendo um auto-didacta que, enquanto bedel da Faculdade de Medicina, defende os africanos das teorias racistas dos académicos com quem convive. No entanto, uma leitura atenta de Gabriela, não permite detectar elementos nem do carnaval nem do candomblé, pois Gabriela não é um romance regionalista afro-baiano, marcado pela vivência de Salvador, mas um romance de “lugar”, marcado pela experiência social ilheense

Onde Brookshaw parece ter mais razão é na qualificação da obra de Amado como populista, ou seja, como preservadora de mitos. Todavia, parece-me que esses mitos estavam, à época, ainda em construção, contrapondo-se à ideia da decadência brasileira por razões raciais. Assim, o mito da mulata sensual, o papel de mulatos como intermediários entre negros em extinção e brancos modificados pela negritude, a caminho do fenótipo e tipo cultural brasileiros ideais (mais branco na cor, mais negro na cultura), era um projecto em construção. E, neste projecto, Gabriela aparece como representante do “povo brasileiro em construção” - daí a sua não conotação directa com a especificidade cultural do mundo afro-brasileiro.

Brookshaw, ao defender a sua ideia de “mesticismo”, fá-lo por oposição à teoria do branqueamento: «O branqueamento está intimamente ligado à política racial e social que não nega a mobilidade de pessoas de descendência mista, mas preferia que elas não tivessem muito sangue negro. O mesticismo,  por outro lado, é um posicionamento cultural, uma espécie de nacionalismo dirigido contra a completa hegemonia cultural da Europa enquanto, ao mesmo tempo, considera-se superior às influências culturais puramente afro-ameríndias...» (1983:225). Brookshaw adianta: «na verdade o morenismo não é nada mais do que um equivalente neocolonial do branqueamento» (1983:227). O problema é que esta distinção categorial entre projectos para os corpos e descendências, e projectos para os valores, não colhe na análise do real, feita de conflito entre a naturalização dos atributos pessoais, sociais e culturais, por um lado, e a individuação da pessoa humana própria dos projectos de cidadania. Menos ainda se aplicaria, no contexto pós-moderno, à fragmentação e descentramento das noções de pessoas subjacentes aos dois projectos.

Mas é Mariza Corrêa quem aborda, explicitamente, a figura mítica da mulata, numa discussão sobre a relação entre raça e género. Partindo da passagem do pólo negativo (a miscigenação como o mal do país) para o positivo (a apologia da mestiçagem), nos discursos médicos, literários e carnavalescos (p37). Também ela detecta a recorrência das imagens de uma corporalidade sensual e amoral nas mulatas de Aluísio de Azevedo, João Felício dos Santos ou Jorge Amado. Mas Corrêa detecta o que Brookshaw nem divisou: que o mulato contem um potencial de ascensão social, ao passo que a mulata provoca declínio ou mesmo desordem (p40).

Tentando estabelecer correlações entre o pensamento sobre o sexo e o pensamento sobre a 'raça' (ver Stepan), Corrêa relembra como foi no contexto dos estudos sobre candomblé que se começou a falar de homossexualidade, numa atitude próxima da acusação de efeminação feita aos mestiços. Diz ela que, assim como há masculino e Masculino, há também Feminina e feminina, e tanto o negro como a negra precisam branquear para aproximarem-se do pólo idealizado (M e F): «No terreno onde se inaugurou o debate sobre relações raciais, o da evocação de desigualdades biológicas ou orgânicas para explicar desigualdades sociais, as diferenças sexuais parecem ter oferecido um parâmetro implícito para analisá-las» (p. 45; ver Haraway).

Aceitando que o modelo brasileiro privilegiaria um contínuum e não categorias polares, dando prioridade a alocações situacionais e relacionais numa escala cromática, Corrêa faz notar como, no campo do género, as coisas passam-se de maneira diferente: as categorias Masculino e Feminina seriam discretas, definidas por oposição e contraste mais do que por relação (p. 46).

Segundo ela, a figura da mulata poria em xeque ambas as propostas. Na classificação racial, a sua situação no continuum é fixa - apesar de ambígua, está a meio caminho. Tem um lugar certo no encontro das raças. No plano do género, é definitivamente feminina: «Acredito que a mulata construída em nosso imaginário social contribui, no âmbito das classificações raciais, para expor a contradição entre a afirmação de nossa democracia racial e a flagrante desigualdade social entre brancos e não brancos em nosso país. Mas no âmbito das classificações de género, ao encarnar de maneira tão explícita o desejo do Masculino Branco, a mulata também revela a rejeição que essa encarnação esconde: a rejeição à negra preta» (p. 49)

Creio haver em ambos estes contributos uma falha interpretativa que assenta em duas questões metodológicas: a primeira é a concentração nos discursos (literários e outros) em detrimento da sua actualização e da observação etnográfica de situações de acção e relação; a segunda é a utilização, num caso, de argumentações culturalistas e, no outro, de uma focagem de cariz estruturalista. Com algumas reflexões a partir da etnografia de Ilhéus, e o contributo de uma síntese teórica com que concordo (Wade 1997), poderemos retornar à pertinência simbólica de Gabriela.

 

8.  Presente Etnográfico

Um dia encontro Vânia, uma moça negra que dança no grupo de ballet afro do Dilazenze. Está a conversar com Ana, antropóloga do Rio. Conta-lhe que escreveu um trabalho para a universidade sobre o personagem do negro Jeremias, feiticeiro da floresta, em Jorge Amado. Ela compara a sua consciência ecológica e profecias com as memórias dos velhos de hoje que trabalharam no cacau. Também estes acham que os problemas actuais - a vassoura de bruxa - são uma vingança da natureza. Também para ela é claro que a religiosidade afro-brasileira e os seus guardiães, os negros, são preservadores da ecologia e que isso se opõe /os opõe ao racionalismo ocidental.

Esta visão é recorrente nas elites dirigentes do movimento negro local. Moacir Pinho, à altura do trabalho de campo responsável pelo sector de produção cultural na FUNDACI, cargo para que foi indicado por o seu partido, o PT, ter participado na aliança eleitoral municipal, está ligado ao sindicato dos trabalhadores rurais, às comunidades eclesiais de base, ao candomblé, e é lider local do MNU. Estuda filosofia na universidade, debruçando-se sobre a oposição entre a cosmogonia de origem africana e o racionalismo e cartesianismo ocidentais. Nos planos, por ele propostos, de actividade cultural e cívica ligada à problemática dos negros, inclui-se a preservação das zonas de mata por razões ecológicas e para recolha de ervas por parte de pais e mães de santo; a promoção social das comunidades mais pobres, sobretudo marcadas pela etnicidade (negra ou de remanescentes de indígenas); e a promoção de uma especificidade cultural da comunidade negra, não só como baiana, mas como sul-baiana, isto é, praticante de um candomblé “Angola”. O chapéu de chuva destas acções é coincidente com os projectos municipais: a promoção de um turismo ecológico e cultural, criador de especificidades locais.

Outros agentes locais - por exemplo, responsáveis pela agência municipal de promoção turística ou pela organização do carnaval - reforçam também estes aspectos, mas, quanto mais forem ligados às elites “brancas”, mais reforçam a importância (e o capital) simbólico do universo mítico do cacau e da obra de Jorge Amado. Sectores mais críticos - Moacir Pinho incluído - inclinam-se mais para um revisionismo histórico, que dê conta dos processos de exploração das minorias étnicas, e não se reconhecem na simbólica da obra de Jorge Amado. A figura de Gabriela poderia ser justamente um campo de disputa político-simbólica: reforça-se o seu poder de ícone da mestiçagem brasileira, ou denuncia-se o carácter construído dessa figura que elide a reprodução das desigualdades sociais actualizadas racialmente?

Numa coisa todos concordam: o fim do período áureo do cacau, a necessidade de encontrar alternativas, o crescimento urbano concomitante com o aumento da pobreza, e a importância crescente de uma agenda étnica, muitas vezes em confronto com uma agenda de luta de classes mais clássica e estabelecida. Muitas áreas de conflito surgem em torno disto: por exemplo, a existência de dois carnavais, o oficial ou cultural e o antecipado, opondo blocos afro subsidiados municipalmente a blocos de trio empresariais e promotores de lucro. E muitos universos discursivos e de relações sociais reproduzem velhas síncreses de diferenciação à margem das discussões pós-modernas sobre política identitária: basta pensar nas páginas de crimes nos jornais locais e nas fotos em que os corpos pobres, negros e seminús são exibidos como troféus.

Fala Moacir. «Porque na verdade o cacau....porque na verdade o que é que a comunidade negra ou indígena teria com a chamada civilização do cacau? A chamada civilização do cacau... seria equivocado eu dizer assim 'representou a negação dessas comunidades'. Não é... mas a verdade, o que é que aconteceu com índios e negros com a civilização do cacau? Eles foram...os negros a mão de obra, e os índios definitivamente dizimados... Aí você tem uma história...uma história dos trabalhadores rurais aqui, que são na realidade esses negros, que...as histórias mais escabrosas, de gente que recebia o salário na ponta da cartucheira e essas histórias de jagunços, toda uma violência que é transformada em prosa, num lirismo que acaba desvirtuando da própria realidade, que é feito por Jorge Amado, que acaba sendo a grande referência dessa região, aonde... a comunidade negra não se sente contemplada na literatura regional. A não ser naquela parte mais exótica, da prostituição, da jagunçada...»

Um dos blocos-afro ilheenses mais importantes é o Dilazenze atrás referido. Ligado ao terreiro Tombency e sua linhagem, ao bairro da Conquista e suas redes vicinais e às famílias de sangue  e de santo que lhe correspondem, o seu líder (e filho da mãe de santo) está ocupando um papel político-cultural cada vez mais relevante. Uma das chaves do sucesso é a incorporação, na política do bloco, de algo mais do que a preparação do desfile carnavalesco: uma agenda de intervenção cívica, de “conscientização” e de procura de espaços para alianças e intervenção políticas ao nível municipal. Durante umas jornadas sobre cultura negra, uma das sessões foi dedicada às mulheres. Pouco participada - estas sessões e actividades têm uma função fática muito grande, criam “discurso para dentro”, limitando-se a exteriorização à imprensa ou alguns “mediadores autorizados”, como os antropólogos.

Na sessão, Gleide, coreógrafa do grupo de dança e neta carnal da mãe de santo, afirma a sua feminilidade como dirigente do mesmo e Mãe Hilza, mãe de santo do terreiro, relembra a importância das mulheres na direcção espiritual. Qualquer uma delas fala da sua experiência, conta a sua vida e participação, sem explicitação de uma agenda feminista ou para-feminista. Mas quando Dino, um homem, funcionário da prefeitura e responsável pelas relações públicas do Dilazenze, intervém, o seu discurso é programático, ou não tivesse sido iniciativa dos dirigentes masculinos a introdução de um evento “feminista”: «Aqui no Dilazenze há muita democracia. Olha-se as mulheres como companheiras com sexo diferente. A ousadia, a garra de trabalhar também se traduz no homem...No Dilazenze, com mais iluminação dos orixás e Mãe como conselheira, temos mais facilidade. Temos uma maioria de pessoas que não são da família dentro do corpo de baile. A gente vê a discriminação com a mulher, o homossexual, o idoso, a criança - a gente procura ser diferente na cultura da gente. Porquê dar só espaço para os homens? As mulheres não são objecto, objecto sexual. O mesmo sangue que elas têm, da cor vermelha, a gente tem, os homens, a mesma garra que nós temos. Nós por sermos do sexo masculino temos vergonha. Acho que o homem é mais sexo fraco porque não assume que sem uma mulher do lado não chega a lado nenhum. O homem vem de dentro de uma mulher, o homem não pode até ao momento conceber outro homem. A Bíblia tudo bem, fala da costela, a gente não vai discutir isso. A visão do Dilazenze é essa: essas caras bonitas, com ou sem maquilhagem, os corpos suados ... o contacto delas, a maneira de sorrir, de pentear, a culinária, a ousadia de discutir, de pesquisar a coreografia, de permitir que a outra colega... O homem é mais durão. Ele necessita daquilo, da lágrima de mulher, para ver que ele também é ser humano (...) A gente percebe que outras entidades não têm tanta participação feminina. Talvez seja essa a razão de tanta ciumeira. Tem um monte de menina virgem no Dilazenze, mas nenhuma delas pode abrir a boca e dizer que os homens do Dilazenze passam a mão no seio, nas coxas, no bumbum...Há paquera, de namorado, claro que existe, mas existe respeito. E a gente sempre debate. O respeito pela mulher».

Marinho, líder do Dilazenze, lança uma pergunta sobre a assunção da identidade de mulher negra. E a mulher negra como símbolo sexual? - pergunta -, acrescentando que nos primeiros anos, em 1981, foram para a rua com vestuários nativos, tribais, mostrar a beleza negra, a sensualidade, mas as pessoas não entenderam a mensagem e olharam as mulheres do ponto de vista sexual. O mesmo problema parece ter acontecido nos Concursos de Beleza Negra: onde começava a afirmação de auto-estima 'racial' e acabava a objectificação do corpo feminino, e vice-versa?

A esta dica, Gleide responde: «...naquela época os homens viam (a mulher) como objecto. Um símbolo sexual para mim é uma coisa, um objecto outra. Para mim a mulher negra é um símbolo sexual, porque não mostrar sua beleza? A mulher negra é bonita. Dizem que sou convencida...A gente pode mostrar beleza exterior e interior...»

E Dino interpreta: «...o seu convencimento está no seu interior, você é uma figura iluminada. Se é convencida é porque quando se mostra bonita não é exibicionismo barato, vulgar, é natural. Seja sempre convencida como mulher, sabendo-se colocar no seu lugar, mulher pura, limpa, que luta».

Esta discussão para consumo interno no grupo, marcada por uma agenda politicamente correcta, releva de uma atitude política propositiva: a conscientização e criação de auto-estima negra, da mulher negra enquanto não mulata apenas e do empowerment de comunidades pobres, como ficou explícito durante o trabalho de campo noutras situações. Em Ilhéus é por demais evidente o domínio do poder económico por uma elite branca (embora crescentemente deslocalizada, com transferências de capital para outras partes do país e do mundo), do poder político pela mesma ainda que cada vez mais pelos sectores branqueados através da educação e do funcionalismo; a submissão da 'raça' à classe é parte das interpretações correntes (“discriminação social e racial”, é comum ouvir-se) só contrariada pelo movimento negro e os sectores activos no movimento afro-cultural; a assimetria simbólica do género e as desigualdades com base nele reproduzem-se no seio das populações definidas como “pobres e/ou negras”, a não ser nos sectores politizados. Em todos os casos, e perante imensas dificuldades, as movimentações são nos sentido da promoção de igualdade com respeito à diferença, e da recusa da desigualdade e da semelhança. Tal como o género, com os processos de naturalização (ver Yanagisako e Delaney 1995) a ele subjacentes, também a raça se reproduz como categoria naturalizada apesar da desconstrução do seu carácter aleatório com base em sinais diacríticos da percepção visual dos corpos humanos.

 

9.  Compreendendo classe, género e 'raça'

O fim das teorias raciais como explicativas das desigualdades sociais e nacionais, e a correspondente sagração da cultura explicativa das diferenças, coincidiu com a passagem do horror pela mestiçagem racial ao elogio da mestiçagem cultural, permanecendo incólume o desejo de branqueamento progressivo. Simultaneamente, o triunfo do culturalismo vai abrir as portas a dois tipos de formulação conceptual: a supremacia de explicações de fundo marxista sobre a desigualdade, explicando 'raça' através de classe, e a abertura - avant la lettre - de uma retórica do híbrido pós-colonial com Freyre, com a diferença de que se quedou pelos aspectos expressivos da cultura, elidindo as relações sociais subjacentes, nomeadamente as de desigualdade. É compreensível que, neste quadro, as figuras simbólicas de mulatos representem transição, ponto de encontro, ponto de passagem. Esta imagem racializada metaforiza as possibilidades de ascensão (ou o seu obverso, a queda) social, num reconhecimento implícito e/ou pragmático dos privilégios de cor no Brasil, e sexualiza necessariamente estas mobilidades e tendências - já que um fenótipo novo é o resultado de cruzamentos genéticos inesperados.

O que triunfou no Brasil foi um composto de teorias racistas, elogios da mestiçagem, o pano de fundo de um desejo de branqueamento, uma ordem social em que as linhas de privilégio de classe seguem em grande medida divisões 'raciais', e uma ideologia de democracia racial correspondente a uma ideia novo-mundista de possibilidades de progresso, transformação e mobilidade garantidas por um carácter nacional cordial, festivo, comunicativo, simbolizado em formas corporais performativas (festa, carnaval, dança etc.) que instauram zonas de comunicação sexualizadas e afectivizadas. É sobre este complexo - sistematizado discursivamente em vários campos do saber e actualizado em certas arenas de interacção social interpretadas como as mais relevantes - que, com a democratização e a globalização, as agendas da política da identidade vão ganhar ímpeto e introduzir a negritude como factor nunca antes explicitado. E isto vai acontecer em diferentes meios sociais (uma coisa é o movimento afro-cultural, outra o movimento político negro, outra ainda as manifestações de auto-estima da classe média negra emergente) e com diferentes agendas cruzadas (a política tradicional de esquerda, sindicalista e classista, as preocupações ecológicas e mesmo new age, ou os movimentos feminista e/ou gay).

Gabriela, enquanto símbolo, poderia ser um pretexto para discutir estas agendas cruzadas: que significa ela para diferentes actores  (incluindo, a meu ver, o “interno”) como uma desiring machine.

É justamente na análise - não aplicada ao Brasil - da situação pós-moderna, que Wade nos pode ajudar a ultrapassar certos vícios do debate interno brasileiro nas ciências sociais (ligados, a meu ver, à comparação Brasil-EUA, às análises baseadas na classe ou, alternativamente, demasiado culturalistas). Wade diz que o feminismo teve uma influência crucial ao abordar claramente a identidade como algo de construído através de processos de relacionalidade e representação, enquanto processo e não coisa; que a reificação e essencialização da identidade foi desafiada pelo descentramento dos indivíduos; que as identidades múltiplas e o desafio às metanarrativas tornam menos importante responder a perguntas sobre a primazia de classe, raça ou outro nível; e que a cultura e mais exactamente a política da cultura tornou-se num assunto central, junto com a mercadorização da cultura e os movimentos sociais.

Estes elementos permitem a subscrição das ideias de Brackette Williams (1991, cit. in Wade 1997) sobre como as tentativas nacionalistas no sentido de criar unidade cultural se fizeram através da assimilação de “elements of that heterogeneity through appropriations that devalue them or that deny the source of their contribution”, o que constituiria uma hegemonia transformista na qual a dominação funciona em parte através da apropriação e resignificação. É isto que permite que o ênfase na mestiçagem na nação veja o branqueamento como um mecanismo fundamental do racismo na América Latina. É possível, assim, aceitar diferentes formas de racismo, sem que estas - digo eu - tenham que ser vistas do ponto de vista da excepcionalidade qualificada (como aconteceu com o lusotropicalismo)

Finalmente, um conjunto de dimensões político-culturais da identidade são perdidas quando se centra a análise no viés politico-económico das abordagens instrumentalistas, desde os aspectos sexuais, de música, dança, ou performance. Por exemplo, a ambivalente atracção sexual de brancos por negros é um tema recorrente dos contextos coloniais (Young 1995). Não perdendo de vista processos político-económicos, a análise simbólica das representações é importante (se não nos cingirmos a ela - um dos problemas de grande parte dos estudos pós-coloniais -, mas para isso ajuda a etnografia). As duas podem juntar-se na análise de processos concretos de política da representação cultural. Precisamos ver como as essências são construidas, assim como hoje é impensável subscrever o construccionismo social sem abordarmos como as categorias naturalizadoras são elas mesmas construídas.

 

10. Afinal, porquê Gabriela?

Gabriela é um potente símbolo literário e audiovisual do Brasil - Nação; um potente símbolo literário e audiovisual da Bahia - Região; um potente símbolo literário e audiovisual de Ilhéus - Local. Ela é mulher, pobre e mestiça. Ela não tem moral burguesa, mas não é nem prostituta (marginal) nem selvagem (pré-civilizada); ela é inocentemente sensual. Ela é um objecto de atracção por ser a encarnação da mistura específica do Brasil: a adoração de si próprio, a adoração do Povo, é encarnada numa figura feminina desejável. O segredo dessa atracção é o contributo de uma corporalidade inocente e infantil africana, sem a selvajaria e a marginalidade da negritude. Isso permitiu criar uma sociabilidade nova na Europa transplantada para o novo mundo. Ela não é herói civilizador (implicaria ser homem e ter um projecto); é a não-heroína que tempera a civilização, no maior desconhecimento da sua tripla condição subalterna. Por isso é simultaneamente uma representação do wishful thinking sobre a a-conflitualidade, a resolução de contradições, de uma nação nascida de contradições absolutas - é uma superação; e um projecto que, como todos os projectos, traz consigo o triste reconhecimento de que a realidade o contradiz. Por isso não pode ser o símbolo querido de um  movimento etnopolítico identitário; mas pode ser o símbolo rentável de uma promoção turística-nacional na globalidade das diferenças culturais mercadorizadas. O problema é que o “ser nacional de” ou “membro do Povo” é o nível identitário por excelência da elisão dos níveis de diferenciação e desigualdade sociais e aquele onde o efeito de hegemonia mais influência exerce e onde mais facilmente se reproduz. Que tenha sido, afinal, um produto da imaginação literária de um autor, letrado e oriundo das elites, só confirma o papel da literatura moderna (no sentido mesmo de anterior à pós-modernidade) na criação de narrativas e símbolos sistematizadores de identidades nacionais.

É por tudo isto que ela é uma marca registada. Basta o seu nome ser enunciado para suscitar comunhões e conflitos, as identificações desejantes ou reticências críticas que todos os produtos suscitam. Mas como é a representação de uma pessoa-corpo, este produto ganha o estatuto de símbolo denso, contendo em si as tensões de 'raça', classe e género, que o tornam controverso e objecto de disputas pelo seu significado, na comparação com as experiências de vida.

 

Bibliografia

Amado, Jorge, 1986, São Jorge dos Ilhéus. Lisboa: Europa-América

Amado, Jorge, 1998, Gabriela, Cravo e Canela. Lisboa: Europa-América

Brookshaw, David, 1983, Raça e Cor na Literatura Brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto.

Corrêa, Mariza, 1996, “Sobre a Invenção da Mulata”, Cadernos Pagu, 6-7: 35-50.

Haraway, Donna, 1991, Simians, Cyborgs and Women - the Reinvention of Nature. New York: Routledge

Hollanda, Heloisa, org., Tendências e Impasses - o Feminismo como Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco.

Marotti, Giorgio, 1975, Perfil Sociológico da Literatura Brasileira. Porto: Paisagem.

Stepan, Nancy, 1994, “Raça e Gênero: o Papel da Analogia na Ciência”, in Buarque de

Wade, Peter, 1997, Race and Ethnicity in Latin America. Londres: Pluto Press.

Williams, Brackette, 1991, Stains on my name, War in my veins: Guyana and the Politics of Cultural Struggle. Durham: Duke University Press.

Yanagisako, S. and C. Delaney, orgs., 1995, Naturalizing Power. Essays in Feminist Cultural Analysis. New York: Routledge.

Young, Robert, 1995, Colonial Desire: Hybridity in Theory, Culture and Race. Londres: Routledge.

 

[1] Professor Auxiliar do Deptº de Antropologia do ISCTE, em Lisboa. Nasceu em 1960. Publicou, entre outros, “Senhores de Si, Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade” (1995, com versão inglesa “The Hegemonic Male”) e editou “Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas sobre o Corpo”, 1996). Desde 1997 começou a estudar questões de “raça” e etnicidade, com trabalho de campo em Ilhéus, BA . Presentemente redige o livro sobre essa pesquisa e estreou o documentário O Espelho de África.  Áreas: Portugal, Brasil, Pós-Colonial Lusófono; “Raça”, Etnicidade, Género, Sexualidade, Estudos Pós-Coloniais. É também autor de ficção, cronista da imprensa e activista político e de movimentos sociais.